quarta-feira, abril 10, 2019

CORA CORALINA, MILORAD PÁVITCH, CASSI ABRANCHES, FOLCLORE PERNAMUCANO & O PAPA-FIGO DE ÁGUA PRETA


O PAPA-FIGO DE ÁGUA PRETA - No tempo que os bichos falavam, era o maior converseiro. Tudo criado numa mata de engenho. O dono da propriedade, não deixava ninguém tocar em posse dele. Todo dia, depois do almoço, ele ia para a mata amontado no seu cavalo, chegava lá, arreava e armava a rede, os bichos todos ao redor dele, tudo tomando conta. Quem ousasse mexer no que fosse, ele mandava açoitar com banho de mel de furo e amarrava no cercado para lambidas das vacas e depois uma pisa de tabica cipó-pau. Era para ninguém se achegar em coisas dele, a lapada comia. Tinha desses que quanto mais o cipó vadiava, mais amaldiçoava e rogava praga. Muita gente morreu disso. Outros, abriam da vela, juravam nunca mais e eram liberados. Um dia lá, um caçador estranho entrou na mata. Ele tinha feito uma treta com um xangozeiro, levou umas três coisas encantadas e enterrou na boquinha da mata. Do dia pra noite, nasceu três pés de pau. Quando o senhor-de-engenho chegou lá para madorna: Oxe, que pés são esses que nunca vi aqui! Estava tudo grandão. Aí a coruja falou: Cumpade, por que o sinhô tá espantado? Quem fez isso aqui, Cumade? Ah, foi paga de um safado que passou por aqui! Ele chegou às escondidas, desembrulhou três pacotes e enterrou aí onde estão esses pés grandões. É mesmo? Era de noite, eu estava acordada, eu vi esses pés de pau crescendo e se estirando de riba para cima! Será que foi grato por eu não tê-lo matado? Num conte com isso não, aquele tem parte com o capeta! Aí o cachorro falou: Patrão, tenha cuidado. Aí o coronel foi lá, foi cá, espiou direitinho e nem ligou, armou a rede e tirou a madorna dele. Todo dia ele ia lá, armava a rede e roncava. Chegou dele se casar. Arrumou mulher, chamou o padre e o juiz, fez festa. Teve um filho que quando estava com ele passeando pelas terras, aí se descuidou, o pé de pau caiu em cima do menino e matou. Quanta tristeza, quase nem ia mais para lá. Mas o tempo passou, a mulher embuchou e deu-lhe outro filho. Já com sete anos, brincava o menino perto da mata, amontado num carneiro, ia passando, outro pé de pau caiu e matou. Aí ele ficou acabrunhado, queria mais saber da mata não. Até que um dia, abusou-se e olhou pros animais para escolha que ia vender, vender tudo, tinha mais graça não. Um bentivi vinha voando e ficou espiando para ele. Depois a ave pulou no ombro dele e se espantou: Que é que é isso? Deixe que o passarinho tinha uma notícia: Não venda nenhum desses seus bichos não, que todos eles juntos, acabaram de matar o último pé de pau que restava da mandinga. Como assim? Tudo quanto era bicho passou a fazer suas necessidades naquele pé de pau restante e acabou matando ele. Foi mesmo? Foi. Porém, não foi, depois de um tempo, o pé de pau ressurgiu mais robusto, grossão. Aí veio o terceiro filho e quando já estava grandinho, ele botou meio mundo de capanga para tomar conta dele. Uma tarde mormaçada, não teve jeito, a mata pegou fogo e os bichos que estavam ali, muitos fugiram, outros morreram queimados. Será que aquele pau amaldiçoado se queimou? Tomara. Passou-se o tempo, não foi mais lá na mata e se esqueceu. O menino crescia solto na buraqueira, já andando a cavalo e crescendo, administrando tudo com o pai, negociando, comprava e vendia. Surgiu um boato: toda vez que o filho saía de casa para levar ou trazer gado, uma criança aparecia morta e com o fígado arrancado. Bastava botar o pé fora de casa, virava a noite, no outro dia, crianças desaparecidas e quando encontradas, eram cadáveres sem fígado. O povo juntou as pedras, água na fervura: O filho do homem é papa-figo. E pegou. Nas noites de lua cheia, ouviam-se os uivos: Valha-me, Deus! É ele. Nossa Senhora me ajude! O povo todo tremia com rezas fortes, promessa até para santo que não existia. Os anjinhos estraçalhados, tudo era enterrado. Fizeram