sábado, julho 19, 2014

JODI PICOULT, BETTY SMITH, CHARLOTTE & NUVEM DE CALÇAS DE MAIAKOVSKI

 

O QUE FAÇO DA SOLIDÃO?... – Acordei bem no meio da madrugada e me vi só. Não que eu não tenha amigamigos no convívio. Tenho. E muitos. Mas me sinto só todos os dias e o dia todo. Os meus vizinhos são meus amigos, não todos, claro; tem uns novatos que estão mais voltados pro seu umbigo e, quando muito, dão bom dia boa tarde boa noite. Às vezes nem isso. Outros quase nem os vejo à porta, ou do inopinado um simples cumprimento ao cruzar pela rua, quase sempre aquele papo do Sinal Fechado do Paulinho da Viola. Tem os chatos também, ih. Melhor dizendo: o chato sou eu, todos são simpáticos. Eu que sou meio de lua. Tanto é que vou à biblioteca todos os dias, sempre as mesmas pessoas: compenetradas em suas leituras, ou com um módico oi ou aceno longínquo. Às que consigo trocar alguma palavra, muitas vezes monossilábicas e reduzidas ao incômodo do calor de altos graus, ou derramando fatalidades da hora, ou duma notícia dalgo lá que nem sabe direito donde que foi. Alguns no fumódromo puxam assunto disso ou daquilo, sempre de pouca monta, até que as tragadas acabem abanando o fumaceiro e até logo. O mesmo se dá ao supermercado por eventual necessidade, sempre todos hipnotizados com os preços dos produtos nas gôndolas, uma carestia importuna, como é que pode, coisa e tal. Um oi, ou uma saudação mais efusiva, abraços e correm pras filas do caixa. O mesmo no atendimento dos caixas automáticos nas filas do banco, uma piada, risadagem impudica, camaradagem ajeitada, aparecem as cédulas do saque e tichausis! Quando não aquela do: vamos marcar um dia pra gente botar as coisas em dia! Vamos! Te ligo! Tá! Vem o caminho de volta, um ou outro apressado, vamos nessa. A praça agora é pra atravessar, nada mais de encontros, um ou outro solitário desconhecido, idosos com olhar perdido, tudo no meio de semáforos, estrondos, roncos de motores e muita pressa. Nem me dei conta que já estou nas proximidades da minha casa, muitas portas fechadas, todo mundo ocupado com seus afazeres e cá estou eu abrindo a fechadura, adentro já pegando o controle remoto para ligar a tevê, sigo pro banheiro porque estou pingando de tanto suor, penso coisas enquanto me lavo e me pergunto: o que vou fazer agora? Aí me enxugo com a indagação persistindo no quengo, olho pra programação da tevê zapeando canais, nada interessante. Ligo o rádio, o dial numa emissora que traga música instrumental, não tem, desligo. Melhor ligar o som e escolher um dos meus discos, ah bom. A trilha sonora aprazível, sento no sofá e vou ver os recados no telefone, os mails, as redes sociais. Nada importante. Vou até a estante passando o dedo na lombada de brochuras e volumes, escolho um livro e me volto pras revistas da mesinha, folheio uma, me sento de volta no divã e, entre as páginas, a pergunta: O que fazer da solidão? Penso comigo e imagino o tanto de gente na tortura solitária, razão pela qual constato a alta exposição nas redes sociais, o superlativo índice de audiência dos programas de baixaria e voyeurismo, o sensacionalismo do noticiário cada vez mais trágico e o vazio ao redor. Isso deprime! Por isso há tanta farmácia nos arredores da minha rua. Conflitos conjugais, separações, perdas e, sobretudo, falta de comunicação e mão amiga. Os postos de saúde entupidos, as clínicas médicas cheias e as emergências hospitalares esborrando. Muita ansiedade no ar, como se tudo fosse urgente e pra já. Os semblantes por aí sempre carrancudos: ofendidos e em pé de guerra. Quase não flagro um sorriso, uma gaitada gostosa. Como está difícil ser humano e viver, hem? Diante disso prefiro meditar. Não pensar e nada. E até me sinto confortável: não estou só, mas comigo que sou uns três ou quatro que discordam um do outro e me vejo falando sozinho com as paredes, com o protagonista duma hestória qualquer, com os personagens que invento, arengando com um e com outro dos meus amigos invisíveis, até mergulhar dentro de mim mesmo saboreando a solitude. Será que estou ficando doido? Tomara. Veja mais aqui, aqui e aqui.

