quarta-feira, outubro 28, 2020

MARGARET ATWOOD, WILLIAM GOLDING, GUYAU, WAGNER TAVARES, TIPITI & LULA CARDOSO AYRES


  

TRÍPTICO DQC: BATISMO DE FOGO - Há muito que o meu coração espera! Por um cêntuplo de vezes evitei sem firmar: não abjurei meus sonhos, nenhum perjúrio lavou-me o pecado e a inquisição. Quem me acolherá ou direi assim tão só, compungido, minguando nas cinzas da primeira vez, do primeiro amor, do que foi para não mais. Há muito que o meu coração poreja na pia e no nome, aniquilado e só não serei jamais consagrado em qualquer sacramento, apenas confirmado como ex-humano na minha pletora alucinação. É nessa hora que ela chega Zélia Duncan cantarolando Alma de Antunes e Pepeu: Alma, deixa eu ver / Deixa eu tocar (alma, alma, alma) / (Deixa eu ver) / (Deixa eu tocar) / (Alma, alma, alma) / Superfície (alma, alma) / Deixa eu ver sua alma (alma, alma) / Alma (alma, alma, alma). E me beija sorridente com a frase do filósofo e poeta francês Jean-Marie Guyau (1854-1888): A vida é como o fogo: só se conserva, quando se propaga! E com a comiseração pelos miseráveis incapazes e decadentes, as labaredas do seu fogo incendiou o que de mim restava corpalma.

 


DANÇA DO TIPITI – Imagem: Tempo (2012), arte do escultor, fotógrafo e artista multimídia Wagner Malta Tavares. – Do meu quarto um local desconhecido e ae longe as vozes: Dança, dança, dançador, / dança com valor, / dancemos todos juntos, / cada qual com seu amor. / Traça e retrança, / volta a trançar, / que o tipiti / vai começar. Lá-lá, um passo pra lá, / Lá-li, um passo pra qui, / dancemos todos em roda, / tecendo o tipiti. / Destrança as tranças, / ó meu amor, / que o tipiti / já se acabou. Fui levado por ela e ao dobrar a esquina pude constatar a festança. Já havia visto o pau-de-fita, sabia lá esse auto era índios tarianos ou aimorés, uma ciranda com translação em ziguezague e trançando fitas coloridas com palmas, queda, anta, rede e croché, trança do lenço e destrança o trancelim, cacetão, cacetinho cruzado ou doido com bastões nos moçambiques, pra findar no florão ou tope, em reverência ao renascimento da árvore depois da invernada, prenúncio da primavera na sanfona, violão e pandeiro, violas e rabecas. Será vilão ou moinho, engenho ou traçado, jardineira ou mastro no Crato, Cariri, Varginha ou Pernambuco, do sudeste pro sul, noutra cantoria: O amor quando nasce / Parece uma flor / É tão delicado / Tão cheio de amor / Seria tão bom / Que ele fosse uma flor / Sem ter espinhos / Da dor / Depois que tudo / É sonho ao luar / Começam os desencantos / O amor passa a existir / Nessa voz do nosso canto. E ela me puxava para mais perto, como se quisesse participar das comemorações que só muito depois tomei pé no Roteiro do folclore amazônico (Sérgio Cardoso, 1964) e Os supostos festivais folclóricos do amazonas (CNFL/IBECC, 1962), ambas as publicações do historiador, professor, escritor e advogado Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Ela encantada com tudo aquilo, abraçou-me forte como se quisesse ao saracoteio sussurrar Margaret Atwood: Na primavera, no final do dia, você deve cheirar a terra. E do seu corpo o perfume das flores, frutas, lavouras e rincões para minha vida.

 


ELA, PÁSSARO NA PIRANDRIA – Imagem: a arte da bailarina inglesa Julia Farron (1922-2019) – E era da pele dela em chamas o incenso do bailado no Pássaro de Stravinsky em plena Pirandria – aquela ilha do Supplément de l’histoire véritable de Lucien (Paris, 1654), do historiador, geógrafo e diplomata francês Frémont d’Ablancourt (1621-1696) -, e a se transformar em centelha flutuante no ar, para que em mim fogo-fátuo, ser a vida, a iluminação e o renascer, a paixão e o destrutivo infernal, a intuição e o incêndio criminoso, o ritual de passagem para purificação, a regeneração e as cinzas, a fricção e o sexo, o arquétipo da poética e da metafísica, para me acordar no real da vida com William Golding: Pior do que a loucura, a sanidade. E por três vezes ininterruptas, quando ao talento curto de imaginação sem fôlego e inspiração nenhuma, ela me levou incólume em suas mãos aladas pela travessia da fumaça tóxica da distopia de ontem e agora; e por seis vezes consecutivas em que a casa desabou sobre minha sombra antes de posar para retratos na parede e a voz que é minha e o braço que é meu envolveu-a como se eu fosse um fantasma de fogo pobretão e morto de fome a ressuscitar no domingo de todas as semanas e meses e anos vindouros; e por nove vezes sucessivas, depois de cantar e contar as minhas histórias arruinadas sem adornos nem louvores, os pulmões que são meus tiveram o privilégio de ser ocupado pela fragrância de sua carne nua na colina das estrelas para acudir o destino no reino da esperança. E nela sou e me realizo. Até mais ver.

 

A ARTE DE LULA CARDOSO AYRES

A arte do pintor vanguardista, desenhista, cenógrafo e programador visual Lula Cardoso Ayres (1910-1987), que participou de exposições no Brasil e no exterior, executando cerca de cem painéis e murais em diversas cidades brasileiras, entre as quais Recife, Salvador, Santos, São Paulo e Natal. Seus quadros fazem parte do acervo de alguns museus brasileiros e de coleções particulares da Europa, América do Norte e América do Sul. Veja mais aqui e aqui.