O MONSTRO DO
RIACHO DOS CACHORROS - Imagens do
fotógrafo Carlos Calheiros. - Salvo engano,
foi o já septuagenário poeta Abel Fraga um dia amolegando a peia e recitando os
versos “Tanta mulher dando sopa e eu sem
colher pra tomar”, que flagrava voluptuosas moças e senhoras, quase
seminuas, lavavando suas trouxas de roupas com suas vestes sumárias ensopadas
pelas águas do Riacho dos Cachorros, justo nessa hora de revirar os olhos na
força da bronha com a exposição de pernas, seios e intimidades provocantes delas
à mostra, quando avistou um volume monstruoso emergindo das funduras daquele
ribeiro: Que droga é nove? A correria foi tamanha, uma macharia espremida que
espionava as lavadeiras surgiu de repente às carreiras das moitas, outros tantos
que garimpavam um ouro nunca revelado, trocentos pescadores de pitus dos bons e
graúdos, uma mulherada arrepiada com as saias na cabeça, passantes, esmoleus, agricultores,
calungas, meninos, velhos, gente até de um olho só pinotava transidos na maior
gritaria rodagem afora. Isso foi em mil novecentos e antigamente, numa data
perdida no calendário. Acontecimento esse só devidamente registrado na primeira
página do diário A Notícia uns quase seis meses depois, dando conta da primeira
aparição da criatura. Muito tempo se passou com as inusitadas ocorrências, até que
se criasse coragem, que ninguém era besta nem nada, para encarar de longe
aquela assombração com seis cabeças, quatrocentos olhos flamejantes e labaredas
saindo pelas ventas, da sua bocarra com mais de dois milhões de dentes a mais
execrável das catingas, espumando um bafo de gente e animais apodrecidos, uma
inhaca que misturava mijo, bosta, sêmen, vinhaça, umas duzentas garras em cada
uma das suas oitenta patas, hermafrodita tão disforme de se pensar uma figura dessa
nunca vista nos bestiários. Tanto é que foi registrado amiudada e
posteriormente ter devorado quase todos os prefeitos da região, a metade dos juízes
e delegados, uns seiscentos padres, dois bispos, mais de dez mil vereadores –
seu prato favorito, parece -, três oficiais de justiça, oitenta fiscais de
renda, uns duzentos soldados, mais de dez patrulheiros rodoviários, em resumo,
resultou apurado tratar-se de uma fêmea enfurecida com predileção por
autoridades ou quase, pelo visto, e não um bicho macho como pensavam. Ah, tá,
agora sim, o povinho quase aliviado. Nas tantas chegadas do monstro àquelas
paragens, corria o alarido mundo afora de não restar por perto sequer uma alma
viva para dar testemunho da tragédia. O que se soube muitos anos depois é que
um dia, assim do nada, bastou o poeta Raymundo Alves de Souza dá a maior
bobeira por aquelas bandas, saltando de trás de uma touceira se ajeitando todo
como quem escapulia de um coito avexado, que, ao vê-lo, o monstro
transformou-se em uma sedutora amazona e o cortejou, saindo aos beijos e
abraços para nunca mais atemorizar ninguém nem nada. © Luiz Alberto Machado.
Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS
[...] O esgotamento das
pretensões totalizantes de uma razão única tomou várias formas, que são todas
indicações para escolhas, valores e juízos. [...] A capacidade de viver numa racionalidade plural é coisa bem diferente,
e disso só temos por enquanto uma vaga ideia. Mas sabemos pelo menos que o
sábio pós-moderno deveria ser alguém que percorreu uma longa estrada para
deixar atrás de si o mito da verdade última e definitiva – a um só tempo
tranquilizador e ameaçador, como um pai severo protetor -, descobrindo em
contrapartida o valor do amor (por exemplo, certos filósofos pós-analíticos
falam hoje de um “princípio de caridade”). A multiplicação atual dos
fundamentalismos nada tem a ver com o enfraquecimento do ideal filosófico de
racionalidade. É pelo contrário uma regressão neurótica do universalismo da
razão totalitária ao particularismo da família,do bando, da etnia, da confissão
religiosa. O enfraquecimento da concepção filosófica da racionalidade é talvez
hoje o único antídoto para essa deriva; mas como os filósofos não têm outras
armas a não ser as da crítica, trata-se de um antídoto que não produzirá efeito
facilmente.
Trecho de Estamos
perdendo a razão (Zahar, 1999), do
filósofo italiano Gianni Vattimo. Veja mais aqui e aqui.
A DANÇA DE HELENA KATZ
[...] nada se poderá construir aqui além do traço
de uma teia. Que não perguntará o que é dança, nem tentará responder a
quaisquer outras questões semelhantes. Evitaremos a miragem da ontologia. Como
ocorre na vida, os percursos, aqui, nascem de escolhas entre roteiros plurais.
Todos comungando na consciência do inacabamento do saber ensinada por Peirce.
