quinta-feira, outubro 22, 2009

ERÓTICOS DE QUINTANA, JESSÉ SOUZA & A RALÉ BRASILEIRA, LUCIANO BERIO, CHAMBERS, GOUCOURT, ARNOLD BENNETT & LITERÓTICA: DEMETER


 
Música é tudo o que se ouve com a intenção de ouvir música.
A arte do compositor italiano Luciano Berio (1915-2003), do vanguardismo da música e do domínio da música experimental, utilizando a voz como instrumento principal, utilizando-se de grandes corais, solistas e até distorções eletrônicas e técnicas de canto, com assovios, diálogos e estalos com a língua e lábios.

O AMOR DE DEMETER - Era ela a deusa da primavera e de todas as estações, aquela do Catálogo de Mulheres de Hesíodo que eu vi passar entre as páginas. Lá estava ela, diante de mim, enlutada que escondera numa gruta para que a terra se tornasse estéril. Havia saído do banho no rio Ládon, o qual carregou em suas águas todas as mágoas para que retornasse ao Olimpo. No meio do caminho ela me viu e com sua generosidade se aproximou e procurou saber o que se passava comigo. Eu sofria de fome e doenças, pois os grãos não germinavam, o arado quebrado, o gado morria e eu desgraçado. Com seu jeito terno ouviu-me atentamente e resolveu ajudar, ensinando-me a arte de cultivar a terra, semeá-la, colher seus frutos e fazer o pão para que não mais padecesse. Ali ficou ao meu lado pelos nove dias de setembro e ali aprendi a evolução de tudo e dos outros, a sucessão das estações e a marcha do Sol. Puxou-me aos seus domínios e legífera, com seu vestido amarelo dos trigos maduros aos pés, aboletou-se ao seu trono ornado de tochas e expondo uma coroa de papoulas e espigadas. Uma serpente percorria seu corpo sobre as vestes e pele, enquanto uma espiga e o narciso eram tocados pela grou. Segurava em uma das mãos uma foice e na outra um punhado de papoulas. Perguntou o que eu queria e sua tez rosada, olhos lânguidos, louros cabelos aos ombros, seios opulentos, mostrou-me um sorriso. Logo ela mudou de tom e confessou arrependida por haver sofrido a vida toda enquanto fertilizava os solos e cobria de grãos e ervas todos os campos da terra. Uma lagrimou rolou da sua face ao narrar que foi violentada por seus irmãos, atacada por outros e que sofria da solidão de nunca ter sido amada. Olhou-me profundamente e me chamou de Iasion. Não entendi e ela repetiu o nome chamando-me para mais perto. Obedeci. Diante da sua esplêndida expressão, levantou-se e beijou meus lábios. Agarrou-se a mim qual amante viúva e me fez sua remissão. Dos beijos às libações de vinho doce para me iniciar nos mistérios de Hierofanto de Dôneo, o chefe dos Lampadoros, e Hierocérie dos arautos sagrados e assistente da Lua, até ter-me qual arconte-rei. E nos beijamos nus por lençóis de nuvens e ventos, e fez-se égua e eu amei a deusa das searas, inventora das leis e me fez seu garanhão alado por constelações e confins, finalmente amou de verdade e amava e era amada por dias e noites eternas. Depois do bilionésimo amanhecer, ela levantou-se nua e me encheu de presentes. Deu-me tudo, até um carro puxado por dois dragões, a foice, a maçã, os grãos e a cornucópia. Levou-me para todas as suas festas, as Demetrias, as Eleusinas, as Cereálias e as Temosforia, pelos campos dourados de sua amável divinização em ser amante devassa e inteira só para mim. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e, depois, aqui e aqui.


DITOS & DESDITOS - Um livro nunca é uma obra-prima: torna-se uma. A história é um romance que aconteceu; o romance é a história que poderia ter acontecido. Há homens, há uma mulher. Pensamento do escritor francês Edmond de Goucourt (1822-1896).

ALGUÉM FALOU: Devemos ler, mas também devemos pensar. Conheço pessoas que leem e leem, mas a quem talvez valesse o mesmo passar manteiga no pão. O esforço que empregam a leitura é o mesmo que homens melhores empregam ao levar o copo à boca. Pensamento do novelista britânico Arnold Bennett (1867-1931).