 


DITOS & DESDITOS - Cheguei a uma conclusão clara, e é universal: viver, lutar, estar apaixonado pela vida – apaixonado por tudo o que a vida mantém, alegre ou triste – é realização. A plenitude da vida está aberta a todos nós. As pessoas sempre pensam que a felicidade é algo distante… algo complicado e difícil de conseguir. No entanto, as pequenas coisas podem compensar. Pensamento da dramaturga e escritora estadunidense Betty Smith (Elisabeth Lillian Wehner, 1896-1972).

 

ALGUÉM FALOU - Eu cuido de mim mesmo. Quanto mais solitário, mais sem amigos, mais insustentável eu for, mais me respeitarei... Pensamento da escritora britânica Charlotte Brontë (1816-1855). Veja mais aqui.

 

A GUARDIÃ DA MINHA IRMÃ - [...] Você não ama alguém porque ele é perfeito, você o ama apesar do fato de ele não ser [...] Talvez quem somos não tenha tanto a ver com o que fazemos, mas sim com o que somos capazes de fazer quando menos esperamos. [...] Coisas extraordinárias estão sempre escondidas em lugares que as pessoas nunca pensam em procurar. [...] Estou solitário. Por que você acha que tive que aprender a agir de forma tão independente? Eu também fico bravo muito rápido, e monopolizo as cobertas, e meu segundo dedo do pé é mais longo que o dedão. Meu cabelo tem seu próprio CEP. Além disso, fico comprovadamente louco quando tenho TPM. Você não ama alguém porque ele é perfeito. Você os ama apesar do fato de que eles não são. [...] Às vezes, para conseguir o que você mais deseja, você precisa fazer o que menos deseja. [...] Deixe-me dizer uma coisa: se você encontrar um solitário, não importa o que ele lhe diga, não é porque ele gosta da solidão. É porque eles já tentaram se misturar ao mundo antes e as pessoas continuam a decepcioná-los. [...]. Trechos extraídos da obra My Sister's Keeper (Washington Square Pres,2005), da escritora estadunidense Jodi Picoult. Veja mais aqui.

 


Duas horas em breve.
Estás deitada, talvez.
Na noite,
Como um Oka de prata
A Via Láctea corre.
O tempo é meu, e os relâmpagos
Que eram meus telegramas,
Não mais te virão despertar,
Atormentar.
Como se diz: encerra-se o incidente.
A canoa do amor
Foi-se quebrar de encontro ao cotidiano.
Eis-me quite contigo.
E é inútil o passar em revista
Penas, azares e recíprocas feridas.
Vê, que paz no universo.
A noite impôs ao céu
A servidão de tantas estrelas.
Chegou a hora
Em que a gente se ergue e em que fala
Aos séculos, à História, ao universo.
(Poema póstumo, Mayakóvsky)

A POÉTICA DE MAYAKOVSKY – Na sua autobiografia, o poeta, dramaturgo e teórico russo Vladimir Mayakovsky (1893-1930), declara: “Sou poeta. Esse é o fulcro dos meus interesses. É disso que escrevo. Posso amar, posso ser jogador, e também apreciar as belezas do Cáucaso – mas apenas quando isso deixa um sedimento de palavras. Do resto – só se me sobrarem palavras”.

