sexta-feira, setembro 06, 2019

REICH, AMANDA BERENGUER, CATARINA GUSHIKEN, MARCIA DENSER, JOSÉ ZÉ, EDNA ALCÂNTARA & JOSÉ LOURENÇO


ZÉ DA KOMBI - José Zé era só isso, órfão e um monte de apelido: inchado, ocrídio quase estrábico, banguela, catingoso e juízo pouco. Nunca deu certo com as meninas: a primeira deixou-lhe pela inhaca, deixando-o na rua da amargura pelo primeiro cheiroso que apareceu. Da segunda, sobrou uma mão na frente e outra atrás: fugiu intoxicada nos braços de um que respeitasse as suas narinas com relação às flatulências. A terceira, não teve, ficou nisso mesmo. Na pior: largado, fodido e despejado. No rol dos pedintes, dormia aqui, acolá, ao relento. De repente: uma bolada dos céus, não se sabe ao certo se por herança ou trabalhos de Hércules. Primo da hora apareceu com negócio da China: uma Kombi sabe-se lá ano e modelo. Engraçou-se e justou, pá daqui, pá dali; encalistrado pelo prônubo, adrede, à primeira vista, pagou mais que o devido e alisou, nada mais nos bolsos: era o amor e o amor vale qualquer preço e sacrifício. Ganhou novo apelido: Zé da Kombi; o dela, Fogo no rabo. Não era lá essas coisas, já havia incendiado um tanto de vezes, estava na cara. Mas era fogosa, queimava a lenha, parecia, de tão fumacenta. E par e passo, estreitaram mesmo um caso de amor. Confira: ele não sabia dirigir: E agora? Era ela ensinada. Bastou ele impar com as mãos na direção e um monte de ideia na cabeça, ela saiu servindo por frete. Doravante o seu talismã e ganha-pão. Arregaçava as mangas e ela subia rampa gemendo: erguia a venta, mostrava os dentes, sentava na traseira e vupt, nem se queixava; leal, nunca se rebelou. Ele esnobava e com tirania violava todos os limites, imponente demonstração de força e mando. Ela lá, à medida. Contudo, se ele arrumasse qualquer pro esquento do pé, ela se amuava, aos caprichos, enciumada. Uma bronca se desse escapulidas. Pulasse a cerca, ela se vingava. Ele entendeu, afinal, amava. Veio o casamento, um escândalo. Nenhum padre, pastor ou religioso que aprovasse aquilo. A maior mangação: ela de véu e grinalda, ele todo como manda o figurino. Ah, deixaram não. Ele nem aí, saíram na barulhada de recém-casados. E nada de adultério: juraram, entre si, amor eterno, e isso desancando a gramática e a credulidade pública. Era seu segredo de Estado: ele, Bonaparte; ela, Josefina, ficou-lhe o nome: Zefinha. Atravessaram rios e desertos, morros, mares, carregando pecadores, anjos e arcanjos. Afora brebotes de todo tipo. Deram até uma carona para o Criador que ia para o paraíso. Na saída, arregalaram os olhos com o inominado e uma tuia de alma sebosa. Passaram pelas portas do inferno, escapulindo a nado pelo rio de Caronte, pântanos, transumantes, até toparem com a Salamandra das grandes privações e expiaram todas as faltas, blasfêmias, lavaram a alma entre estrelas, nuvens passageiras, nebulosas, meteoros, cometas. Equilibraram-se no trapézio de uma ponte sideral com o zodíaco, as estações, feito Ísis e Osiris, desceram para uma escala no Japão e três anos depois à Austrália, o seu grande sonho. Trilharam as vinte mil léguas submarinas, fizeram a volta ao mundo em dois mil dias, contaram até dez, alcançaram a lua, retornaram pelo polo sul, seguiram pelas cordilheiras, daí até o Alaska e aprumando no meridiano Greenwich, escorregaram até Maputo, para vencerem o Índico até Shangri-lá. De lá para a Transilvânia, subiram num arco-íris por toda Via-Láctea, rumo a outras galáxias por vórtices e abismos. Depois de muito zanzarem por aí, labutas e prazeres, se arrancharam como hóspedes num lugar qualquer em que colheram umas espigas de milho para assar ao Sol, largando fora os sabugos. Enfim, voaram sobre todos os obstáculos e irromperam no oco do mundo até se arrancharem cansados e felizes para sempre: ela esquartejada num ferro velho, ele, ninguém sabe, só uma lápide: Aqui jaz quem amou Zefinha. Quem botou lá? Quem sabe, vá saber. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS: Xilogravura de José Lourenço [...] Feito o caso da menina que estava já três anos sem andar. Os pais trouxeram a criança num carro de mão, as pernas finas apoiadas numa tábua, pois, de tão duras, nem dobravam. Dizem que bastou o beato botar a mão na cabeça dela, rezar e a menina se pôr de pé. Histeria, isso é histeria, não é milagre coisa nenhuma – o padre esbravejou na missa – coisa de gente ignorante que vai atrás de artimanha de catimbozeiro. [...] Era sempre intenso o bulício no mercado, onde se misturavam, ao pregão dos comerciantes, berros de cabritos, grunhidos de porcos, a farra das guinés, perus e galinhas, retiradas de qualquer eito de dentro do garajau, para que as donas de casa pudessem lhes soprar as penas sob as asas e pendurá-las pelos pés, antes de decidirem qual deles comprar. Àquela manhã, a agitação revelava-se mais intensa por conta do aglomerado de pessoas na frente do pórtico principal. Estavam tão próximas umas das outras, que não se podia ter ideia do que se tratava. O padre preparava-se para indagar quando um coro de vozes ergueu-se em vivas e apupos ao beato Chico Noveneiro. [...]. Trechos do conto O beato e o padre, da escritora Edna Alcântara.


