quarta-feira, julho 03, 2013

ALEJANDRA SOLÓRZANO, GRACE AGUILAR, FITZPATRICK, BORSELLINO & HUMOR DO DORO

Foto da Variant encontrada na carteira do Doro, meramente ilustrativa porque o estado atual do mandú está muito mas muito mais mesmo deplorável.

O TRÂNSITO E A FUBICA DO DORO - Andar no trânsito de qualquer cidade já é um sacrifício dos mais massacrantes, quanto mais cruzar com a fubica do Doro, hem? Nunca vi duas coisas se parecerem tanto e darem tão certo: o loré véio e o dono! Como se identificam, parece mais que um foi feito pro outro. Ou, no mínimo, Deus fez e o diabo ajuntou essas duas trepeças. Esse mandú é famoso: é uma Variant (quem lembra? bem, parece, não se sabe ao certo se), modelo mil novecentos e antigamente, com ignição direta por qualquer chave virando aos peidos e só aos empurrões. Diz-se ser esse flagelo do mundo o ganha-pão do amolestado. É assim: logo cedo toda vizinhança é surpreendida com uma barulhada medonha! É que o sujeito está todo cheio dos pantins manipulando chaves e ajeitados para a geringonça pegar, coisa de passes e exorcismos escabrosos. Depois de muita chupeta, mutreta, remoeta e munganga além da conta, o desmantelo está pronto: a engrenagem toda funciona, o cabra debréia, engata primeira e a desgraça está solta no mundo. E lá se vai o mondrongo atormentar a humanidade. A monstruosidade vai todo de cara lisa invadindo ruas, avenidas e rodovias carregando a cor do infortúnio e, ao que parece, todas as enfermidades da boceta de Pandora. A cor? Qual? Identificar a pintura do desastre dá trabalho: uma mistura inadequada de qualquer ocre com todas as cores desbotadas. Não me espantarei se ficar invisível qualquer dia desses. Ninguém sabe se é conversível ou se o teto já era. Motor? Deve ser a lenha porque o que o horroroso peida e fumaça, num tá no gibi. Sai pipocando, com o disco de embreagem deslizando, as marchas pisando no rabo do gato e o cara todo ancho buliçoso virando os braços no exercício da folga múltipla do volante. Eita, pau! Olhando mais de perto não dá direito para identificar os acessórios, exceto alguns mais visíveis como os pneus que de tão empenados rebolam mais bambolês, todos carequíssimos de não poder ver toco de cigarros acesos ou pedrinhas pontudas, e alinhados em conformidade com o pau da venta do sujeito: cada qual puxando pruma direção diferente, o que dá a impressão que a borréia tem complexo de caranguejo pelo eixo entortado e de só andar de banda. Também as portas – se é que se pode chamar de porta aquela disparatada parte da lataria: um traste, abre o que? Não possui vidros, nem maçanetas nem nada: são amarradas por barbantes nas colunas e cobertas por uma lona rasgada que mais parece coberta de circo chué. Ah, se abrir a mala, cai o para-choque. E o para-brisa? Ah, um plástico grosso e os óculos Ray Ban paraguaio maior que o defunto nas ventas do condutor. Retrovisores? Já era, só se for o pescoço virado pros lados e pra trás na iminência de qualquer desastre. Sinaleiras? Os braços do apaideguado gritando que vai entrar (ou se foder, não faz diferença). E um desplante: tem som, um gasguito dum rádio estridulante que dói no ouvido só do zoadeiro fino que ninguém entende de nada que está tocando ou dizendo (talqualzinho aqueles avisos sonoros de caminhões de venda de botijão de gás, imagina?). Acentos? Uma cadeira de balanço pra quem guia e mais nada: uma catrevagem de coisas pelo assoalho esburacado, tais como cilindros, baterias, bujões, gambiarras, trincos, ferramentas, brebotes e teréns. Pra subir com a tranqueira ladeira arriba, vambora macacada, tudo empurrando, ora. Ao descer, segura senão vira merda. E lá vai ele todo serelepe na maior estripulia até chegar a hora de brecar o malassombro irrefreável que o sinal fechou – ê, boi! -, e sai tirando fino, cortando num ziguezague pra livrar o povo da frente aos gritos e com o pé dando injetada no pedal do freio, de findar o solado da alpercata rangendo e se gastando no chão, debaixo do maior fumaceiro. Eita, pau! Para se ter ideia, só pra estacionar é um estrupício: sobe na calçada, derruba o que tiver pela frente e só acaba enfiado no para-choque de outro. Até hoje não vitimou ninguém, pelo menos, pura cagada de sorte. Mas eis que um dia da semana passada, ele vai pela rodovia todo pabo de fazer gosto. De repente, uma barreira policial. De lá deu pra se ver um dos patrulheiros com as mãos sobre os olhos fitando aquilo que se aproximava como a besta do apocalipse. Oxe, o alvoroço bateu na tropa de se ver um deles gritar: - Que droga é nove!?!?!? -, e danou o apito como alarme, mandando-o parar. Um escarcéu! Com todo estrimilique ele livrou uma barroada na viatura, passou por cima do pé do guarda, matou um sagui que ia atravessando, deixou meio mundo de passageiros que desciam dum cata-corno infrator de pernas pro ar e às carreiras, e só conseguiu parar depois de muita tirineta uns 300 metros depois de distância. Um pandemônio se instalou no local. Logo um bocado de soldado armado de baioneta, fuzil e metralhadora arrodeou aquela calamidade. Um policial graduado logo se aproximou com as mãos no quarto a lhe admoestar: - Queria furar a barreira, era? Vou lascá-lo agora! -, e empunhou um bloco de multas, anotando com fúria e reclamo: - O senhor e esse desastre criminoso de carro estão incursos em todas as penas de todos artigos do Código de Trânsito, do Código Penal, do Código de Processo Penal, das Leis 9099/95, 11705/2008 e 12760/2012. Pronto, agora teje preso, seu condenado! - Cuma? Bezodeus! Aí fodeu Maria-preá -, ficou Doro sem saber o que dizer, enquanto a patota da farda já o enquadrava nas algemas. Felizmente alguma autoridade tomou a providência de remover das ruas esse delito ambulante, ao passo que, ainda temos a infelicidade de cruzarmos com toda espécie de tranqueira motorizada para embananar mais o trânsito que já é uma calamidade por culpa tanto dos engenheiros de tráfego, como da falta de educação dos condutores e transeuntes. Ainda acresça a isso a facilidade processual para escamotear multas e sanções dos intrépidos motoristas que não estão nem aí para quem pintou a zebra, todos que sequer tenham a mínima noção de direção defensiva ou de primeiros socorros, burlando sempre a lei e as autoridades. Defenestrado do trânsito, com seu quengo mais frio da porretada que levou, o Doro ainda se saiu com essa: - Danou-se! Esse cabrito lascou o véio! Tô numa peínha de nada: preso, lascado e fudido de tudo. Num tenho um réis no bolso pra cumprar esses recruta. Tô disvalorizado ao rés do chão. O que será de mim, da minha reputação de desenrolado, da minha campanha inleitorá e da minha vida de virador?