“A minha atividade literária desses vinte anos converteu-se, essencialmente, para falar com toda franqueza, num bofetão literário no seu melhor sentido”.
(Apresentação livro Como fazer versos, de Mayakovsky).

O poeta da revolução russa nasceu no dia 19 de julho (7 de julho do Juliano) de 1893 ou 1894, não se sabe ao certo porque não se entendem a opinião da mãe e o registro do pai. O certo é que foi na aldeia de Badgadi (mais tarde denominada Mayakovsky), Kutaissi, Geórgia. Aderiu ao Partido Socialista (bolchevique) aos 15 anos de idade. Acusado de escrever manifestos, é preso. Posto em liberdade, volta a ser preso, dessa vez é julgado e condenado. Ao longo de 11 meses de clausura, dedica-se à leitura. Quando saiu da prisão, em 1910, considerava-se incapaz de escrever versos. Voltou-se para a pintura. No ano seguinte, entrou para a Escola de Belas Artes, onde foi expulso em 1914. Ele pertencia a um grupo que posteriormente designado de Futurista. Entretanto, começa a escrever – versos, principalmente. Muda-se para Petrogrado, contatando estreitamente com outros escritores da vanguarda, como Vassili Kamenski, Khlebnikov e Chklovski. Depois da Revolução de Outubro a atividade literatura se torna muito mais intensa, abrangendo a poesia e o teatro. Um dos aspectos dessa nova fase na vida dele, foram os inúmeros recitais que fez da sua poesia por todo país, escrevendo, inclusive, argumento de diversos filmes. Suicidou-se em Moscou no dia 14 de abril de 1930.

“Uma vez mais repito categoricamente: não forneço qualquer regra capaz de transformar um homem em poeta e de o levar a escrever versos. Essas regras não existem. Poeta é justamente o homem que cria as regras poéticas”.
(Como fazer versos, Mayakovsky).

Era um iconoclasta, altamente individualista em sua concepção formal de poesia, suportando durante toda a vida a dilacerada dualidade que subexiste na relação entre o espírito criador (liberto) e o revolucionário que acorrentou sua arte aos interesses da causa proletária. Ele não lamentou ter sacrificado o melhor de sua criação pela causa (no caso os primeiros momentos de um Modernismo feroz), mas essa amargura está indisfarçável em muitas de suas declarações e principalmente na mais significativa de todas as suas atitudes, quando espalhava entre a juventude drogada pelo niilismo que levou seu líder à autodestruição; e brandindo as palavras como quem rugia para as massas o seu antídoto poético:

“[...] não há nada de novo na morte, mas também não há muita novidade em viver [...] É melhor morrer de vodka do que de tédio!”.
(A Essenine, poema de Mayakovsky)



EU

Pela estrada da minha alma palmilhada
Passos de loucos
Batem calcanhares de duras frases.
Onde as cidades estão suspensas
E numa rede de nuvens
Endureceram como torres
Os pescoços torcidos – sigo
Sozinho a soluçar
Porque na encruzilhada
Há polícias crucificados.


A NUVEM DE CALÇAS

A mente vossa,
Em momento miolo divagando
Como médio lacaio em poltrona sebosa
Vou atiçar com o coração sangrando:
Rirei até fartar, mordaz e desfaçado.
Na alma não tenho uma só cã
Ou ternura senil.
Aturdo o mundo com o poder da minha voz,
E avanço – sedutor,
Nos meus vinte e dois anos.
Ternos amantes!
Vós competis com o violino
E com timbales competem os boçais.
Mas como eu não podeis fazer?
Ser todo lábios, sem pesado corpo?
Das vossas salas de fausto,
Do clube angelical membros preclaros,
Vinde escutar, vinde saber.
Vinde, vós, que lábios folheais
Como a cozinheira um livro de receitas.
Se quiserem,
Serei apenas carne louca
E, como o céu, mudarei de tom,
Se quiserem,
Serei impecavelmente delicado,
Não serei homem, mas uma nuvem de calças!
Não acredito que haja uma Nice florida!
Hoje de novo canto a gloria
Dos homens que o pecado fez malignos
E das mulheres gastas como um lugar comum.

