quinta-feira, agosto 02, 2018

MORAVIA, KRISHNAMURTI, MANOEL DE BARROS, BEATRICE BERRUT, ASCHER, ELISABETH SONREL & DOROTHEA TANNING


BEATRICE AMADA - Imagem: Portrait Béatrice Portinari, da pintora francesa Elisabeth Sonrel (1874-1953) - Ah. Beatrice bela menina-flor já mulher feita iniciática, minha remissão da vida, meu etéreo transcender. Ah formosa amada, tenho muito pra contar do que sucumbi nas entranhas dos nove círculos do inferno, todos os umbrais descobertos no vestíbulo da Ars Amatória de Virgilio, a me levar pra Caronte, no rio Aqueronte, não me permitir a travessia e a me dar por morto-vivo desperto ao lado das almas que escolheram a virtude, entre os pagãos e os que chegaram antes, todos no limbo sem esperança do céu e lá estava eu porque nunca professei fé alguma. Pra minha surpresa Homero me contou de Troia e Odisseia, e seguia adiante para ver os luxuriosos arderem na tempestade de vento. Entre eles, Francesca de Rimini me acenou sedutora, quase não a via direito porque Cérbero vigiava ruidoso o flagelo dos gulosos na chuva putrefata e os avarentos desfilavam com seus pesos e, no Pântano do Estige, os iracundos e os insolentes soberbos estavam na lama. Procurei inutilmente por ela que desaparecera, Virgilio me chama atenção para apanhar a boleia de Elagias, assim eu poderia chegar às muralhas de fogo de Dite, as punições e as culpas. Tudo me levava a você, amada Beatrice. Todos os meus caminhos em sua direção e os demônios impediam meu avanço, até que um enviado celeste desconhecido me abriu as portas da cidade e eu pude escapar da maldição de Medusa e das três Fúrias. Logo adiante estavam os hereges nos túmulos de fogo de Dite, os assassinos nos rios de fogo, as flechas dos centauros atingiam os violentos e cadelas ferozes e famintas perseguiam e devoravam os esbanjadores. Os violentos e os usurários estavam deitados sob a chuva de fogo, enquanto outros caminhavam em meio a tantos horrores. Ao sair da cidade um monstro alado me guiou para o fundo do precipício e o oitavo círculo para divisar os fossos e as pontes das torturas e dos pecados com três gigantes acorrentados e o frio dos traidores. Cheguei ao centro da Terra e não era ali que você estava, Beatrice. Precisava, então, voltar e subir guiado pelas estrelas – o Cruzeiro do Sul – apontarem para o Paraíso, onde não existia pecado porque era o sul do Equador, o purgatório, a única ilha, uma montanha circular onde expiavam os arrependidos do orgulho, da inveja, da ira, da preguiça, da avareza, da gula e da luxúria. Como sempre fui pródigo e não me arrependi, temi pelo pior ao me despedir de Virgílio, barrado na entrada. Seguia pra você, Beatrice, oh minha bela Portinari, até encontrá-la para me levar ao Lete e matar minha sede de séculos. Era o paraíso com seus sete céus móveis até o fixo e o segundo Cristalino, sem estrelas e feito de luz para encontrar a rosa branca poética com seu triângulo. Foi você quem me deu a luz e desapareceu. Alguém me acompanhava, não era mais você, Beatrice, alguém irreconhecível que me concedeu o terceiro céu, jamais soube quem era. Aí entoei os meus cem cantos e fui pelos nove degraus e as três hierarquias superpostas no pedestal do amor, para poder vê-la radiante aureolada com seus olhos de mar e riso de Sol, a me dar seus braços aos abraços e beijar-lhe os lábios dos prazeres zis, a tocar-lhe os seios de todas as bonanças e alisá-los com minhas mãos pedintes a percorrer sua pele macia de promessas e seduções, porque amei demais da conta e se errei à toa, foi na sua carne que me perdi e me encontrei para ser-me a Terra e a sucessão de círculos concêntricos, elípticos e constantes, enquanto abdicava dos guelfos e dos interesses dos rivais pelo poder, e fui por todas as esferas depois da batalha de Campaldino e o que me restava de prior banido pela depressão do Mar Morto, a quem devo a De Vulgari Eloquentia e a incompletude do Convivio, a De Monarchia, não mais Florença, só Ravenna de onde acompanhei a mecânica celeste no meio das lembranças de minhas alegorias, desde o tempo em que fui aprisionado por Gemma Donati e você ao banqueiro ogro. Refiz meus trinta e três cantos em terza rima aos tercetos para cantar a sua alma e proceder na sua emanação até encontrá-la nua pra minha infinita revelação. E depois de tudo, amada minha, foi no seu sexo que colhi a Vita Nuova e pude cantá-la paixão intensa de amante extremo e guardá-la em meus braços na acolhida do seu corpo de todas as miragens do amor maior, e beijá-la as faces nas torrentes do seu prazer, e despi-la ao meu afago para possui-la como a única amada do meu coração nas trilogias da minha divina comédia. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música da pianista suíça Beatrice Berrut: Après une lecture de Dante by Liszt, Chaconne in D-minor by Bach-Busoni, Totentanz by Liszt & Concert 26 by Mozart & muito mais nos mais de 2 milhões & 500 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] O mundo contemporâneo em globalização conhece transformações suficientemente profundas para que se possa qualifica-las de mutação societal. Mais precisamente, consideramos que o processo de modernização que deu nascimento aos tempos modernos é sucedido, e eles fazem emergir uma sociedade ainda mais moderna, quer dizer mais individualizada, mais racional, mais diferenciada, e mais capitalista. Trecho extraído da obra A sociedade hipermoderna (L’Aube, 2005), do urbanista François Ascher (1946-2009), que em uma entrevista ao Millénaire 3 (GrandLyon, 2002), assinalou que: [...] Face a essa incerteza, o planejamento urbano não pode mais ser linear e sequencial, mecanicista e balístico; ou seja, não pode mais pretender ser previsional, programático, sistemático, imperativo. Ele deve se construir sobre a base de uma racionalidade limitada em universo incerto. Para orientar, enquadrar, regular, gerir, o planejamento e mais genericamente o urbanismo [...] devem implementar instrumentos que admitam as flutuações, a criatividade, a incerteza, a contradição, a ambiguidade, a imprecisão. O urbanismo deve de alguma forma passar do “planejamento estratégico” à “gestão estratégica”. [...].