Veja mais das Proezas do Doro aqui e aqui.


 

DITOS & DESDITOS - Esta foi uma era de utopismo. Os líderes políticos tinham visões utópicas, assim como muitos cidadãos, especialmente a geração mais jovem. O espírito é difícil de capturar em uma era de ceticismo, já que o utopismo, como a revolução, é tão irracional... Para quem está por dentro, era uma visão de mundo “científica” que permitia a seus possuidores livrar a si mesmos e aos outros de todos os tipos de preconceito e superstição – e incidentalmente dominar um estilo de debate agressivo caracterizado pelo uso generoso de sarcasmo sobre os motivos e a suposta “essência de classe” de oponentes... Pensamento da historiadora, pesquisadora e professora australiana Sheila Fitzpatrick, autora de pesquisas e publicações sobre a Rússia e História Soviética.

 

ALGUÉM FALOU: Memória é vida que se cultiva todos os dias... Pensamento da farmacêutica e ativista feminista italiana Rita Borsellino (1945-2018).


O VALE DOS CEDROS - [...] Firmemente impresso em sua própria mente, que era totalmente inútil para uma alma esperar pela salvação, a menos que acreditasse em Jesus, na Virgem, nos santos e santos mártires; ele colocou coração e alma em sua tarefa; e quanto mais ele via Marie, mais dolorosamente deplorava sua paixão cega e mais ardentemente desejava salvá-la da perdição eterna que, como judia, deveria esperá-la. [...] Suas provações anteriores foram uma agonia aguda e uma forte excitação. Seu presente não tinha nem um nem outro; no entanto, estava repleto de sofrimento tão pesado quanto qualquer outro que havia acontecido antes dele; embora ela não soubesse, não adivinhasse, tudo que dependia de sua conversão. Teria sido comparativamente fácil ter suportado, por causa de sua fé, aspereza e desprezo; nesse caso, o auto-respeito surge para nos sustentar, e valorizamos ainda mais nossos próprios princípios, por seu contraste surpreendente com aqueles que poderiam comandar a crueldade que suportamos; mas o padre Denis não usou dureza nem de maneiras nem de palavras.[...]. Trechos extraídos da obra The Vale of Cedars (1850 - BiblioLife, 2008), da escritora britânica Grace Aguilar (1816-1847). Veja mais aqui.

 

UMA SEMENTE COM ASAS - diante do sorriso irônico da planície. \ Sol, mar ou a suave curvatura da cera com que se enlaçaram as penas do breve \ Ícaro.\ Que sou? Eu perguntei \ e o bumerangue do Vazio atingiu minhas mãos. \ A pequenina e última pedra no fundo do oceano \ que medita, \ imolada na solidão. \ O tempo mais preciso \ ou talvez \ brilhe sobre o cadáver deixado por uma estrela marinha. \ máquina nobre? \ Que sou? Eu perguntei \ e o bumerangue do silêncio passou pela minha garganta. \Então pensei \ que talvez eu fosse o sonho de uma fera chamada Berkeley \ vendo passar a tarde com ócio e desprezo reclinado \ na escrivaninha que uma velha teceu para alegrar a visita \ dos que não voltam.\ Que sou?\ O paladar, a maçã? \ besta de freio,\ jardim negro cheio de flores. \ Sucessão finita sobre um campo. \ Ofegar do Tempo que faz o milagre do infinito \ Uma falsa precisão de \ sentido? \ Que sou? \ o que então? \ — Nada, o Vazio me responde. \ Nada.\ Como se o Nada\ fosse nada. Poema da poeta, atriz e produtora cultural guatemalteca Alejandra Solórzano.

 



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