quinta-feira, outubro 29, 2020

TIMOTHY SNYDER, RICHARD FEYNMAN, CLAUDIA JAGUARIBE & MANOEL TONDELLA


  

TRÍPTICO DQC: FERVORES DA INSÔNIA - Quero apenas um copo d’água! Um copo d’água apenas e suas mãos. Apesar de saudável, fui examinado e a minha doença me condenou e eu fui declarado imundo e me lançaram por fim fora do arraial. Condenado, fui e açoitado por todos. Estrangeiro eu sou. E me levaram o futuro. E me roubaram o sono e previ a insônia. Pudera. Tenho a casa e a glória no vento, meus bolsos estão todos vazios. Fui até o fundo do inferno e estou armado de luz. Anjo nenhum me avisou e me acrescenta o que perco, Quixote dos meus ideais. A solidão me eletrocuta. Sou estrangeiro aqui. Por vontade própria optei pela solidão. Vou só, o coração a bombordo e lutando contra meus próprios moinhos de vento. Na minha morte me recusarão o chão e não terei nada, serei feliz. Deixo ao mundo o meu caleidoscópio com todas as lembranças dos sonhos a coroar meu encontro comigo mesmo nos jardins do Éden, assim espero a ameaça das chamas do tridente. Enquanto vou só, nenhum rosário para desfiar nem nada para confessar. Não estou arrependido e nem quero ser perdoado. Nenhum céu me salvará, nem quero, só a solidão... E é ela na ventania quem socorre, na dicção de Niki de Saint Phalle: A vida... a vida nunca é o caminho que se imagina. Ela surpreende, assombra, e faz você rir ou chorar quando menos espera. E me abraçou como se eu fosse o abrigo mútuo do nosso desespero.

 


AS CENAS PARA ENTREGA – Imagem: a arte da atriz estadunidense de teatro, rádio e cinema Fanny Brice (1891-1951) - Pesquisava atento sobre teatro e dei de cara com uma cena da comédia em quatro atos, Direito por Linhas Tortas (1870), do dramaturgo, advogado, jornalista e pintor França Júnior (1838-1890). No proscênio imagético, o personagem Fortunato aludia ao casamento anterior do Major Pereira: A mulher morreu de uma perniciosa, como sofreu aquela pobre criatura! Os médicos receitaram-lhe tisanas e mais tisanas, tomou sulfatos a dar com um pau; a infeliz tinha a pele sobre os ossos. Durante a encenação, ela adentrou com o glamour das estrelas, a se rir com ar de interrogação acerca da expressão “a dar com pau”. Ah, esse é um termo equivalente a abundância, demasia, e é oriunda de uma ação dos nordestinos com as avoantes que pousam, pelos campos. Extenuadas, as aves de arribação são mortas aos milhares, a pau pelos sertanejos. Lá fora uma reclamação alheia: Povo sem educação. Ela correu para a janela e sacou aquela do físico estadunidense, Richard Feynman (1918-1988): Nunca confunda educação com inteligência, você pode fazer um doutorado e ainda ser um idiota. Reticente, virou-se pra mim: A propósito, que biografia a deste cientista, hem? Sim, li Genius: The Life and Science of Richard Feynman (Paperback, 1993), do jornalista e escritor estadunidense James Gleick, contando da rebeldia, quase um mito por inventar histórias e solucionar problemas práticos com frases espirituosas, filho de modestos imigrantes, cafajeste frequentador do carnaval carioca e assíduo visitador de inferninhos, comedor de espaguete e arrombador de cofres bisbilhotando arquivos na Guerra Fria, tocando bongô e descobrindo a eletrodinâmica quântica para ganhar o Prêmio Nobel de Física em 1965. Também o drama/romance biográfico Infinity (1996), dirigido por Mathew Broderick, contando os seus apuros e de ter que conciliar suas pesquisas com a doença da esposa Airline, que morreu tristemente acometida de tuberculose. Olhando-me fixamente, usou do escritor e dramaturgo francês Jean Giraudoux (1882-1944): Deus não previu a felicidade para as suas criaturas, previu apenas compensações. O amor tem momentos realmente exaltantes: são as rupturas. O destino é simplesmente a forma acelerada do tempo. E se achegou com carinhosa indecência, com um convite pro nosso Ziegfeld Follies: uma atriz sedutora com um beijo pro seu aconchego ardente e avassalador.

 


DA NOITE PRO DIA – Imagem: a arte da fotógrafa, artista visual e editora Claudia Jaguaribe - Ao amanhecer ela acordou esvoaçante. Era como se participasse da encenação de alguma agitação sem palco nem câmara. Para ela era a angustiante data de 20 de agosto de 1971 e a representação de uma linda mulher e precoce mito de lideranças. De um canto a outro, inquieta, mordendo os lábios, estalando os dedos, contando as horas e a militância desarticulada, ela caçada e encurralada num quarto de hotel em Pituba, era a hora a fatídica. Eu sabia, ela também era Iara, Iara Iavelberg: Não, não foi como está no livro biográfico de Judith Patarra, nem no Lamarca de Sérgio Resende. Não, ela não se matou para poupar das torturas que seria submetida se fosse apanhada. Não, isso não. E sofria a mesma dor de Rose, de Heleny, Marilena, Helena, Labibe, Alceri, quantas outras mais nesse triste mundo e há muito tempo. Num gesto brusco, ela me encarou como quem atirasse em mim, à queima roupa, o historiador e professor estadunidense Timothy Snyder: Se nenhum de nós estiver disposto a morrer pela liberdade, todos morreremos sob a tirania. E saiu remexendo meus livros. Cadê? O quê? O livro dele: Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente (Companhia das Letras, 2017), onde está? Não sei, está por aí! Não encontro; preciso lê-lo e já! Está por aí em qualquer lugar da estante. E desesperada sacudiu um a um dos volumes e brochuras das estantes. Aproximei-me calma e carinhosamente, enquanto ela revolvia as prateleiras, envolvi-a em meus braços, beijei-lhe insistentemente os ombros e a nuca, alisei com uma das mãos suas faces banhadas em lágrimas, a outra pousava firme aos seus seios. Colei-me ao seu corpo para que ela pudesse acalmar-se e assim fiquei para aplacar sua fúria revoltada. Aos poucos foi serenando e deitou a cabeça ao meu ombro para sussurrar docemente Adalgisa Nery: Espero o princípio, porque o fim já está comigo desde minha formação. E o que era fogo em carne viva, era a paz do amor às labaredas da entrega. Até mais ver.

 

A FOTOGRAFIA DE MANOEL TONDELLA

A arte do fotógrafo Manoel Tondella (1861-1921), um dos mais importantes da segunda metade do século XIX pernambucano, com as paisagens urbanas retratadas e documentando as transformações do Recife, entre os anos 1890 e as duas primeiras décadas do século XX. Veja mais aqui e aqui.