UMA LENDA DE KRISHNAMURTI – [...] há muitos anos, virtuoso anacoreta, grandemente venerado, de nome Timanak [...] contentava-se com um punhado de arroz branco e meia medida de ervilhas secas. Sua vida de expiação era pautada por extrema abstinência e desprendimento. Cobria a nudez do corpo magro apenas com uma tanga. Tinha, além disso, outra tanga que usava quando se via obrigado a lavar e purificar a primeira. [...] esse virtuoso eremita das duas tangas, ouviu, certa vez, contar que vivia em Dakka, a acidade dos cento e sete templos, o douto Sindagg Nagor, filósofo de renome, que conhecia a Verdade. – Vou procurar esse homem – refletiu o ermitão. [...] – Que desejas de mim, meu irmão? – indagou o sábio Sindagg Nagor, acolhendo bondoso o desnudo visitante. – Em que poderei servir-te? [...] Esmagado pela pompa, ofuscado pelo luxo que o rodeava, sentiu-se o eremita confuso e perturbado. Dominou-se e disse com não pequenino embaraço, tentando um sorriso irônico: - A fama do vosso incomparável saber chegou até a gruta obscura em que sempre vivi. Deliberei abandonar o meu refugio e vim até aqui, desejoso de ouvir os vossos ensinamentos. Sinto-me, porém, constrangido. Como permanecer no meio de tanta riqueza? [...] – Estás profundamente equivocado, meu irmão – tornou o sábio, sem a menor ostentação e com a maior naturalidade. – Os trajes que cobrem o corpo não medem o valor do homem. A mim, na verdade, não me interessa saber se tens duas, três, vintes ou duzentas tangas. Que adianta ao homem vestir-se de sedas e ter a alma nua de virtudes e de predicados? [...] Deambulavam sossegados entre as árvores, por pequeno caminho de bom piso, quando os surpreendeu estranho ruído. [...] Todo o vetusto palácio do eloquente Sindagg era presa das chamas. Colunas de fumo, levadas pelo vento, subiam negras para o céu, e o fogo, na faina destruidora, estorcia suas espirais vermelhas, devorando, como um chacal faminto, a pomposa residência. [...]. Ao presenciar o desespero do discípulo, o venerável Sindagg acudiu-o solicito e procurou erguê-lo do chão. Segurou-o pelo braço e proferiu com desusada energia: - Domina-te, meu irmão, domina-te! [...] Não te preocupes com o desastre. Errado procede aquele que se aflige e sofre diante do irremediável. Recebe com serenidade os decretos inapeláveis do Destino. O palácio que ali vês, presa das chamas, é meu; todas as riquezas – tapetes, alfaias, moveis e joias – que nele se achavam, eram de minha exclusiva propriedade. E, como vês, estou absolutamente calmo e indiferente; a perda de bens materiais não chega sequer a perturbar, de leve, a serenidade de meu espírito! A tais palavras retorquiu, com exasperação e sinistra rudeza, o guru de Hirkka: - Que me importa a mim o vosso palácio? Não me interessam tampouco as vossas alfaias ridículas e os vossos inúteis tapetes [...] – A minha tanga! – deplorou, entre soluços, o Santo, em novo assomo de ira. – A minha tanga sobressalente! Esqueci-me de trazê-la, hoje, quando saí a passeio. Perdi a minha tanga no incêndio! E desatou em pranto, batendo sem cessar, com a cabeça no chão. [...]. Lenda contada do filósofo, escritor e educador indiano Jiddu Krishnamurti (1895-1986). Veja mais aqui.

