quarta-feira, outubro 14, 2020

LOU SALOMÉ, CUMMINGS, KHATERINE MANSFIELD, JACOB BOEHME, MARTA SOARES, HÉLIO FEIJÓ & O TEMPO DE ALSONDONS


  

TRÍPTICO DQC: PRÓLOGO DA TIRINETA – Perdi a completa noção do tempo. O que fazer, não sabia. De repente meti a mão no bolso, nenhuma cédula ou moeda, mas havia algo lá causando incômodo. Puxei do fundo, saquei um punhado de sonhos! Nossa! Cuidadosamente tive de deixá-los intocáveis, bem acomodados onde estava. Um deles buliçoso ficou na minha mão. Soltei e fez-se uma sombra de ave desconhecida que tomava vulto. Ficou enorme, assustei-me. Possivelmente nem era um sonho meu, devia nem ter mexido. Aos poucos a certidão: todo ambiente transformou-se no quintal da infância nunca mais visto: o aroma aprazível, o ruído da pisada agradável nas folhas do chão, o gosto de fruteira no ar, os galhos do abacateiro que eu gostava de me atrepar, o gorjeio dos pássaros em polvorosa, os calangos correndo em ziguezague pelo muro, a vaga entre as folhas da bananeira na parte do muro que eu gostava de me pendurar nas traquinagens, coisas distantes e inesquecíveis. O desejo da criancice imperou e me fez apoiar o pé na raiz da mangueira, mãos pelo reboco até avistar, por cima do parapeito, uma desconhecida a se banhar nua na lavanderia. Aquietei-me. Não era aquela que meus olhos infantis costumavam apreciar. Essa era mais morena, corpanzil robusto, formas bem delineadas. Percebi seus grandes olhos negros agateados ao me flagrar. Foi muito rápido. Outra olhadela e, a constatação, que era muito bonita com seus lábios ressaltados, seios eminentes, ancas simpaticamente arredondadas sobre coxas e pernas vigorosas, um verdadeiro milagre da natureza. Ao ser novamente descoberto, esquivo na timidez e ela pouco se importava, até sorriu-me graciosa. Com a minha insistência em vê-la, acenou-me: Vem! Eita! Pulei imediatamente e um lodaçal no outro lado do muro me deixou em apuros, como se estivesse entre areias movediças. Ela estendeu-me a mão em socorro e não consegui me segurar. Escapuli para despencar num poço sem fundo de nunca mais parar de cair e ouvi-la Lou Salomé: A vida humana – ah / A vida sobretudo – é poesia. ; Inconscientes, nós a vivemos, dia a dia / passo a passo – mas em sua intangível / plenitude ela vive e se nos traduz em poesia. / Longe, muito longe da antiga frase / ‘Faz de tua vida uma obra de arte!’; / Não somos nós nossa obra de arte. Não sabia onde ia parar, sei que a vertigem foi maior.

 


A TRAMA ABSURDA – Havia então perdido toda noção de tempo e espaço, não sabia nem onde estava. Vi um cotoco de vela e marquei para aprumar direção. Adiantou nada. Pensei haver por ali uma lamparina ou clepsidra ou ampulheta, sandglasse, merkhet, gnômon, pêndulos, cronômetros, ou os pneumáticos de Popp e Resch, o acrônimo Atmos, o de Flora, ora, ora, no meio da roda viva nem preciso mais de nada da horometria, marcador nenhum de tempo é preciso, para quê? É o mesmo de contar o inexistente. Se não sei mais onde estou, de necessário mesmo, prefiro o mais curioso deles no lugar onde fui parar: em Alsondons. Sim, soube por Robert-Martin Lesuire, François-Augustin Quillau e Victor Desenne, na publicação do L’aventurier français, mémories de Grégoire Merveil (Paris, 1792 – Nabu Press, 2013): [...] o velho método de medir o tempo, no qual uma menina de seios nus sobe num pedestal situado na praça principal e um rapaz põe as mãos nos seis dela, contando em voz alta as batidas de seu coração: cada batida corresponde a um segundo. E era a minha mão no seio da vizinha que reaparecera e eu contando as batidas do seu coração. O dia amanheceu e, de repente, Jacob Boehme ecoou na minha fantasia: No Amor, há certa grandeza e expansão do coração que é inexprimível, pois dilata a alma tanto quanto a inteira criação de Deus. E isso será verdadeiramente experimentado por ti, para além de todas as palavras, quando o Trono do Amor se estabelecer em teu coração. Nós, homens, temos um livro em comum que aponta para Deus. Cada um tem isso dentro de si, que é o inestimável Nome de Deus. Sim, ouvi atento. Ela ao meu lado a tudo também ouviu, deitou minha cabeça em seu seio desnudo e cantarolou um sensual acalanto para que eu dormisse em sua carne e não mais soubesse de nada além da vida nela, porque lá fora todos se matavam e se beijavam num estrepitoso morticínio.

 


EPÍLOGO DAS CULMINÂNCIASImagem: cena da instalação coreográfica de dança, performance e vídeo O banho (2004), da premiada coreógrafa e bailarina Marta Soares, refletindo sobre a subjetividade de Sebastiana de Mello Freire (1887-1961), dona Yayá, uma homenagem à mulher da elite paulistana que foi diagnosticada como doente mental entre 1919/1961: Eu trabalho nas minhas criações, entre outras coisas, os traumas de ter crescido em uma pequena cidade do Interior de São Paulo, durante a ditadura militar, numa sociedade patriarcal. Acredito ser esse um dos motivos pelo qual venho criando danças sobre a impossibilidade de dançar. – Estávamos na banheira, seu sexo aprisionava o meu mordiscando-o deliciosamente, suas pernas me envolvia não me permitindo qualquer afastamento. Atracados prazerosamente, ela me beijava sussurrando sua vida, passado, desapontamentos, traumas e frustrações. Na voz dela Katherine Mansfield: Realmente, não creio na alma humana, nem nunca cri. Tenho a convicção de que as pessoas são como as malas: cheias de coisas diversas, são expedidas, atiradas, empurradas, lançadas ao chão, perdidas e reencontradas, até que, por fim um Último Transportador as atira para o Último Comboio. Beijei-a com poemas e canções que fiz para ela e leu-me um poema de Cummings: Não ser ninguém a não ser você mesmo, / num mundo que faz todo o possível, noite e dia, / para transformá-lo em outra pessoa / significa travar a batalha mais dura / que um ser humano pode enfrentar; / e, essencialmente, jamais parar de lutar. Dos seus olhos saltavam estrelas e ela as colocava como adereços nos cabelos, aformoseando-se para jogá-las aos beijos para mim, deixando-me iluminado com a sua saliva e, desejando-a cada vez mais, deitou sua cabeça sobre o meu ventre alisando carinhosamente meu sexo rijo entre os lábios e dedos para que tudo fosse recheado pela magia dos prazeres. E se entre a vida e a morte redivivos desfalecíamos e tornava-nos a ressuscitar porque ela bailava nua no meu corpo e eu no dela às voltas do planeta. Até mais ver.

 

A ARTE DE HÉLIO FEIJÓ

A arte do premiado poeta, pintor, desenhista e arquiteto Hélio Feijó (1913-1991), um dos mais completos e inovadores artistas na história da arte pernambucana, fundador do Grupo dos Independentes (1933) e da Sociedade de Arte Moderna (1947). Veja mais aqui & aqui.