promessas, novenas, procissões, rezaram missa, o padre saiu benzendo as encruzilhadas e uma missão ficou por ali bem quinze dias. Chegou o dia de prendê-lo, acabar com a maldição. Avisaram ao pai dele que choroso, saiu andando sem destino, foi topar na mata que havia tomado corpo depois do incêndio e se lamentava sozinho. Foi aí que a coruja apareceu de novo e disse: Estou sabendo de tudo, seu menino está preso e será condenado. É, tem jeito não. A gente pode salvar ele! Pode não, ele virou papa-figo. Foi ele não, foi aquele nego que plantou os três pés de planta aqui. Foi nada! Foi. Toda boquinha da noite ele vinha cheirar a cinza daqui, se encantava e virava um cachorro grandão que saía uivando por aí. É ele que pega as crianças e arranca o fígado com dentes. Como a mata cresceu de novo, ele não tem poder de se encantar e a gente pode pegá-lo. Saíram e foram caçá-lo. Cadê-lo? Quando deram fé de um fogaréu lá longe, correram para o local. Lá estava ele se encantando, quase virando papa-figo, foi aí que o coronel agarrou-lo e amarrou-lo todo, arrastando-o estrada afora, até deixá-lo preso num tronco perto de uma panela de formiga, calabriado de mel e com os animais soltos para lambê-lo. Aí ele tornou e pediu para não ser castigado assim, abriu da vela, botou pra falar, que contava tudo, que inocentava o filho dele. Então ele foi amarrado, mãos e pés de travessa num cavalo e tocou para a cidade. Chegando lá, mandou chamar o povo todo e o desgraçado contou tudo tintim por tintim. O povo ficou injuriado de enforcá-lo na hora, depois tocaram fogo. Virou cinza. O vento bateu espalhando as cinzas que tocavam onde os meninos foram mortos e todos ressurgiam vivinhos e corriam para suas casas. Era uma vez. PS: Recriação de O papa-figo, narrado por Zé Negão - José Francisco da Silva, de Água Preta, recolhido por José Fernando de Souza e registrado na obra Contos populares brasileiros: Pernambuco (Massangana/Fundaj, 1994), organizado por Roberto Benjamin). © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo & aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Um leitor de sonhos kazar, ainda aluno em um mosteiro, ganhou de presente um vaso que colocou em sua cela. De noite, colocou nele seu anel. Quando quis, porém, reavê-lo, no dia seguinte de manhã, o anel não estava mais lá. Em vão, enfiava seu braço no vaso, não conseguia tocar o fundo. Isto o surpreendeu, pois o recipiente parecia menos fundo do que o comprimento do seu braço. Ergueu-o, mas, sob o uso, o chão era liso, e não havia nenhuma abertura no vaso, como é comum com qualquer outro vaso. Pegou um bastou e tentou atingir o fundo, mas sempre sem sucesso; o fundo do vaso parecia escapulir dele. Ele pensou: “Aqui onde estou é o meu limite” e dirigiu-se a seu mestre Mokadaça Al Safer, pedindo-lhe que lhe explicasse o significado do vaso. O mestre apanhou uma pedra, jogou-a no vaso e contou. Quando chegou a setenta, ouviu-se no interior do recipiente um barulho de mergulho, como se um objeto tivesse caído na água e o mestre disse: - Poderia explicar-te o que representa tei vaso, mas, antes, pergunta-se se isto de fato vale a pena. Assim que te disser o que é, o vaso adquirirá para ti e para os outros, um valor inferior ao que tem agora. Efetivamente, qualquer que seja seu valor, ele não pode ser superior ao valor de tudo. E assim que lhe disser o que é, o vaso não será mais tudo o que não é e, portanto, não será mãos o que agora é. Quando o aluno concordou com o mestre, este pegou um bastão e quebrou o vaso. Estupefato, o jovem perguntou-lhe o motivo desse dano e o mestre replicou: - O dano teria consistido em dizer-te para que servia este vaso, antes de quebrá-lo. Mas como não conheces seu uso, o dano não existe; o vaso continuará a ter para você a mesma utilidade que tinha antes de ser quebrado. De fato, o vaso kasar ainda tem a mesma utilidade até hoje, embora não exista há muito tempo. [...].