I

Acham que é um delírio da matéria?
Mas isto aconteceu:
Aconteceu em Odessa.
Disse Maria: “Virei às quatro”.
Mas deram as oito.
E deram as nove.
E deram as dez.
E a tarde da janela fugiu para o noturno horror
Umbroso e dezembrino.
Nas suas costas caducas riem e galhofam candelabros.
Ninguém me poderia agora reconhecer:
Este gigante musculoso, que geme e se contorce.
Que pode querer tal colosso?
Mas o colosso que bem quer!
Que importância tem ser de bronze
Com o coração de ferro frio!
De noite quero ocultar o meu metal
Em algo suave e feminil.
E eis que desmarcado me debruço à janela,
Fundindo o vidro com a testa.
O amor virá ou não virá?
Será grande ou pequeno?
Como pode ser grande num brutamente destes?
Terá de ser pequeno, um amorzito dócil,
Que se assusta com as buzinas dos carros
E adora as campainhas dos elétricos.
Cada vez mais o rosto afundo
No semblante bexigoso da chuva,
E aguardo, salpicado pelo fragor da rua.
A meia-noite, com uma faca, chegou
O dia apunhalou – e pronto!
E caíram as dozes badaladas
Como do cepo cabeças degoladas.
Nos vidros se juntavam cinzeas gotas de chuva,
Formando uma careta deformada,
Uivando quais quimeras do Notre Dame de Paris.
Maldito! Não te chega?
Prestes a boca soltará um grito!
Escuto: silencioso, como um doente de cama,
Ergueu-se um nervo.
Depois caminhou lentamente,
A seguir correu, convulsivamente, cauteloso.
Agora, com mais dois,
Dança um fandango insano.
Cai no andar de baixo um bocado de estuque.
Os nervos – grandes, pequenos – muitos! –
Saltam como loucos,
E já estão de pernas cansadas.
E a noite penetra-me no quarto:
Não posso abrir os olhos de lodo pesados.
Rangem as portas de repente
Como se o hotel estivesse a bater o dente.
Tu entraste, brusca como um desafio,
Torturando as luvas de camurça,
E disseste: “Sabes? Vou-me casar”.
Está bem, casa.
Que queres que faça?
Hei-de me recompor.
Não vês como estou calmo?
Como o meu pulso parece dum defunto?
Lembras-te como costumava dizer:
“Jacj London, dinheiro, amor, paixão” –
E eu só te via a ti – Gioconda pra roubar!
E roubaram por fim.
De novo entrarei no jogo apaixonado,
Iluminando a curva do meu cenho.
Então? Nunca casa queimada
Às vezes vivem vagabundos sem casa!
Ris-te? “Tens menos esmeraldas de loucura
Do que há copecas no bolso dum mendigo”.
O destino de Pompeia não olvides
Depois de irritarem o Vesúvio!
Eh! Senhores! Amantes de sacrilégios,
Crimes e massacres, - vistes o mais cruel
Dos meus rostos quando estou absolutamente calmo?
E sinto que eu próprio me sou pouco.
E de mim alguém se tenta rir.
Está? Quem é? Mamã? Mamã!
Teu filho está belamente enfermo!
Mamã! Tem fogo no coração.
Diga às manas, Liúda e Ólia,
Que não tenho para onde ir.
Cada palavra, mesmo uma graça,
Que jorra da boca ardente,
Salta como uma rameira nua
Dum bordel incendiado.
As pessoas fungam: cheira a queimado.
Chamaram a brigada cintilante.
De capacete!
Não se pode entrar de botas!
Digam aos bombeiros:
Só com caricias se pode apagar um coração a arder.
Eu próprio deitarei dos olhos catadupas de lágrimas.
Deixem-me descansar.
Salto? Não salto? Salto?
As lágrimas caíram.
Não se pode escapar ao coração!
No rosto ardente, dos lábios gretados
Um beijo carbonizado quer erguer-se.
Em chamas, figuras de cifras e palavras
Saltam do crânio como crianças
Duma casa a arder, com o mesmo terror
Com que se ergueram ao céu
Braços acesos no convés do Lusitânia.
Ante a mente tremendo no silêncio do lar,
Um brilho de cem olhos explode do refugio.
O meu último grito – pelo menos tu
Brada que estou a arder pelos séculos afora.

