quarta-feira, novembro 04, 2020

GYULA KRÚDY, SARAH HALE, BERTHA VON SUTTNER, LING JIAN, CYD CHARISSE & CAVANI ROSAS

 

 

TRÍPTICO DQC: CLOSE DE MAIO - Não era, mas pareceu: tudo tão infinito dentro de mim e eu reduzido a um retângulo em que tudo se dissolve com a latomia dos viventes num caleidoscópio. Perdi o calendário, graças, nenhuma data ou acerto, resta apenas um poema num close de maio: Estou nessa rua e vou só. Minha morte se completa. Graças aos céus sou um sujeito de sorte. Mordi a maçã sem o conselho da serpente e nos meus olhos soturnos repousa a comiseração. A vida é pouca aqui. Tende, portanto, piedade da minha loucura, das minhas exacerbações. As noivas passeiam por maio e eu sobrevivo ao afago dos nubentes. Não há nada na minha euforia, apenas calçadas mormaçadas nos desejos de maio em meu vadio coração. Neste exato momento Giles Deleuze aponta no possível: As pessoas só têm charme em sua loucura, eis o que é difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das pessoas é aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não sabem muito bem em que ponto estão. Não que elas desmoronem, pois são pessoas que não desmoronam. Mas, se não captar aquela pequena raiz, o pequeno grão de loucura da pessoa, não pode amá-la. Não pode amá-la. É aquele lado em que a pessoa está completamente... Aliás, todos nós somos um pouco dementes. Se não captar o ponto de demência de alguém... Ele pode assustar, mas, a mim, fico feliz de constatar que o ponto de demência de alguém é a fonte de seu charme. Ouvi atento, sou a vertigem do paradoxo. E uma mão repousa ao meu ombro, era ela a dizer Rachel de Queiroz: A vida é uma tarefa que não pode ser dividida com ninguém. A gente nasce e morre só. E talvez por isso mesmo é que se precisa tanto de viver acompanhado. Cada coisa tem sua hora e cada hora o seu cuidado. O seu riso apaziguador nos meus tormentos. A vida é isso: o que vai e volta sem ter direção na certeza nem paradeiro.

 


O SOM DE UMA MÃO – Imagem: arte da artista chinesa Ling Jian - Não a vi sair, escapou no meu descuido e voltei às minhas leituras. Entretido em folhear o volume, nem a vi chegar como se fosse a escritora, ativista pacifista austríaca e Nobel da Paz de 1905, Bertha von Suttner (1843-1914): Depois de amar , ajudar é o mais belo verbo do mundo! Sorri feliz com a presença dela nua recostada ao divã, a me contar uma lenda zen daquelas historias selecionadas pelo Paul Reps: Morukai, o Trovão Silencioso, era o mestre do templo Kennin e possuía um pequeno protegido, Toyo, de apenas doze anos e queria, como os demais discípulos, receber instrução do sanzen e dos koans: Você é muito jovem! Mas a criança insistiu e ficou acertado dele, ao bater do gongo ao entardecer, sentar em silêncio diante do mestre: Você pode ouvir o som de duas mãos quando batem palmas juntas, mostre o som de uma só mão! Toyo inclinou-se e foi meditar. Ao ouvir a música das gueixas teve o estalo e foi no dia seguinte na hora marcada para o mestre: Não, isto não serve, não é o som de uma mão. Então ouviu o som da água pingando e, como no dia anterior, fez o mesmo: Não, este é o som da água pingando e não o som de uma mão. Ele voltou à meditação e ouviu o suspiro do vento, também rejeitado. Ouviu o grito de uma coruja, identicamente recusado. Não era o som dos gafanhotos e o que seria? Por dez vezes esteve com o mestre e estava errado. Um ano se passou com suas reflexões profundas e finalmente ingressou na verdadeira meditação, transcendendo todos os sons: Esse não podia coletar, era o som insonoro. Toyo havia realizado o som de uma mão. Ao concluir, levantou-se, achegou-se bem perto, sorriu e citou o escritor húngaro, Gyula Krúdy (1878–1933): Na fenda entre os joelhos, o vento e o pensamento sem dúvida passavam livres. Com um beijo perdemos a noção do tempo e do mundo.

 


A JANELA DO QUARTO DE STORISENDE - Imagem: arte da atriz e bailarina estadunidense Cyd Charisse (1922-2008). - Só com o amanhecer percebi que o meu quarto possuía outras janelas. Na verdade três janelas, duas delas ofereciam uma visão clara do mundo exterior e, ao tentar abrir a terceira, ela despertou avexada aplacando a minha ação, fechando-a imediatamente com a admoestação de quem passa por essa janela não consegue escapar dos sonhos dos outros e parte numa jornada apavorante para além do mundo das aparências. Olhei-a interrogativo e só aí é que me dei conta que o meu quarto se transformara durante a noite ao do templo de Ageus de Storisende, aquele mesmo dos relatos de Jurgen, a comedy of justice (1919 - BiblioLife, 2009), Figure of Earth: a comedy of apperance (1921 - : R.M. McBride, 1926) & The hight place, a comedy of disenchamntment (1923 – R.M. McBride, 1928), do escritor estadunidense James Branch Cabell (1879-1958). Ela cuidadosamente contou da maldição da janela do castelo de Ageus de Filístia, pilhado pelo duque de Asmund, e que nesta terceira janela, exatamente a que eu estava abrindo e não me deixou, há apenas um lusco-fusco cinzento em que nada é claramente discernível e que foi exatamente por ela que Manuel, o grande herói e libertador de Poictesme, atravessou e nunca mais retornou. Surpreso e desconcertado e falou-me tal Alexandra David-Néel: Coisas definitivas sempre me horrorizaram. Existem pessoas que temem a instabilidade. Por outro lado, temo o contrário. Não gosto que amanhã seja como ontem, e a estrada só me parece atraente quando não sei aonde ela leva. A aventura será a minha única razão de ser. Contraditória e cautelosa, aproximou-se com um verso da ativista poeta estadunidense Sarah Hale (1788-1879): ... te amarei de janeiro a janeiro, até o fim dos tempos... E esquecemos janelas, sagas, terrores e exprobrações, meu corpo no seu e ela bailou de todos os jeitos e formas nua em mim por toda nossa festa. Até mais ver.

 

CAVANI ROSAS

Estou caminhando para o abstrato. Quando eu faço meditação eu vejo muitas luzes e cores. Estou tentando chegar lá.

A arte do escultor e desenhista Cavani Rosas. Veja mais aqui & aqui.