Uma dança que se entende como um fenômeno peninsular, nunca insular. Que jamais
prescinde da ligação com o continente ao qual pertence. Que aceita a imagem
biológica da evolução (a da arborescência cada vez mais especializada, de
transformações irreversíveis e unidirecionais) e a imagem geológica (a da ordem
do deslizamento). Dança que respira a polissemia de um ambiente que é
permanente produção de semiose: o corpo humano que dança. E que, tal como todas
as criaturas que misturam chão com estrelas, precisa fabricar semânticas. A
dança é o que impede o movimento de morrer de clichê. [...]
Trechos
extraídos da obra Um, dois, três: a dança
é o pensamento do corpo (Fid, 2005), da professora, pesquisadora e crítica
de dança Helena Katz, resultado do
seu doutoramento na PUC-SP. Por ocasião da Saudação
a Eliana Sousa Silva por sua posse na Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e
Ciência no dia 27 de março de 2018, na Sala do Conselho Universitário da USP, a
autora se manifestou escrevendo: [...] Eliana
atua em um lugar no qual um garoto assassinado com uma moeda de 1 real no bolso
passa a ser estatística, de tão cotidiano se tornou esse tipo de violência.
Talvez por isso, quando encontrei uma foto, em uma das Manifestações recentes por
mais uma das mortes que não podem se naturalizar e não podem ficar sem que os
responsáveis sejam punidos–era uma Manifestação contra o assassinato de
Marielle -nela vi algo que me pareceu sintetizar o que poderemos aprender com as
futuras ações da Eliana nessa cátedra. Se, ao fim da sua colaboração, daqui a um
ano, tivermos aprendido que a Universidade não pode continuar afastada da
favela, se tivermos melhorado a relação ainda quase inexistente entre o lugar
onde se produz o conhecimento e os lugares onde esse conhecimento devia
chegar,mas não chega, teremos dado um passo importante na construção dessa
cidadania que só surge pela via da autonomia. E isso só será conquistado quando
a Universidade e aqueles que não têm acesso a ela puderem se frequentar. Esta frase, que vi na Manifestação, parece
reunir, ao mesmo tempo,Eliana, os que trabalham com ela, e tudo aquilo pelo
qual ela trabalha. A frase é a seguinte: LUTO TAMBÉM É VERBO. Cabe a nós
fazermos a nossa parte. Veja mais aqui.
ÓRFÃOS DO ELDORADO, MILTON HATOUM
[...] Florita traduzia as histórias que eu ouvia
quando brincava com os indiozinhos da Aldeia, lá no fim da cidade. Lendas estranhas.
Olha só: a história do homem da piroca comprida, tão comprida que atravessava o
rio Amazonas, varava a ilha do Espírito Santo e fisgava uma moça lá no Espelho
da Lua. Depois a piroca se enroscava no pescoço do homem, e, enquanto ele se
contorcia, estrangulado, a moça perguntava, rindo: Cadê a piroca esticada?
Lembro também da história de uma mulher que foi seduzida por uma anta-macho. O
marido dela matou a anta, cortou e pendurou o pênis do animal na porta da
maloca. Aí a mulher cobriu o pênis com barro até ficar seco e duro; depois
dizia palavras carinhosas para o bichinho e brincava com ele. então o marido
esfregou muita pimenta no pau de barro e se escondeu para ver a mulher lamber o
bicho e sentar em cima dele. Diz que ela pulava e gritava de tanta dor, e que a
língua e o corpo queimavam que nem fogo. Aí o jeito foi mergulhar no rio e
virar um sapo. E o marido foi morar na beira da água, triste e arrependido,
pedindo que a mulher voltasse para ele. lendas que eu e Florita ouvíamos dos
avós das crianças da Aldeia. Falavam em língua geral, e depois Florita repetia
as histórias em casa, nas noites de solidão da instância. [...]
Trecho
extraído da obra Órfãos do Eldorado
(Companhia das Letras, 2008), do escritor, tradutor e professor Milton Hatoum. Veja mais aqui e aqui.
CARTA ABERTA - AOS QUE SE INTERESSAREM PELA CAUSA
Assunto: Assembleia
Popular Às Entidades, infra assinadas, CONVIDAM: Artistas, Entidades e
Cidadã/Cidadãos Palmarenses, para tratar e ao mesmo tempo tomar as devidas
providências sobre o bem Público de Palmares e do Estado de Pernambuco,
denominado de CASARÃO ou CHALÉ DO ALTO DO INGLÊS, que se encontra em situação
de abandono e descaso. A Assembleia Popular será Realizada na ASSOCIAÇÃO
COMERCIAL DOS PALMARES – ACP – ao lado do ANTIGO GINÁSIO MUNICIPAL – às 19h30h,
nesta quarta-feira, 27 de fevereiro do corrente ano. Associação Ação Solidária dos Palmares, Associação dos Artesãos
Palmarenses, Escola de Filosofia, Ciência e Política dos Palmares & Instituto
Arqueológico, Histórico, Geográfico e Cultural dos Palmares. Contatos: (81)
9-9795-8721 – Sr. Carlos Calheiros (81)
9-9711-9676 - D. Cícera Silvestre. Veja mais aqui e aqui.
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mais na Agenda aqui.