II

Glorificai-me! Que são a meu lado os grandes homens?
Em tudo o que até agora foi criado ponho o meu nihil.
Nunca mais quero ler nada.
Livros? Mas livros para quê?
Dantes pensava que os livros eram feitos assim:
O poeta chegava, entreabria ligeiramente a boca,
E começava a cantar, inspirado simplório –
E já estava! Mas acontece que antes de começar a cantar,
Se põe a caminhar, incitado com a agitação,
E revolve-se no lodo do coração o néscio peixe da imaginação.
Entretanto fervem e saltam as rimas
De amor aos rouxinóis e outras bagatelas,
E a rua se contrai em pantomina –
Não tem com quem cantar e discorrer.
Erguem de novo altivas cidades-torres de Babel,
Para que Deus a escombros a reduza,
Os termos baralhando.
A rua aguentava silenciosa o suplício,
A ponto de à boca lhe assomar um grito.
Com seu brado sublevado
Se apressavam inchados táxis e ossudas caleças
E peões lhe pisam o peito mais do que a tísica.
A cidade fechou seus caminhos com a sombra.
E quando, porém, vomitou sua estreitez na praça,
Empurrando os que chegam à porta da igreja-garganta,
Pensava: os coros dos arcanjos Deus, pilhado, vai castigar!
Mas a rua sentou-se e disse: “Vamos morfar?”
Os Krupps fazem as cidades com o cenho franzido
E a boca cheia de palavras como mortos:
Só duas vivem, engordando: “sacana”
E ainda outra qualquer parece que – “sopa”.
Os poetas amolentados com soluços e choros,
Abandonaram as ruas de melena ao ar:
“Como se pode cantar com tais palavras a mulher,
o amor, e as florinhas orvalhadas?”
Atrás dos poetas, a nação toda: estudantes, prostitutas, capazes.
Senhores! Parem! Não sois mendigos,
Nada de pedir esmola!
Nós, os fortes, de passos largos,
Não devemos ouvi-los. Esmagai-os – a esses,
Que, como suplemento gratuito, se agarram
A todas as camas de casal.
Haverá que rogar-lhes com humildade:
“Ajudai-me!” ou pedir-lhes hinos, ou oratórios?
Nós próprios criamos abrasados hinos
No fragor das fábricas e dos laboratórios.
Que me importa Fausto, deslizando com Mefistófeles
Em que foguetões feéricos no sonho célico encerado!
Eu sei que um prego no meu sapato
É mais terrível que a imaginação de Goethe!
Eu, o de lábios dourados, cujas palavras
Renovam o espírito e festejam o corpo, vos digo:
A mais insignificante partícula de vida
Tem mais valor que tudo o que escrevi.
Oiçam! Predica convulso e gemebundo
O retorcido Zaratustra de hoje!
Nós com o rosto como um lençol amarrotado,
Lábios caídos de ansiedade como lustres,
Nós, prisioneiros da cidade-gafaria,
Chegada pelo oiro e pelo lixo, -
Somos pulcros que todo o resplendor veneziano
Banhado pelo sol e o oceano.
Não me ralo que Homero e Ovidio
Não sejam, como nós, marcados das bexigas.
Eu sei que o sol se eclipsaria ao ver
O oiro que há nas nossas almas!
Melhor que orações são artérias e músculos.
Não pediremos esmolas ao tempo!
Nós, cada um de nós, temos na mão
As rédeas de todos os mundos!
Foi isso que trouxe ao Gólgota auditórios de Kiev,
Odessa, Moscovo e Petrogrado,
E não houve um só que não gritasse:
“Crucificai-o, crucificai-o!”
Mas para mim, o povo, mesmo os que me insultaram, -
É quem mais amo.
Viram como o cão lambe a mão que lhe bate?
Eu, escarnecido pela gente de hoje,
Como uma anedota obscena e sem fim
Vejo como caminha pelas montanhas do tempo
Alguém que nada vê.
Onde o olhar humano se detém hesitante,
À cabeça das hordas famulentas,
Coroará de espinhas de revolta o ano dezasseis.
Eu sou aqui seu precursor; eu estou com os que sofrem;
Crucifico-me em cada lágrima derramada.
Já não se pode perdoar nada.
Consumi a alma, onde a ternura crescia
E isso é mais difícil que tomar bastilhas ao milhar!
E quando anunciarem a chegada da revolução e saírem
Ao encontro do salvador, eu arrancarei a alma para vós,
Abri-la-ei para que seja maior! –
E hei-de levá-la ensanguentada como um pendão.

