domingo, junho 20, 2021

LESLIE KAPLAN, ROBERT MENASSE, SHIRIN EBADI, SILVIA DE LUCCA & MESTRE SALUSTIANO

 

 

TRÍPTICO DQP –- Umas e outras tiradas do espelho - Ao som de Um tributo ao contrabaixo (2014), da compositora, pianista e psicóloga Silvia de Lucca, na interpretação do Quinteto Puelli, formado por Karin Fernandes (piano), Adriana Holtz (violoncelo), Luis Amato (violino), Anderson Fernandes (viola), Alexandre Rosa (contrabaixo), no Centro Cultural de São Paulo, 2014. - O que aconteceu? Sei lá! Estava eu enredado com o Espelho cego (Companhia das Letras, 2000), do escritor austríaco Robert Menasse. Como assim? Lá estava eu em Viena, na pele do aspirante a filósofo, Leo Singer, e às voltas com a paixão pela musa, Judith Katz, que sequer se dera conta de mim. Pudera, um sujeito pobre e feio, sobrecarregado de grilos nas ideias um tanto estouvadas, às tentativas até então inúteis de conquistá-la, jogando-me para ela como quem tomou água de chocalho nas inúmeras páginas de livros. A esperança residia no seu riso generoso, decerto que não escondia sua errática condição de existencialista romântica, o que tornava o idílio minado por meus tropeços intelectuais. Tudo fiz, tanto pelejar. Daqui pracolá a minha efigie borrou e queimado o filme, ela arrefeceu e tudo desmoronou: autoestima para a lata do lixo, gargalhadas pelas costas. E eu mergulhado nas circunstâncias de um Brasil golpeado, sem conseguir escapar, maior embotamento: impossível ser feliz debaixo de vacilações e fraquezas, misturando o que vivo e o que penso e dá no mesmo, a mesma coisa: o passado que anima a crueldade do presente. Só que o tempo não espera e eu me valho do que penso, nada deu nem dará certo. Deu-se então de o próprio autor dar as caras assim do nada, a me dizer de uma outra obra sua, A capital (Dom Quixote, 2019):  Haverá arte que seja importante numa época, mas que depois seja, e com razão, esquecida? Não entendi. E como um cético refletindo sobre os fantasmas do seu tempo, em cima da bucha, ele sentenciou: Posso ter uma pátria sem ser nacionalista. Ouvi coisa parecida de Jarauta nalgum lugar, me parece. Ele deu de ombros, virou-se e fiquei a reboque da surpresa. Parecia que voltava, mas não, a chegada repentina da escritora irlandesa Jean Iris Murdoch (1919-1999), como se soubesse de tudo que se passara comigo: O amor é a compreensão extremamente difícil de que algo diferente de si mesmo é real. O amor e a arte e a moral são a descoberta da realidade. Um dos segredos de uma vida feliz é a sucessão de pequenos prazeres. O desejo esmagador de um corpo humano por outro em particular, e sua indiferença aos outros é um dos maiores mistérios da vida. E eu fisguei o seu olhar sem saber o que fazer naquela hora. Ela sorriu percebendo meu embaraço. Só podia transcender: o mergulho no espelho.

 