A RALÉ BRASILEIRA - [...] Mudam-se os jogos da dominação, que pressupõe desconhecimento sistemático da realidade sob a aparência de conhecimento, mas se preserva o mesmo sucesso ao se travestir do espírito (quantitativo) da época. É isso que explica que a forma como a sociedade brasileira percebe, hoje em dia, seus problemas sociais e políticos seja “colonizada” por uma visão “economicista” e redutoramente quantitativa da realidade social. O economicismo é, na realidade, o subproduto de um tipo de liberalismo triunfalista hoje dominante em todo o planeta (isso se mantém, apesar da recente crise, já que a articulação de uma contraideologia nunca é automática), o qual tende a reduzir todos os problemas sociais e políticos à lógica da acumulação econômica. Como historicamente entre nós se gestou entre os anos de 1930 e 1970 um tipo amesquinhado e pretensamente crítico de liberalismo que se consolidou como visão hegemônica do país desde os anos de 1970 e 1980 até hoje em dia, a união desses dois contextos, internacional e nacional, no sentido de uma síntese conservadora, fez com que a elaboração consequente e convincente de uma visão alternativa se tornasse especialmente difícil. [...] Como todo conflito social é dramatizado nessa falsa oposição entre mercado divinizado e Estado demonizado, os reais conflitos sociais que causam dor, sofrimento e humilhação cotidiana para dezenas de milhões de brasileiros são tornados literalmente invisíveis. É essa invisibilidade da sociedade e de seus conflitos — que é o principal produto do tipo de ciência social conservadora que se tornou dominante entre nós nas universidades, na grande imprensa e no debate público — que permite um tipo de economicismo, que, de tão hegemônico, transformou-se na única linguagem social compreensível por todos. É esse contexto desolador que explica que, mesmo nos setores não identificados com a manutenção indefinida dos privilégios de mercado de alguns poucos, nossos graves problemas sociais e políticos sejam todos superficialmente percebidos e amesquinhados a questões de “gestão de recursos”. Com isso, cria-se a falsa impressão de que conhecemos os nossos problemas sociais e que o que falta é apenas uma “gerência” eficiente — a crença fundamental de toda visão tecnocrática do mundo — quando, na verdade, sequer se sabe do que se está falando. [...] É a herança imaterial, mesmo nesses casos de frações de classes em que a riqueza material é o fundamento de todo privilégio, na verdade, que vai permitir casamentos vantajosos, amizades duradouras e acesso a relações sociais privilegiadas que irão permitir a reprodução ampliada do próprio capital material. Na classe média a cegueira da visão redutoramente economicista do mundo é ainda mais visível. Essa classe social, ao contrário da classe alta, se reproduz pela transmissão afetiva, invisível, imperceptível porque cotidiana e dentro do universo privado da casa, das precondições que irão permitir aos filhos dessa classe competir, com chances de sucesso, na aquisição e reprodução de capital cultural. O filho ou filha da classe média se acostuma, desde tenra idade, a ver o pai lendo jornal, a mãe lendo um romance, o tio falando inglês fluente, o irmão mais velho que ensina os segredos do computador brincando com jogos. [...] Para se compreender porque existem classes positivamente privilegiadas, por um lado, e classes negativamente privilegiadas, por outro, é necessário se perceber, portanto, como os “capitais impessoais” que constituem toda hierarquia social e permitem a reprodução da sociedade moderna, o capital cultural e o capital econômico, são também diferencialmente apropriados. O capital cultural, sob a forma de conhecimento técnico e escolar, é fundamental para a reprodução tanto do mercado quanto do Estado modernos. É essa circunstância que torna as “classes médias”, que se constituem histórica e precisamente pela apropriação diferencial do capital cultural, em uma das classes dominantes desse tipo de sociedade. A classe alta se caracteriza pela apropriação, em grande parte pela herança de sangue, de capital econômico, ainda que alguma porção de capital cultural esteja sempre presente. [...]. Trechos extraídos da obra A ralé brasileira: quem é e como vive (EdUFMG, 2009), do sociólogo Jessé Freire de Souza, que trata de uma classe de pessoas que não pertencem às classes alta e média, formando o grupo de excluídos e expressões como: A ralé é a grande questão esquecida. O Brasil não tem 500 problemas, mas um grande problema, que é essa desigualdade abissal do qual decorre mais de mil problemas. A primeira parte da obra trata sobre o mito brasileiro e encobrimento da desigualdade, a construção do mito da brasilidade, o senso comum e justificação da desigualdade para formação de uma ciência conservadora, a tese do patrimonialismo, a demonização do Estado corrupto, a divinização do mercado como reino da virtude e os limites do politicamente correto. A segunda parte trata do Brasil além do mito e os conflitos, trazendo outros colaboradores como Maria Teresa Carneiro, Emerson Rocha, Emanuelle Silva, Roberto Torres, Tábata Berg, Patrícia Mattos, Fabrício Maciel, André Grillo, Lorena Freiras, Lara Luna, Priscila Coutinho, entre outros, tratando de temas como as mulheres da ralé, o fundo do buraco, a miséria do amor dos pobres, a dor e o estigma da puta pobre, os homens da relé, o crente e o delinquente, o trabalho que indignifica o homem, a má-fé institucional, a instituição do fracasso, a má-fé da saúde pública e da justiça, o racismo, a naturalização da ralé e a má-fé da sociedade, contando com posfácio sobre o método da pesquisa e anexos, de José Alcides Figueiredo Santos sobre posição de classes destituídas e os números dos destituídos no Brasil.

