SOLILÓQUIO MATUTINO – Para quem já vai tarde, vou agora: fim ou recomeço, tanto
faz, a qualquer parte alguma ou nenhuma. Vou a bordo da solidão, a partida
deslizando meu corpo na navalha afiada pela encosta de ilhas submersas. Sentir
só meu o Sol que partilhei e deram as costas ou negaram para que eu me
desfizesse aos pedaços com uma facada no flanco, punhalada nas costas, uivando
cão noturno na manhã ensolarada. Não me sigam, fiquem onde estão, é mais seguro,
porque ergo pedras insustentáveis, músculos exaustos e esmagados, a tentar
preencher as lacunas do tempo para subsistir onde nada sobra por desespero,
arrastado ao lodo e o vazio perpetuo nas vozes dos mortos pelas brechas, mãos
estranhas e eu despedaçado lambendo o próprio sangue, quem sabe, amanhã melhor
sorte, sabe-se lá, juízes que me julguem como quiserem pros que riem de mim
pelo delírio da minha carne em postas nas trevas da estrada deserta. Entre os
dentes o que falei de amor e só ouviram o próprio passado, quem jamais amou,
quem jamais sucumbiu ao amor, quem há de amar de verdade, estilhaçado coração,
vazio olhar. Não me deixa dormir as almas desunidas, não me atreveria sequer
velá-las. Passei a vida como quem errou, também era meu destino, assim o quis
sem saber massacrado pela queda sem escutar das emboscadas homicidas, porque não
confesso a mão ferida por espinhos das rosas que colhi e as perdi de cada vez,
sangrando, e outra dor a cada dia, nada demais. Os pesares se dissolvem, nunca
fui poeta para exorcizar os tormentos em versos mágicos, apenas revolvo cinzas
de maio como se os dedos da mulher amada alisassem minha carne e me fizesse
vivo ao toque, a me ensinar da entrega na ausência, ajoelhado silêncio. Guardo os
lábios úmidos do amor à mulher nua desejada e fugitiva dúbia, ama e desama,
olhos grandes. Depus todos os haveres e posses, nenhum navio sobrou, nenhum
piso ou teto, nenhuma espera, até a última jangada, a única que restava, deixei-a ir sozinha
correnteza afora, para nunca mais. Náufrago, braçadas na utopia dalguma ilha
perdida por aí, deitar a cabeça ao chão, o céu frio por cobertor estrelado e a
vida que resta no esquecimento. © Luiz Alberto Machado. Direitos
reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS
[...] A
concatenação das revoluções tecnológicas e dos processos civilizatórios com as
respectivas formações socioculturais permite falar de um processo
civilizatório global, diversificado em etapas sucessivas, que, mesmo
cumprindo-se em povos separados uns dos outros no tempo e no espaço, promoveu
reordenações da vida humana em áreas cada vez mais amplas e sua integração em
entidades étnicas e políticas cada vez maiores, até unificar toda a humanidade
num só contexto interativo. Através desse processo, a espécie humana, que era
originalmente pouco numerosa e largamente diferencia em etnias, se foi
multiplicando demograficamente e reduzindo o número de complexos étnicos, tanto
no plano racial, quanto no cultural e linguístico. Este movimento parece
conduzir, em termos milenares, à unificação de todo o humano em uma só ou muito
poucas variantes raciais, culturais e linguísticas, até que um dia, em futuro
remoto, a redução do patrimônio genético torne qualquer casal capaz de
reproduzir qualquer fenótipo e cada pessoa capaz de entender-se com as outras,
à base de um amplo patrimônio cultural coparticipado. [...] Nada autoriza a supor que tenha limites a
flexibilidade até agora revelada pelo homem para ajustar-se às condições mais
diversas. É de perguntar-se, porém, se o condicionamento cada vez mais
opressivo a ambientes culturais não pode pôr em risco a propria sobrevivência
humana. As ameaças que já hoje pesam sobre a humanidade levam a temer que
estejamos alcançando esses limites, arriscando ultrapassar a linha fatal, se
não forem desenvolvidas formas racionais de controle da vida social, econômica
e política que habilitem os povos ao comando científico de todos os fatores
capazes de afetar seu equilíbrio emocional e sua sobrevivência sobre a Terra.
[...].
Trechos extraídos da obra O processo civilizatório: etapas da evolução sociocultural
(Civilização Brasileira, 1975), do antropólogo e escritor Darcy Ribeiro (1922-1997). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
A POESIA DE MARIA POLYDOURI
Eu canto só porque já fui amada / por ti em outros dias;
/ e à chuva e ao sol de um pressago verão, /e à neve e à ventania, / eu canto
só porque já fui amada. / Só porque me tomaste nos teus braços / uma noite e me
beijaste a boca, / só por isso eu sou bela como um lírio aberto / e um arrepio
ficou-me na alma louca, / só porque me tomaste nos teus braços. / Só porque me
fitaste certa vez / com a alma no olhar, / a minha vida fez-se altiva e ornei-me
/ de um diadema singular, / só porque me fitaste certa vez. / Só porque por mim
passaste indiferente / e em teus olhos, de passagem, / vi minha sombra, comum
sonho, tristemente / passar, sofrida imagem, / só porque por mim passaste
indiferente. / Só porque hesitei quando chamaste / e me estendeste a mão / e
trazias os olhos amorosos / repletos de paixão - / só porque hesitei quando
chamaste. / Só porque, só porque eu te agradava / é que a minha passagem foi
tão linda, / como se a toda parte me seguisses / e junto a ti eu estivesse
ainda, / só porque, só porque eu te agradava. / Só porque fui amada é que eu
nasci / e ao teu amor dei minha vida. / Uma vida incompleta, sem prazer, / mas
não perdida, não perdida; / só porque fui amada é que eu nasci. / Só por causa
do teu amor de eleito / nas mãos floriu-me uma rosa de arminho / e a noite pôs
estrelas nos meus olhos / para um instante aclarar teu caminho, / só por causa
do teu amor de eleito. / Só porque fui amada assim por ti / pude um dia viver /
nos belos sonhos onde tu reinavas, / e é-me doce morrer / só porque fui amada
assim por ti.
A ARTE DE MISS.TIC
A arte da artista visual e de rua francesa Miss.Tic.