sexta-feira, julho 02, 2021

RAOUL HAUSMANN, LEOPOLDO ZEA, MARIO BUNGE & A DONZELA DE JÚLIO DE BERENGUER

 

 

TRÍPTICO DQP –- Dia a mais ou de menos... Imagens: as artes do artista visual e escritor austríaco Raoul Hausmann (1886-1971), ao som das óperas Licht - Die sieben Tage der Woche, a espiral eterna da semana de Karlheinz Stockhausen. - Com ele se dera o mesmo como Em declive, de Horacio Quiroga: Guiava o seu carango feliz da vida por ter trapaceado o algoz, ter escanteado um terceiro concorrente e saído vitorioso sozinho daquela licitação vultosa. Era o ás da jogada, sabia armar, sair por cima e passar a perna em quem ousasse desafiá-lo na competição da vida. Nessa hora até aumentou o som e olhou de lado o saco com a dinheirama: Sou o melhor, u-ru! Mais adiante resolveu dobrar numa transversal, encostar embaixo de uma árvore, puxar o saco e contar as cédulas. Nesse instante ocorreu um curto circuito agitando o ambiente ao redor, ele nem aí. Algo caiu sobre o teto do veículo. Nem ligou, queria mesmo saber o total do volume que amealhara. Assim entretido, quase nem percebeu uma picada firme ao pescoço, só se dando conta do que ocorrera ao passar a mão para demover o que mordia ali e perceber uma mancha de sangue colorindo o dinheiro. Era dos seus dedos: Hem? Passou a outra mão no lugar afetado e constatou que o sangue provinha de lá. Que foi isso? Olhou de lado e viu uma cobra assanhada na janela do carro, pronta para um novo ataque. Conseguiu sacudi-la para longe e vê-la descer pelo exterior do para-brisa. Num impulso fugitivo, virou a chave, acionou o motor, engatou a primeira e saiu imediatamente. Será que houve? Logo sentiu seus olhos turvarem, um inchaço sobressaía-lhe do local atingido, tonteou, sentia as mãos adormecerem e uma sede medonha, um queimor por dentro do peito. Esforçou-se para enxergar uma farmácia ou clínica médica, um hospital, o que fosse, no meio do trânsito agigantado de uma hora para outra. Ouvia buzinadas insistentes enquanto procurava de um lado a outro, onde estacionar para se medicar. Tentou se lembrar das proximidades de alguma emergência, não conseguia mais enxergar direito, acelerou e se sentiu num deserto, estacionou na primeira vaga encontrada e tentou enxugar o suor que lhe descia abundante pelas faces. Algo apertava a garganta e forçava sua memória a ponto de se lembrar de coisas esquecidas de muito. Confesso tudo que fiz, mas onde estou? Os pais, a família, os filhos, parentes e amigos, todos pareciam vivos e reprovadores na sua ideia. O que fiz? Parecia mais aprisionado no dito do Kurt Vonnegut: Bem, aqui estamos, presos no âmbar deste momento. Não há porquê. Agitou-se, afrouxou a gravata, desatacou os botões da camisa, calor insuportável, vertigens e nenhum socorro, aí fechou os olhos e tentou respirar. Tudo rememorado. O futuro? Nem soube direito como pensar agora sobre isso, seria temerário, mas sabia que seria deserção não cogitar, como considerara Milton Santos: Não se trata do futuro como certeza, porque isso seria desmentir a sua definição, mas como tendência. Aí se sentiu cada vez mais anestesiado, como se considerasse o que escrevera Evelin Lau: Para onde foram os sentimentos quando desapareceram? Eles deixaram um traço químico em algum lugar em nossas mentes, de modo que se pudéssemos olhar para dentro de nós, veríamos através dos padrões dos neurônios algumas das coisas importantes que aconteceram conosco em nossas vidas? Por um instante tentou raciocinar, a confusão das ideias o fizera duvidar até de si. Novamente fechou os olhos e... parou de respirar.

