segunda-feira, outubro 12, 2020

MONTALE, ALBAN BERG, ELIANE PROLIK, POLANSKI, NÍSIA FLORESTA, TICIANO & NELSON FERREIRA

 

 

TRÍPTICO: DIÁRIO DO QUARTO CALEIDOSCÓPIO – PRIMEIRO ATO - Ao som de Lyric suíte for string concert, de Alban Berg - É sempre noite. Lá fora o mundo barulhento e o genocídio: fúria, bravata, infâmia, fanatismo, ganancia, amolações triviais. Parece nonsense e tudo sob suspeita: as pessoas se tornaram revoltosos vulcões eruptivos e se detratam uns aos outros. A parede acende como uma tela cinematográfica: a Via Láctea. Um meteoro surge da quina do teto, acompanho seu percurso descendente até se espatifar num ponto qualquer do piso. Da explosão, um minúsculo ser caminha em minha direção, cresce a cada passo, já quase dois metros, reconheço Barão de Munchausen que me acena, faz uma mesura e me aponta para outro minúsculo que aparece do mesmo lugar que saiu. Também cresce a cada passada, já reconheço, é Alice: Você está completamente pirado! Um segredo: as melhores pessoas são assim. Ela pisca um olho, chama o companheiro que está com as pestanas arqueadas olhando para mim com um escárnio e braços abertos. Ambos seguem de volta e desaparecem. Não era sonho, sabia, era o alerta para o inimigo invisível e o medo da contaminação: lavar bem as mãos, tudo esterilizado. Do meu quarto, o caleidoscópio: a toca do meu coelho. Não preguei o olho, a parede acendia e apagava, parecia me convidar para atravessar a galáxia. Mantenho-me quieto, cabeça aos joelhos, até o fim uma oração de serenidade: um dia de cada vez e as circunstâncias, assim seja! Um esforço fora do comum, nada funciona direito com o desgoverno. O pangaré gostou ou não? Não sei, cuidado com o monstro, ele está em Brasília. Que toquem fogo no mundo, ninguém sobreviverá.

 


SEGUNDO ATO DO CADERNO DE NOTAS – Imagem: arte da escultora, desenhista e gravurista Eliane Prolik. – A cena: Ela saiu do escritório e foi visitar a família em Cachoeira do Sul. Lá informou que ia se mudar de Canoas para São Paulo. A despedida e a estrada aberta. Aos vinte sete anos, a militância no VPR. Era 17 de maio, preparos para o aniversário dia 25. A surpresa de 4 tiros, 1 no braço, outro no peito, 2 nas costas alcançando a coluna. Nenhuma festa mais, a família desestruturada: o pai soube por um delegado do assassinato e morre de desgosto. A irmã Valmira se mata. Apenas uma tabuleta ao vento esquecida com a inscrição: Alceri Maria Gomes da Silva (1943-1970). Juntou-se a Labibe e Catarina, lá haverá justiça, pelo menos. Diante de mim, Nísia Floresta: Flutuando como barco sem rumo ao sabor do vento neste mar borrascoso que se chama mundo, a mulher foi até aqui conduzida segundo o egoísmo, o interesse pessoal, predominante nos homens de todas as nações. Ela sorri e me oferece um botão do lírio da felicidade. As imagens são tantas: asfixiados numa câmara de gás das autocracias e, ao lado, jogaram pela janela um idoso numa cadeira de rodas. Outras cenas superpostas: joelho fardado no pescoço de um negro indefeso, agressões físicas, tortura, caça policial, tiros. No meio disso tudo sou O Pianista de Polanski e ouvi alguém dizer que ali outro abotoou o paletó, pronto, viagem perdida: Se fosse de morte matada, pelo menos! Quem ainda acredita no Estado: nunca cumpriu a sua parte, sempre se desvia para interesses e comodidade. O que ainda nos resta além do extermínio, não sei.

 


TERCEIRO ATO: MANUSCRITOS DO CADERNO, NOVELA INSTANTÂNEA – Imagem: Perseu & Andrômeda (1554), de Ticiano. - Lá vou eu... Atravessava o pátio da rodoviária, um troço e lá estou enfermo, estirado no piso. Quando dei por mim, o meu quarto era uma enfermaria hospitalar, empurrada para lá e para cá. O mundo girava e eu imóvel, uma dor profunda no peito, nenhuma ilusão, desiderato pras cucuias. À espera de uma revelação, caí no vazio, não sei se haverá como emendar a vida. Sou saudade de tudo. Ouvia alguém alertar: Cuidado com o degrau. E o Paradoxo de Zenão era um poema de Montale: Vós, palavras, traís em vão o ataque / secreto, o vento que sopra no coração. / A razão mais verdadeira é de quem cala. Já sabia o solo minado, um passo em falso, cara ou coroa: a sorte estava lançada. O poder das escolhas e perdi pilares, extensores e pontes, quanta mendacidade ao meu redor. Minha especialidade? Viver, apenas. Fraqueza? Seguir. Sempre vou e, quando dou fé, todos estão voltando. Que descascasse o abacaxi, o pau ia cantar, com certeza. Sobrevivi a todo tipo de recusa e fui soterrado por enorme pedra. Isso há anos. Qualquer reincidência ou é efetiva ou duvidosa. Falando às paredes sou o que quiser que eu seja, nada mais. Até mais ver.

 

NELSON FERREIRA, O MORENO BOM

Felinto, Pedro Salgado, / Guilherme, Fenelon / Cadê teus blocos famosos? / Bloco das flores, Andaluzas, Pirilampos, apôis-fum / Dos carnavais saudosos / Na alta madrugada / O coro entoava / Do bloco a marcha-regresso / E era um sucesso dos tempos ideais / Do velho Raul Moraes / Adeus, adeus minha gente / Que já cantamos bastante / Recife adormecia / Ficava a sonhar / Ao som da triste melodia.

Evocação nº 1, frevo de bloco do compositor, músico e maestro Nelson Ferreira (1902-1976), autor de inúmeras composições nos mais diversos estilos, como canção, foxtrote, tango e, sobretudo, frevos. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.