III

Ai, para que é isto? Donde vem isto?
Na alegria clara os punhos sujos e cerrados.
Chegou e cobriu a cabeça em desespero
Com a ideia duma casa de loucos.
E como no naufrágio de um couraçado
Com espasmos de afogado
Os homens se lançam nas escotilhas abertas –
Através do seu olho apavorado e aberto
Saltou Burliúk de cabeça perdida,
Quase sangrando e choroso, saiu, ergueu-se,
Aproximou-se e com uma ternura inesperada num obeso,
Pegou e disse: “Belo!”
Belo, se na blusa amarela a alma se oculta dos olhares!
Belo, se ante a dentuça do patíbulo se grita:
“Bebam cacau Van Guten!”
E esse segundo estrondoso de fogos de Bengala,
Eu não o trocaria por nada, nem por... não...
E de entre o fumo do cigarro,
E do vinho e do rum,
Severiánin ergueu seu ébrio rosto.
Como se atreve a dizer-se poeta
E, estupidamente, gorjear como um pardal?
Hoje é preciso com manopla
Quebrar o crânio ao mundo!
Vós que só tendes uma ideia – “estética” –
Vejam como eu me divirto,
Rufia de rua e batoteiro!
De vós, amolecidos de amor,
Que vertestes lágrimas durante séculos,
Fujo com o sol por monóculo no olho bem aberto.
Ataviado de maneira incrível, irei pelo mundo
Para agradar e encantar, e à frente
Levarei Napoleão em trela de rafeiro.
Todo mundo cairá como uma mulher,
Agitando as carnes para se entregar:
As coisas animam-se – e os lábios das coisas
Hão de murmurar: “Lindo, lindo, lindo!”
De súbito, nuvens negras e demais neblinas
Ergueram ao céu um boliço sem fim,
Como se os operários de todo o mundo se erguessem
E declarassem ao céu uma greve furiosa.
Da nuvem saiu feroz trovão,
As enormes narinas em fúria assoou,
E o rosto celeste um instante se torceu
Com a careta severa do férreo Bismarck.
E alguém enredado nos nuviosos caminhos
Estendeu as mãos para o café – parecia feminino,
E tão terno, como uma carreta de canhão.
Acham que foi o sol carinhosamente
Que acariciou o rosto do café?
É de novo o general Galifet a fuzilar sublevados.
Tirai, transeuntes, as mãos dos bolsos –
Pegai em pedras, bombas e facas,
E quem não tiver mãos venha dar cabeçadas!
Venham, famintos, suados, submissos,
Sujos e mordidos das pulgas!
Venham! Que segunda-feira e terça sejam pintadas
Festivamente de sangue!
Que a terra espezinhada recorde quem a quis ultrajar!
A terra, gorda como as amantes que Rotschild largava!
Para que as bandeiras ondeiem na febre do tiroteio,
Como em todas as festas normais –
Mais alto ergueu, candeeiros, os corpos pendentes dos mercadores.
Blasfemei, implorei, insultei, subi atrás de alguém
Para lhe deitar o dente.
No céu rubro como a Marselhesa,
O ocaso estremecia ao morrer. Que loucura!
Não vai acontecer nada. A noite virá, morderá e devorará tudo.
Vejam – o céu de novo suborna
Com um punhado de estrelas salpicadas de traição.
Vem e, como Mamai, celebra a vitória,
Refastelado sobre a cidade.
Não rasgaremos com a vista esta noite negra como Azef!
Anda pelos recantos das tabernas
Regando com vinho a alma e a toalha e vejo:
A um canto uns olhos redondos
Com a ternura dos olhos da Virgem Maria.
Para quê fazer dádiva dessa aureola vulgar
A esta gentalha que grita na taberna?
Não vês que de novo ao escarnecido do Gólgota
Preferem Barrabás!
Talvez assim tenha sido ordenado –
Nesta pocilga humana o meu rosto não tem nada de novo.
Eu sou, talvez, o mais belo de todos os teus filhos.
Faz aos amolecidos pelo prazer,
Que a hora da morte chegue prestes,
E que os filhos, os que devem nascer, os rapazes
- sejam pais, e as raparigas – fiquem grávidas.
E que os recém-nascidos cresçam com cabelos brancos
Dos magos e a visão – e seus filhos batizarão com nomes dos meus versos.
Eu, que glorifico Inglaterra e as máquinas, é provável
Que num evangelho mais useiro
Seja o apóstolo décimo terceiro.
E quando a minha voz soar obscena –
Hora após hora, o dia inteiro
Talvez Jesus Cristo venha cheirar
Os nã0-me-esqueças da minha alma.

