segunda-feira, março 13, 2023

PARVEEN SHAKIR, ANNIE DILLARD, IVO ANDRIĆ, ZELDA FITZGERALD & J. ORLANDO ALVES

 

Ao som do Concerto Grosso (2014) pelo Quarteto Radamés Gnattali e Fantasia para violoncelo (2022) interpretada pela violoncelista Eleonora Rodrigues, ambas do premiado compositor J. Orlando Alves (José Orlando Alves), atualmente professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPb) e coordenador do Laboratório de Composição Musical (COMPOMUS-UFPb).

 

TRÍPTICO DQP: - Invenção do visinvisível - O poeta olhou e viu: o cio do amanhecer. Durante o espetáculo ouviu o vento varrendo as ondas, poeiras e chão para aprumar pedras e caminhos; mais escutou do diálogo entre as gotas d’água se avolumando na correnteza dos rios e oceanos, e muito mais atentou com o desabrochar das sementes, a expansão dos tentáculos das raízes, a ramificação dos caules, o florescimento dos galhos, a pujança do fruto, mais as vozes e lamentos humanos que o fez sentir as entranhas da vida em cadeia e a sua reverberação. O poeta assistiu atento ao caos e distinguia o que dissera Parveen Shakir: Uma gota de chuva ficou presa em meus cílios e afundou no olho... Faça o que quiser, mas tenha isso em mente: o sol também foi acusado de ter beijado e abraçado a noite... Era o apocalipse lírico a sua estesia. E sabia que a vida real era essa, não a que seus olhos flagravam pelas ruas e cotidianos, cruzando seres hipnotizados como se estivessem vendados dentro de milenar mitologia. Em si comungava a invenção do visinvisível...

 


Retratos de identificação... – Inspirado no documentário homônimo de Anita Leandro (2014). Imagem: "Não esquecer, nem perdoar", mural em homenagem às Mães da Praça de Mayo, em Buenos Aires – Vidoutra essa, muito diferente da que presenciava pelos amanheceres e minguantes crepusculares. O que sei, onde moro qualquer lugar igual mesmice e falsas impressões. Na minha solidão falava alto Annie Dillard: Eu desço até a água para refrescar meus olhos. Mas em todos os lugares que olho, vejo fogo; o que não é pederneira é isca, e o mundo inteiro faíscas e chamas... E expôs entre as mãos: Este é o verdadeiro crânio perdido de Schiller, os demais são todos apócrifos. E mais mostrou das cartas de mortos, revelavam o que temia: os tribais sorielisarb. Ora, porque éramos e os nossos, tão antagônicos quanto assemelhados com seus anseios de bunkers fortificados protegendo-se de si e de nós mesmos. Fez-se então Filha da dor no Efeito Genovese, agora a sua foto com uma quina sobre o peito na hora da pose, o clique, e a minha face em todas as fotos de outros desaparecidos mundafora. Uma lágrima rolou sobre a face dela. E disse que não era hora de chorar. Sei que todos ignoram, os que se dizem vizinhos são tão estranhos quanto na horagá, os que trabalham e apenas isso, ou seja lá o que for, alheios a tudo. Era como se ouvisse Ivo Andrić: Entre o medo de que algo aconteça e a esperança de que ainda não aconteça, há muito mais espaço do que se pensa. Nesse espaço estreito, duro, vazio e escuro, muitos de nós passamos nossas vidas... E dizia que era preciso tomar pé dos batentes falsos, das emboscadas por muitos e quantos descaminhos. Em cada abraço um ato de amor entendido como loucura ou delito. Para quem vive havia de se cuidar, não será nada fácil passar por onde quer que seja. O que sei é que ela não deixou nenhuma carta, disse adeus e se matou sob um trem que passava numa estação de Berlim.


 

Cantarolava Mariazé... – Imagem: Quietude (2017), da artista plástica Marcia Gebara, integrante do Grupo Ateliê Virtual 2022. – Sim, cantarolava efusiva Mariazé a Sabiá de Zé Dantas e Gonzagão: A todo mundo eu dou psiu \ Perguntando por meu bem \ E tendo o coração vazio \ Vivo assim a dar psiu \ Sabiá, vem cá também \ Tu, que andas pelo mundo, sabiá \ Tu, que tanto já voou \ Tu, que fala aos passarinhos \ Alivia a minha dor \ Tem pena d'eu \ Diz, por favor\ Tu, que tanto andas no mundo\ Onde anda o meu amor, sabiá? E era pra lá e pra cá, fstiva, radiante. Acompanhava seus passos atentamente, sua vozinha, seus afazeres, sua disfarçada consternação. Por ser ruiva era apelidada pelos parentes de Boadicea; pros estranhos era reiterada Boadica. Não, não era, tinha certeza. Fui tirar isso a limpo e indaguei a razão pela qual tratavam-na pela tal. Respondeu-me tal Zelda Fitzgerald: Olhe mais perto e você verá algo extraordinário, mistificando algo real e verdadeiro. Nunca fomos o que parecíamos. Estranhei e só muito depois ela achegou-se reveladora: tornou-se o que a chamam ao tomar as dores de uma sua amiga que foi esquartejada pelo marido ciumento. Ninguém sabia a razão pela qual o crime ocorrera. E a notícia não demorou: explodiram também a cabeça dela, irreconhecível. Durante o enterro ouvi alguém soltar sigilo entre dentes com desdém, de que ela presenciara um crime e denunciou o assassino que foi preso; mas, pouco tempo depois, conseguiu fugir e foi à forra: tiros esfacelaram seu belo semblante. Dias depois um irmão dela também foi alvejado por balas até agora anônimas e está sepultado no silêncio de décadas. Comigo a dor de cada qual, dores pelos descaminhos. Mas o mundo pode ser diferente e melhor. Viver pode ser bom, necessariamente. Enquanto isso, até mais ver.

 

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