quinta-feira, junho 10, 2021

GROTOWSKI, BIA LESSA, HELIA SCHEPPA, TEATRO & O ESPELHO DE WANG TU

 

 

TRIPTICO DQP – A vida segue adiante... - Ao som de Guinga Instrumental (2 Vls - Galeão, 2018), do compositor e músico Guinga. - Hoje dei de cara com um espelho que não era aquele que estava desde sempre afixado ali. Era outro e não era nada comum. Como foi parar ali, não sei. Como é que pode? Explico: este parecia ser de bronze, acho. Possuía, mais ou menos, umas oito polegadas de largura, com um suporte traseiro em forma de unicórnio agachado e, nos quatro cantos da parte anterior, havia lá figuras pintadas de quatro animais. Depois de muito rever, identifiquei: um dragão, uma fênix, um tigre e uma tartaruga. Isso mesmo. E mais: cada um desses animais estava cercado de oito diagramas que, por sua vez, estavam cercados pelos símbolos, ao que me parece, com certeza, das doze constelações do zodíaco. Tudo muito estranho. Virei e revirei. Na parte da frente dava para se ver vinte e quatro caracteres por mim não identificáveis, numa caligrafia de traços abruptos. Danou-se! Bote estranhice em tudo. Fui pesquisar, aqui e ali, vixe! Com o tempo identifiquei um a um dos diagramas: era do Yi-king, isso conforme acesso às publicações Yi-king – Le livre des transformations, um livro em capa dura que achei sem data e editora, traduzido pelo sinólogo e teólogo alemão Wilhelm Richard (1873-1930), e também um outro, Yi King: Les essentiels du bien-être (Grund, 2005), uma edição ilustrada realizada por Gary G. Melyan e Wen-kuang Chu. Repara só, estão pregando uma peça comigo, só sendo. A caligrafia só identifiquei ao me apossar de uma tuia de tomos e enciclopédias antigas, dando-me a constatação de se tratar do estilo Li-Chu, ou seja, do tempo de um certo imperador chinês lá dos anos 727-729 dC. Queimei noites e dias as pestanas e os neurônios de tanto encará-lo e percebi que, ao colocá-lo contra a luz, dava para distinguir que, contra a superfície metálica, havia desenhos no verso. Que é isso? Só faltei arrancar os cabelos, descobrindo, finalmente que eu estava diante do velho espelho de Wang Tu, um objeto estranho. Ah, tá. Sim, mas como foi parar ali? Não queiram nem saber: o que passei depois que dei fé dele, as coisas estranhas é que começaram mesmo a ocorrer ao meu redor. Primeiro foi uma aparição repentina do Saul Bellow para jogar, assim do nada, na minha cara: Ah, é uma praga, a vida que se exibe, uma verdadeira praga! Estamos numa época em que todos os ridículos filhos de Adão desejam evidenciar-se perante os outros, com todos os seus ditos espirituosos, esgares e tiques, toda a glória da fealdade auto-adorada, afirmando aos restantes - num transbordar de narcisismo que os outros interpretam como benevolência - 'Aqui estou para dar testemunho. Vim para lhes servir de exemplo'. Pobres espectros tontos! Fiquei mastigando aquilo na ideia e ao tentar expressar minha opinião a respeito do que dissera, não era mais ele ali, era a Bia Lessa mais que reveladora: Vivemos uma desconstrução. Valores fundamentais estão sendo derrubados. E sorriu diante da minha estupefação: Venha. E fui, claro.

 


Duas vezes sob a luz do palco... – Ao som do álbum Rosinha de Valença ao vivo (Forma, 1966), da compositora e violonista Rosinha de Valença (Maria Rosa Canellas – 1941-2004). – Ao sairmos, o que deveria ser a minha sala-estar, era agora um palco com atores e atrizes seminus, que passavam entre nós. Logo não mais a vi, estava perdido e procurando onde me amparar em qualquer lugar, para presenciar ao exercício laboratório, creio. Ouvia alguém gritar para eles algo como transluminescência, em que o impulso é ao mesmo tempo a reação. Curioso. Agucei a atenção, encostei num canto e fiquei intrigado acompanhando o movimento. De repente surgiu Jerzy Grotowski: O perigo e a sorte vão juntos. Não há grande classe se não diante do perigo. No momento do desafio aparece a ritmização das pulsões humanas. O ritual é um momento de grande intensidade. Intensidade provocada. A vida então se torna rítmica. O Performer sabe ligar o impulso corpóreo à sonoridade: o fluxo da vida deve articular-se em formas. Era uma lição do seu El performer – The Grotowski Sourcebook (Routledge, 1997), que eu estudara anos atrás, a respeito do exercício de conhecimento e transformação de si, apontando para o horizonte ético do trabalho de atuação, com base na Arte como Veículo, a relação entre a vida interior e a espiritual do ser humano, por meio de uma reflexão sobre o potencial da condição humana na perspectiva do comportamento orgânico – o Teatro Laboratório. Entendi que falava de interioridade na investigação e o acesso a diferentes estágios experienciais, como ato de transformação individual por meio de uma ação e do fazer, além de qualquer função espetacular e sem vender a alma: ofício e ética. Assim, para mim, era um momento iniciático, jamais arredaria o pé dali.

 


Três avisos: não só se vive de espelho... – Imagem: arte da premiada fotógrafa Helia Scheppa. - E não arredaria mesmo, não fosse eu me render ao cansaço e o sono. Se tudo foi real, me pareceu um sonho para lá de desejável, senão aprazível. É que ao despertar, ao meu lado estava o volume O teatro moderno em Pernambuco (Desa, 1966), do ator, crítico teatral, ensaísta e professor Joel Pontes (1926-1977), livro este que eu nunca havia posto os olhos em cima. Quem trouxera? Quem ali colocou? Mistério. Mas, pelo menos, gostei de ter esse volume às mãos, contando a história do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) e do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), afora as atividades do autor como integrante do curso de Arte Dramática, da Escola de Belas Artes da UFPE, enfim a trajetória da atividade teatral pernambucana, analisando os principais grupos, amadores e profissionais, como o Grupo Gente Nossa (GGN), o Teatro Adolescente do Recife (TAR), o Teatro de Cultura Popular e (TCP) e o Teatro Popular do Nordeste (TPN). Além disso tudo, realiza um estudo introdutório e panorâmico dos dramaturgos pernambucanos mais expressivos, entre eles, Hermilo Borba Filho, Aldomar Conrado, Ariano Suassuna, Aristóteles Soares, Isaac Gondim Filho, José Carlos Cavalcanti Borges, Luiz Marinho e José de Moraes Pinho. Uma leitura assaz reveladora, principalmente por me dar a ciência de que ele também é autor de outras obras, como Ensaios do visitante (1970), contando da sua ida aos Estados Unidos, e O aprendiz de crítica – 2 volumes (1955-1960). Ampliei meus conhecimentos acerca das atividades teatrais no estado e guardei de bom grado entre os outros volumes que possuo da área em uma das minhas estantes. Mesmo não sabendo quem me presenteou tal volume, agradeço então à vida, a oportunidade de lê-lo. Até mais ver.

 

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