IV

Maria! Maria! Maria! Abre, Maria!
Não me deixes na rua! Não queres?
Esperas que fique de face bichosa,
Provado por todas as mulheres,
Insípido, e venha e diga, sem dentes,
Que hoje “sou duma castidade espantosa”?
Maria, vês? Já começo a andar curvado.
Pelas ruas a gente sacode a banha de quatro papadas,
Esbugalha os olhos, gastos por quarenta anos de uso, -
E troca sorrisos, porque eu levo nos dentes
- outra vez! – os restos das caricias de ontem.
A chuva aborrecia os passeios,
Dos charcos compacto ladrão,
Molhado, lambendo o cadáver lapidado da rua,
E nas pestanas brancas – sim! –
Nas pestanas de gelados carambanos,
Lágrimas dos olhos – sim! –
Dos olhos baixos dos algerozes.
A chuva encharcando o rosto dos passantes,
Enquanto nas carruagens brilhavam nédios atletas:
A gente rebentava de comer por todos os lados,
E a banha saía-lhes dos poros,
Em túrbidos riachos escorria da carruagem
Junto com os restos das almôndegas dos velhos tempos.
Maria! Como havemos de fazer entrar nessa orelha sebosa
Uma palavra meiga?
A ave vive de canções, canta, faminta e sonora,
Mas eu sou homem, Maria, simples,
Na suja mão de Présnaia cuspido uma noite tísica.
Maria, queres-me assim? Abre, Maria!
Com os dedos crispados apertarei a garganta de ferro
Da campainha! Maria!
Enfurecem-se os currais das ruas.
No colo ferido os dedos cintos.
Abre! Dói! Vês?
Tenho os olhos cheios de alfinetes de chapéus de mulher!
Abriu. Querida! Não te assustes
Que no meu costado de louco
Haja sentadas mulheres de saias molhadas, -
É uma carga que levo comigo pela vida afora:
Milhões de amores puros e enormes
E milhões de milhões de pequenos amores sujos.
Não temas que de novo caia na infidelidade habitual,
Me atire a milhares de caras bonitas, -
As amantes de Mayakovsky são uma dinastia
De rainhas entronizadas no coração dum louco.
Maria, anda cá! Nua e sem pudor,
Ou com um tímido tremor,
Mas dá-me o encanto dos teus lábios que nunca murcharão:
O meu coração nunca chegou a Maio na vida vivida
Nunca passou de Abril.
Maria! O poeta canta sonetos a Tiana e eu –
Todo de carne, todo humano –
Só peço o teu corpo como os cristão pedem
“o pão nosso de cada dia nos daí hoje”.
Maira – dá! Maria!
Tenho medo de o teu nome esquecer,
Como teme olvida o poeta a palavra
Nascida no martírio noturno grande só como Deus.
Teu corpo cuidarei e amarei, como o soldado