Trecho extraído da obra O dicionário kasar (Marco Zero, 1989), do escritor sérvio, tradutor e historiador sérvio Milorad Pávitch (1929-2009), um romance lexical com duas versões, uma masculina e outra feminina.

A COREOGRAFIA DE CASSILENE ABRANCHES
A arte da coreógrafa e bailarina Cassilene Abranches que iniciou seus estudos na Escola Municipal de Bailados de São Paulo, ingressando aos 14 anos na Raça Cia de Danaça (SP) e integrou companhias como o Teatro Guaíra (PR) e Corpo (PR), assumindo exclusivamente a profissão de coreógrafa. Foi Cassi quem criou o espetáculo brasileiro para a abertura do Fórum Econômico Mundial, na Suiça, em 2012. Veja mais aqui.

A RAPOSA, A SABIÁ E O CANCÃO
Era uma raposa... ou, a sabiá tinha três filhinhos. Ai, a raposa chegou um dia, disse: Ô cumade sabiá, me dê um filhinho desses teu! Aí, ela, a sabiá, disse: - Eu não dou não! Disse: - Me dê, cumade sabiá que cabo de raposa corta pau! Aí a sabiá muito tola, pegou o filhinho jogou lá. Aé ela, bá, carregou e comeu o filhinho da sabiá. Ai, foi s’embora. Quando foi no outro dia, ela chegou de novo: Ô cumade sabiá, me dá um filhinho desses teu! Dou nada! Num já dei um ontem: e pra dar outro hoje como é que eu vou ficar? Vou ficar sem nada. Aí ela? Oi, cumade sabiá, cabo de raposa corta pau! Aí a pobre besta jogou outro e foi chorar, pegou a chorar. Quando foi no outro dia o cancão chegou e disse: - Cumade sabiá, por que tá chorando? Ô cumpade, três filhinhos que tinha, a cumade raposa já comeu dois... e quando é hoje, ela vem pedir outro. Você largue de ser besta! Ela disse que cabo de raposa corta pau... E você é besta? O que é que você é? Você já viu cabo de raposa ser faca? Em cabo de raposa num tem faca, como é que ela pode cortar pau? Aí a raposa chegou: - Ô cumade sabiá, me dê outro filhinho dos teu! Dou nada! Num dou mais de jeito nenhum, que era três, só tenho um, vou ficar sem nada? Apois, cabo de raposa corta pau! Pode cortar! Agora não me importo mais não que você corte, vá, pode cortar! Ah, isso foi armada do cumpade cancão. Não, foi eu mesma. Foi nada. Foi. Aí a raposa fez um buraco, enterrou-se e ficou com os dentinhos de fora, botou uns caroço de milho. Aí o cancão chegou e foi comer, ela pegou o cancão. Saiu com ele na boca e chegou numa casa e o menino disse: Eita, passou uma raposa com um cancão na boca! Aí o cancão virou para a raposa e disse: - Com licença da palavra, quando eles disser assim, você diga merda! Quando chegou noutra casa, o menino disse: - Lá vai a raposa com o cancão na boca! A raposa então disse: - Merda. O cancão se soltou e foi-se embora.
Contação de Maria do Socorro, da Baixa do Léro, Tacaratu para Waldemir Araújo, registrado na obra Contos populares brasileiros: Pernambuco (Massangana/Fundaj, 1994), organizado por Roberto Benjamin. Veja mais aqui.
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Outras de papa-figo aqui, aqui & aqui.
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Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina. O saber se aprende com os mestres. A sabedoria, só com o corriqueiro da vida.
A obra da escritora Cora Coralina (1889-1985) aqui, aqui, aqui & aqui