A CASA DE PRAIA DAS SEXTAS-FEIRAS - [...] você e eu fizemos amor durante a noite, não é? Aí você adormeceu; a mim, porém, o amor tornou-me nervosa, ainda mais porque você gozou logo, e eu não. De forma que saí do quarto toda nua, como estava, e fui debruçar-me no parapeito da varanda, curvando-me para o mar que não se via, pois não havia lua. Enquanto estava olhando, pareceu-me haver não muito longe de mim, entre um e outro daqueles arbustos em vaso que estão na varanda, como que a sombra reta e imóvel de alguém. Mas não havia lua, a noite estava muito escura e não entendi direito se era a sombra de uma pessoa ou a de uma daquelas arvorezinhas. Fiquei muito amedrontada, pensei que podia ser um ladrão; mas um ladrão não fica parado daquele jeito, então, quem poderia ser? De repente a sombra se moveu, levantou o braço, e acabei levando nas costas, justamente onde tenho agora a mancha, alguma coisa como uma chicoteada, com toda força. Era ele que tinha vindo durante a noite, exatamente como um ladrão, e aquilo que eu tomara por uma chicotada era o golpe curto e duro de um açoite. Pois é, um açoite, já o tinha visto na casa dele, brincava a respeito, dizia que o comprara para mim e que um dia desses deixaria que eu o experimentasse. Senti uma dor terrível, fiquei ereta, disse para ele, com voz baixa e intensa: Ficou louco? O que está fazendo aqui? Endoidou de vez? Como resposta, ele voltou a levantar o braço para dar-me mais uma chicotada e, então fugi, pulando da varanda sobre as dunas lá embaixo, com um pouco de medo, mas também, devo confessar, um pouco de brincadeira. Comecei a fugir nuazinha como estava, no escuro, de uma duna para outra, e ele atrás, alcançando-me de vez em quando com o seu açoite, mas ao acaso e nunca com tanta força como a primeira vez, quando estava parada, apoiando-me na balaustrada e ele tivera tempo de mirar. Eu fugia, devia ser engraçado, nua daquele jeito e perseguida por aquele louco de açoite na mão. Então, de repente, caí na gargalhada e percebi que, na verdade, era só uma brincadeira, uma entre tantas que fazíamos e comecei a correr diretamente para o mar, gritando: “Pegue-me, se for capaz”. De forma que entrei na água, que estava uma delícia, morna como durante o dia e, por algum tempo, continuei fugindo também no mar. Aí ele me agarrou por trás, e caímos juntos dentro d’água e então fizemos amor e foi a vez que, talvez, tenhamos feito melhor e senti novamente que ele me amava. [...] É verdade, esbofeteara-me, mas aqueles eram tapas de amor. Esta noite, ao contrário, eram tapas de ódio. Logo percebi, não beijei a mão dele, como das outras vezes. Rechacei-o, cheguei até a arranhá-lo. [...] talvez as chicotadas da noite anterior tivessem sido chicotadas de ódio. Talvez a história entre eles já estivesse acabada sem eles perceberem, e, na sua exploração dos territórios proibidos do amor, tivessem passado apesar de si mesmo para os do ódio. [...]. Conto extraído da obra A casa de praia das sextas-feiras e outros contos (Bertrand Brasil, 1993), do escritor e jornalista italiano Alberto Moravia (1907-1990). Veja mais aqui.

O LIVRO SOBRE NADA - É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez. / Tudo que não invento é falso. / Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. / Tem mais presença em mim o que me falta. / Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário. / Sou muito preparado de conflitos. / Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou. / O meu amanhecer vai ser de noite. / Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção. / O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo. / Meu avesso é mais visível do que um poste. /Sábio é o que adivinha. / Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições. / A inércia é meu ato principal. / Não saio de dentro de mim nem pra pescar. / Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore. / Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma. / Peixe não tem honras nem horizontes. / Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia. / Eu queria ser lido pelas pedras. / As palavras me escondem sem cuidado. / Aonde eu não estou as palavras me acham. / Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas. / Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja. / A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos. / Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos. / Esta tarefa de cessar é que  puxa minhas frases para antes de mim. / Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus. / Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade. / O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito. / Por pudor sou impuro. / O branco me corrompe. / Não gosto de palavra acostumada. / A minha diferença é sempre menos. / Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria. / Não preciso do fim para chegar. / Do lugar onde estou já fui embora. Poema do poeta Manoel de Barros (1916-2014). Veja mais aqui e aqui.

DOROTHEA TANNING
A arte da pintora, escultora e escritora estadunidense Dorothea Tanning (1910-2012).

AGENDA
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A vida entre livros & leituras, Os ambulantes de Deus de Hermilo Borba Filho, a poesia de Fenelon Barreto, A urbanização brasileira de Milton Santos, A mulher de Gilberto Freyre, O amor hoje de Jurandir Freire Costa & A biblioteca de Roger Chartier aqui.