ALGUÉM FALOU: [...] As mulheres da minha geração perambulam pelo castelo-em-ruínas do casamento. E se possuem a chave da liberdade conferida pela pílula, nada podem fazer com ela. Deram-nos a chave, mas esqueceram de construir a porta. Pensamento da escritora e jornalista Marcia Denser.

A POESIA DE AMANDA BERENGUER
VOCÊ NÃO QUER VIR CHORAR COMIGO? - Há algo / a ameixa roxa caiu da árvore / uma nuvem escurece placidamente o quarto / ninguém? / pingando a torneira da cozinha sereno e suave / eu preciso de você / eu sou descendo uma escada rolante Isso me leva cegamente / sou eu? / no entanto, me vejo sentado à mesa escrita e "Quando eu quero chorar eu não choro e às vezes choro sem querer "/ meu irmão / teremos uma reunião plañidera nas entranhas de angústia / o tempo olha para nós e nos engana / Armadilha? / Alucinação? / Ameixa roxa / Ele caiu da árvore / -Desculpe / O vento disse / e passou por / levando a coisa mais querida / e aqui estou eu / na borda em si / O que não sabemos / neste canto da casa / preciso de você / ouça quem me ouve / Você quer vir chorar comigo?

NADA - Cair no vazio - sem mãos / segurar: ah! conjugar / verbo ativo - por favor! / Alcançar uma corda - uma escada - / uma mão amiga - / que guardam os minutos - horas e anos - / caindo no poço insondável / do nada -. / O tempo disfarçado de presente / Nos engana em seu esplendor, / e passa e passa sem possível detenção: / hoje somos e amanhã seremos – cúmplices eternos do nada.
PRIMAVERA I - Às vezes, quando estamos no mundo inteiro / Para ver a terrível maravilha, / quando vemos a primavera nascer / Sob um grito mortal, como crianças. / Há momentos tão difíceis, e estamos / de pé, na tolerância respirável / da terra, entre luzes de perigo, / comendo nossas unhas, escrevendo / uma carta com terra no céu, / para nos ver até que ponto, até / quando, e às vezes nos vemos como mortos / com os ossos floridos, bem reis / deitado e com jóias. Para nos ver. / E há momentos entre outros, tão serenos, / em que vamos de sombra, e não é vista.
Poemas da poeta uruguaia Amanda Berenguer (1921- 2010) que expressa: Ser poeta é como ser um cozinheiro fabricando na cozinha todos os dias, um pão extravagante, extra-limitado, ex-trafamiliar, extraterritorial, extravenado, extralegal, extralegal, pão com fronteiras e leis próprias, cuja farinha é moída entre Eu sou solitário e pessoal, e o mundo e a sociedade que nos rodeia, onde trabalham integrados, são as conchas mais duras com o pólen mais leve.Ser poeta no Uruguai, hoje é ser quem eu sou, ou parece ser, em um certo lugar do planeta. Veja mais aqui.

A ARTE DE CATARINA GUSHIKEN
Sou artista mestiça, inspirada por memórias que migram por peles, lugares, retratos, e pela natureza que desabrocha através destas lembranças.
A arte da artista Catarina Gushiken. Veja mais aqui.

A OBRA DE WILHELM REICH
Somos responsáveis pelo o quê fazemos e recebemos. Mas não somos responsáveis pelo que sentimos. Quem sou eu para ter opinião própria, governar minha vida e achar que o mundo é meu? Não dou festas para divulgar minhas ideias. Se minhas ideias forem válidas, elas próprias se divulgarão.
A obra do médico, psicanalista e cientista natural Wilhelm Reich (1897-1957) aqui e aqui.
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Mais do Dia do Sexo aqui, aqui, aqui e aqui.