Duas ou mais coisas do travesseiro - Imagem: arte do quadrinista, artista plástico, escritor e arte-educador Nestor Isejima Lampros, ao som de Songs from my Heart: Morigasaki kaiigan - Melody, opus 279; Haha - Fantasy, opus 273; e. Ningen kakumei no uta/Sekai kofu no uta - Paraphrase, opus 272, do compositor, pianista, musicólogo e pedagogo Amaral Vieira, live performance at Tokyo Metropolitan Art Theater, 2010. - Entre um pulo de susto e o tombo de uma topada, vi Desidério quase se esparramar no chão da calçada. Segurei firme e ele se restabeleceu. Olhou para mim e como um bom cristão que era, sabia-se pecador e, por isso mesmo, corruptível, muito embora fincasse pé e não arredasse um centímetro de nada apalavrado, dito seu era líquido e certo. Ele temia os mortos e se assustava com facilidade aos trovões e relâmpagos, para ele, fúria do de lá de cima com alguma falta inadvertida. Como bom devoto, ele se benzia e batia três vezes na madeira mais próxima, nem faltava à missa domingueira para redimir seus pecados, lavando a alma na hóstia. Era bastante cuidadoso, mas resolvia tudo no sopapo - refletir não era lá o seu forte, pensava como um papa-capim num galho de laranjeira. Mas decidia, nisso era vaidoso, doesse em quem fosse, só ele pagava o pato no final, coitado. Nunca achou pérola em ostra e amealhou algum pé de meia oriundo de seus proventos de exemplar funcionário púbico, nada mais. Posava de probo inarredável: um assombrado que vivia como se usasse eternamente fraque. Vez em quando chato empolado, castigando falsa eloquência nos esses e erres, como se quisesse falar o que nunca conseguia dizer, o juízo atrapalhava. Atrás de um rabo de saia fácil não era lá tão escrupuloso assim. E se dizia e fazia questão de ser elevado em tudo, embutia na face amável o íntimo de papel de enrolar prego, pura tagarelice de só se render diante da exaustão da causa. Encarou na vida as ironias da realidade e teve de podar os desejos, viu-se a sombra de uma sombra. Olhou-me ali segurando o seu tombo na esquina, então, abraçou-me, deitou a cabeça ao meu ombro e chorou. O que houve? Afastou-se, fitou-me fundo aos olhos e saiu. Ao meu lado a jurista e ativista iraniana exilada, Shirin Ebadi compreendeu: A beleza da vida está em lutar contra as situações difíceis. Comparo minha situação com a de uma pessoa a bordo de um navio. Quando ocorre um naufrágio, o passageiro cai no oceano e não tem escolha a não ser continuar nadando. O que aconteceu em nossa sociedade foi que as leis derrubaram todos os direitos das mulheres. Eu não tive escolha. Eu não conseguia me cansar, não conseguia perder as esperanças. Eu não posso me dar ao luxo de fazer isso. Solidário, sabia todos nós exilados: a cabeça desamparada ao travesseiro.

 


Três pulos e outras tantas para nada... - Ao som de Lembrança de um beijo, do álbum homônimo (1994), do saudoso cantor e compositor Acioli Neto (1950-2000). - Lá estou eu pelos grafites das ruas assobiando o Recife. Errava sem pressa até que a poeta francesa Leslie Kaplan apareceu e sacou um verso do seu L’Enfer est vert (Luna Parque, 2018): Quem é você, palavra,/ e o que é que você quer dizer... E o inferno, será que se agarra o inferno/ não, não se agarra, se experimenta/ como é que se faz para experimentar sem conhecer? Não sei, mas se quiser eu topo! E veio quando o Sol abriu o dia na Guararapes como se fosse qualquer lugar no mundo, misturando as pernas e braços no meio do maracatu rural Piaba de Ouro, com os folguedos do cavalo marinho pelo Cais de Santa Rita, coco por Afogados, ciranda pela Imbiribeira, brincante pela tarde como dama e eu galante no Boi Matuto e às lorotas do Mamulengo Alegre, se aprontando pro pastoril no Iluminara Zumbi, da noite Tabajara na Casa da Rabeca. Lá pras tantas, ela tonta e risonha: Quem é? Ah, esse o artesão, ator, músico e compositor, Mestre Salustiano (Manoel Salustiano Soares – 1945-2008), rabequeiro que desde menino começou a trilhar os passos do pai, João Salustiano, e hoje se eterniza na arte dos filhos. E ficou maravilhada com a premiada narrativa dos capítulos da jornalista Mariana Mesquita: Família Salustiano – três gerações de artistas populares recriando os folguedos da Zona da Mata (FUNDAJ, 1999). E mais curiosa queria saber de tudo. Já na despedida da noite para outro dia, ela quis saber da minha: A vida entre um instante e outro – simulacros e bifurcações, emulação dos astros. E assim, sim. Até mais ver.

 

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