 


Outra assim do nada... - Eram cinco irmãos: Chico, Harpo, Gummo, Zeppo e o caçula Groucho. Homenagem do Maia pai, um fanático apreciador dos comediantes estadunidenses. Era um prestidigitador, enquanto a mãe uma bailarina cantatriz que mais encantava por seus dotes corporais que por talento, mas juntos enrolavam bem plateias incultas. Os meninos cresceram e como ele andava ocupado demais com a criação de novos truques, ela providenciou encaminhar os meninos para um futuro promissor, já que quatro deles eram bem hilários com propensões a comediantes, enquanto Groucho um chorão incorrigível. Atinou bem ela e criou com eles o grupo A Diva e as Mascotes Musicais. Veio então a peste e levou o mais velho. Não desanimou e formou o Quinteto Pastelão. Não demorou, outro sucumbiu, agora: Os quatro rouxinóis. Mais um deu baixa com a epidemia, era o Trio Manda Brasa. Aí foi a vez dela, pro saco. Xi, restou a dupla: Feliz e Chorão. Este último findou sozinho, seguindo os passos do pai e o superou com habilidosas lágrimas: tornou-se o Mago Chorão Maia. Nem ele sabia a razão do sucesso, foi levado de roldão e alcançou o estrelato. O pai ficou pelo caminho e ele nem deu tempo de procurá-lo porque estava assediado por muitos, a ponto de poderosos brigarem por sua predileção. No auge percebeu que escolheu errado, defendera com unhas e dentes, enganando a todos e fora abandonado por seu pretenso protetor, expulso de palcos e plateias. Recolheu-se solitário gozando do prestígio de rabiscar tantas páginas, imitando o astro: Memórias de um amante esquálido. Caiu na graça. Juntou uns trocados e bancou a tipografia: os adquirentes elogiavam, mas ele sabia que era falsidade. Depois publicou outro volume, copiando os títulos do ídolo: Eu e eu. Filosofia? Não, garatujas das ideias. E pensava intrigado no que dissera o filósofo mexicano Leopoldo Zea (1912- 2004): A filosofia deve ser uma espécie de olhos da sociedade. Até que tentara mesmo filosofar, mas desistiu quando soube filósofo argentino Mario Bunge (1919-2020): Não acredito em filosofias eternas, perenes, acredito que filosofia é fazer permanentemente. Preferiu seguir os passos do seu homônimo famoso e juntou um volume com As cartas. Vendeu aos montes, tudo copiado. Findou mesmo debruçado sobre suas definitivas memórias: O triste fim de Groucho Maia. Maldição do Fecamepa

 


Pinoia, não, de fato... – Verdade, essa aconteceu aqui perto: um poderoso senhor de engenho viu sua única filha crescer e tornar-se aformoseada moça cobiçada: Com essa ninguém casa! A debutante ficou inquieta e ele em riste: Só casa com macho rico! Aí ela botou as unhas de fora e poucos dias depois apresentava o namorado. Que é que você faz da vida? Sou trabalhador, enfrento qualquer situação, não tenho medo de nada e só um defeito. Qual? Sou pobre. Arrede da minha vista, traste! A filha caiu no maior pranto por meses e ele lá inexorável. Alguns meses depois apareceu um jovem ricaço que se apaixonou por ela e foi logo levado à sala da casa grande: Quero a mão da sua filha em casamento! E o que é que você tem? O noviço passou horas contando do que tinha e podia, dando ideia de não saber tudo que possuía. O pai ajeitou o bucho na fivela e largou na cara do petulante: Oxe, essa riquezinha que você tem não dá pra comprar de papel higiênico pra limpar a bunda da minha filha! Vôte. Apressado o namorado saiu e ela correu atrás dele para saber do resultado: Sai pra lá, cagona! E desapareceu do mapa. Tinha certeza eu que esse fato era exclusivo das terras da Mata Sul e não era: dei de cara com o relato no meio das páginas dum livreto: História de Santa Cruz do Capibaribe (Autor, 2003), escrito pelo autodidata Júlio de Berenguer – Júlio Ferreira de Araújo. Procurei saber melhor a respeito dele: só citações em estudos a respeito da localidade, nada mais. E ela? Coitada, ainda ontem a vi desamparada, nua e deitada na areia da praia, posando pro retratista Raoul. Até mais ver.

Veja mais aqui e aqui.