Mutilado da guerra, inútil e sem dono,
Cuida da única perna.
Maria – não queres? Não queres?
Ah! Quer dizer que de novo sombria e tristemente
Pegarei no coração, salpicado de lágrimas,
E o levarei como um cão que para a casota arrasta
A pata atropelada.
Com sangue do meu coração ficará manchado o caminho
Como com flores de fogo lançada à poeira.
Mil vezes bailará o sol à volta da terra
Como a filha de Herodes à volta da cabeça do Baptista.
E quando os meus anos bailem até ao fim-
Cobrir-se-á com milhões de gotas de sangue
O caminho até à morada do meu pai.
Sairei então sujo (de dormir nas sarjetas),
E ponho-me a seu lado, inclino-me e digo-lhe ao ouvido:
- Escuta, senhor Deis! Como é que não te aborreces
Nessa gelatina das nuvens deitando água todos os dias
Dos teus olhos bondosos?
Sabes uma coisa? Vamos construir um carrossel
Na árvore da sabedoria do Bem e do Mal.
Onipresente, estarás em todos os armários,
E pomos à mesa uns vinhos tais que incitem bailar
O taciturno apóstolo S. Pedro.
E de Evas encheremos de novo o paraíso:
Uma palavra tua, - e esta mesma noite
Pelas ruas juntarei as mais belas raparigas.
Queres? Ou não queres?
Abanas a cabeça, cabeludo?
Achas que esse aí com asas, atrás de ti, sabe o que é o amor?
Eu também sou um anjo, fui como um cordeiro inocente,
Mas fartei-me de dar às éguas vasos feitos de sofrimento de Sévres.
Todo-poderoso, tu, que inventaste estas mãos, que deste
Uma cabeça a cada um de nós, porque não decidiste
Que sem sofrer se pudesse beijar, beijar e abraçar?!
Julgava que eras um deusão onipotente
Mas não passas de um Deusito um pouco desajeitado.
Vês? Curvo-me e da bota tiro um punhal!
Patifes alados! Agachai-vos no paraíso!
Eriçai as plumas e tremei de medo!
A ti, que cheiras a incenso, cortarei daqui até ao Alaska!
Deixem-me! Não me detenham!
Certo ou errado não posso ficar calmo.
Olhem – decapitaram mais estrelas
E ensanguentaram o céu como um matadouro!
Eh, tu! O céu! Tira o chapéu! Que vou passar eu!
Silêncio!
O universo dorme com a enorme orelha
Cheia de estrelas sobre a pata.



REFERÊNCIAS:
MAYAKOVSKY, Vladimir. Autobiografia e poemas. Lisboa: Presença, 1977.
______. Eu próprio: poesia 1912/1916. Lisboa: Vento de Leste, 1979.
______. Como fazer versos. São Paulo: Global, 1977.  Veja mais aquiaqui, aqui e aqui.


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