O REI AMARELO - [...] Em uma manhã no início de maio, eu estava parado diante do cofre de aço em meu quarto, experimentando o diadema de ouro e joias. Os diamantes reluziram como fogo quando me virei para o espelho, e o ouro batido, pesado, queimava como um halo em torno da minha cabeça. Eu me lembrei do grito agonizante de Camilla e das palavras horríveis ecoando pelas ruas sombrias de Carcosa. Eram as últimas linhas do primeiro ato, e não ousei pensar no que viria a seguir. Não ousei, nem sob o sol de primavera, em meu próprio quarto, cercado de objetos familiares, tranquilizado pelo movimento da rua e pelas vozes dos criados no corredor lá fora. Pois aquelas palavras envenenadas tinham escorrido lentamente para o meu coração, como o suor da morte escorre para o lençol de uma cama e é absorvido. [...]. As leis que proibiam o suicídio e puniam qualquer tentativa de autodestruição foram abolidas. O governo achou apropriado reconhecer o direito do homem de acabar com uma existência que pode ser insuportável devido ao sofrimento físico ou desespero mental. Acreditamos que a comunidade será beneficiada pela remoção dessas pessoas de seu convívio. Desde a aprovação desta lei, o número de suicídios nos Estados Unidos não aumentou. Agora que o governo resolveu criar Câmaras Letais em todas as cidades, das maiores aos menores vilarejos do país, resta ver se esse tipo de criatura humana, de cujas fileiras desalentadas diariamente surgem vítimas da autodestruição, aceitará o alívio que elas fornecerão. [...] Os livros são o clorofórmio abençoado da mente. [...]. Trechos extraídos da obra O rei amarelo (Estampa, 2001), do escritor e ilustrador estadunidense Robert Chambers (1865-1933).


AMOR

Amor
Quando duas pessoas fazem amor
Não estão apenas fazendo amor
Estão dando corda ao relógio do mundo

VERÃO

No capinzal o meu cabelo cresce.
Pende, polpa madura, o labirinto no fruto
Todo o calor te diz: "amadurece Mais, ainda mais e tomba"!
Eu não espero
Vento nenhum que te derrube,
Eu quero que tombes,
Doce e morna, por ti mesma,
Onde mais sejas desejada e apetecida...
Vem!
Faremos
Da verdura acre
E doce polpa
Manjar que as reses lamberão
E virão farejar os animais noturnos
Antes de que nos sorva, lentamente o chão...


A CRIAÇÃO DA XOXOTA

Por ocasião do centenário do grande poeta
gaúcho, versos de puro lirismo!
Sete bons homens de fino saber
Criaram a xoxota, como pode se ver:
Chegando na frente, veio um açougueiro.
Com faca afiada deu talho certeiro
Um bom marceneiro, com dedicação.
Fez furo no centro com malho e formão
Em terceiro o alfaiate, capaz e moderno.
Forrou com veludo o lado interno
Um bom caçador, chegando na hora.
Forrou com raposa, a parte de fora.
Em quinto chegou, sagaz pescador.
Esfregando um peixe, deu-lhe o odor.
Em sexto, o bom padre da igreja daqui.
Benzeu-a dizendo: 'É só pra xixi!'.
Por fim o marujo, zarolho e perneta.
Chupou-a, fodeu-a e chamou-a...
Buceta!


MÁRIO QUINTANA – Poeta gaucho teve seu primeiro livro publicado em 1940, A Rua dos Cataventos. Em 1943, começa a publicar o Do Caderno H, espaço diário na Revista Província de São Pedro. Canções, seu segundo livro de poemas, é lançado em 1946 pela Editora Globo. O livro traz ilustrações de Noêmia. Lança, em 1948, Sapato Florido, poesia e prosa, também editado pela Globo. Nesse mesmo ano é publicado O Batalhão de Letras, pela mesma editora. Seu quinto livro, O Aprendiz de Feiticeiro, versos, de 1950, é uma modesta plaquete que, no entanto, obtém grande repercussão nos meios literários. Foi publicado pela Editora Fronteira, de Porto Alegre. Em 1951 é publicado, pela Editora Globo, o livro Espelho Mágico, uma coleção de quartetos, que trazia na orelha comentários de Monteiro Lobato. Com seu ingresso no Correio do Povo, em 1953, reinicia a publicação de sua coluna diária Do Caderno H (até 1967). Publica, também, Inéditos e Esparsos, pela Editora Cadernos de Extremo Sul - Alegrete (RS). Em 1962, sob o título Poesias, reúne em um só volume seus livros A Rua dos Cataventos, Canções, Sapato Florido, espelho Mágico e O Aprendiz de Feiticeiro, tendo a primeira edição, pela Globo, sido patrocinada pela Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul. Com 60 poemas inéditos, organizada por Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, é publicada sua Antologia Poética, em 1966, pela Editora do Autor - Rio de Janeiro. Lançada para comemorar seus 60 anos, em 25 de agosto o poeta é saudado na Academia Brasileira de Letras por Augusto Meyer e Manuel Bandeira. Info: Karl Leite Natal, RN.Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui



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