sexta-feira, julho 20, 2018

CERNUDA, BAUMAN, AHMED SEFRIOUI, SANTANA, ACKERMAN, DAVID GISTA & BIBLIOTECA


OS FANTASMAS DA BIBLIOTECA – Imagem: Him Again, do pintor francês David Gista. - Ao regressar para minha terra, resolvi fazer uma residência voluntária na Biblioteca Pública: unia, assim, o útil ao agradável. Sempre fui refém dos livros, desde menino. Ficava maravilhado com as estantes abarrotadas do meu pai e adorava, às escondidas, surrupiá-los, folheá-los, lê-los e descobrir narrativas, como as de Borges, Bachelard, Nejar, Eco, Canetti, Alberto Manguel, Carlos Dominguez, Bonnet, o mundo de Midlin, a autobiografia de Andrea Kerbaker, outros muitos. Nunca fui bibliômano, esses são os que compram livros e livros e não lêem nem deixam ninguém sequer abrí-los, servindo só para enfeite e vaidade. Curioso de gente que compra livros e os mantém intactos, ou abrindo-os com todo cuidado, um ritual de não deixar uma página sequer machucada nem com rugas a lombada. Sempre fui desajeitado, gosto de dobrá-los, riscá-los, relê-los, assíduo visitante de sebos, livrarias e bibliotecas. Reúno alguns poucos volumes em algumas estantes. Quando me convidam para uma visita, a primeira coisa que me chama atenção em qualquer lugar são os livros. Os curiosos que me chegam, perguntam logo: já leu isso tudo? Quem lê muito fica doido. Sou doido de nascença mesmo, advirto, e até os meus livros possuem um pacto entre eles de nunca me deixar achar aquilo que procuro, afora os que dão cria, de um só volume viram muitos exemplares, como o esfíngico Assim falou Teles Júnior. Também já dei de cara com maníacos outros, como o intelectual de sovaco: só os compra para acomodá-los às axilas e se passar por contumaz leitor, sem nunca ter lido além da capa e orelhas, quando muito, mais nada. Voltando ao papo da Biblioteca, pois bem: lá estava eu no habitat mais aprazível para mim, o paraíso. Ao cabo de alguns meses, como eu era o primeiro a chegar e o último a sair de lá, o diretor me confiou as chaves. Ao acordar por volta das cinco da manhã, eu ia pra lá. Chegando mais cedo que de hábito, ao abrir a porta tomei um susto: fui recepcionado pelo patrono. Como pode? Pode entrar, disse-me. Um carrancudo dramaturgo que matava todo mundo nas cenas, exceto o ponto porque fugia antes do final. Convidou-me e fui arrepiando dos pés à cabeça. Parecia haver uma reunião: vi de cara Ascenso que se aproximou e me puxou pelo braço falando das ladainhas do invisível que influenciam o sangue e o mau tempo, dizia: Todos os fantasmas moram no Rio Una. É de lá que eles saem todas as noites para os festejos daqui, do Clube Literário. Logo se aproximou o comediógrafo Lelé Correa que me chamava atenção com piadas que conjuravam desgraças, apontando para o Jayme Griz a recitar uma poesia com a participação de Eliseu Pereira que solfejava uma ópera, ao som do piano do Dery, regidos pelo maestro Zé da Justa. Ao lado, João Costa balbuciava frases sobre as trevas da noite e os seus mistérios, virando um copo de bebida, acompanhado de Abel e Raymundo que soltavam lorotas para Elita, Stella e Julia Leite. Sentado mais adiante estava Artur Griz obstinadamente fechado folheando sua enciclopédia, enquanto Calazans largava trovas para Amaro Matias. Dei por conta a chegada de Hermilo com uma estatueta cheia de escoriações, a me dizer que verei tudo que terei de ver, e me conduziu a um copioso repasto às maiores abluções, nas quais proclamavam ser aquela a verdadeira realidade, enquanto nós, os que se dizem vivos, todos vivíamos no embuste dos sentidos. Levou-me por um tapete bonina que mais parecia uma passarela para desfiles. Todos estavam ali, vi. Não os temia mais, até colaborava com as façanhas deles. A imaginação ditava as regras: contavam de um beiçudo caeté que vivia no fundo do sétimo mar que vez em quando aparecia para nos ensinar a vida; ou de um insurreto oculto na solidão do deserto, e dos personagens que saltavam dos livros para conversarem conosco. Cochichou-me Hermilo dos livros que encontrei escondidos entre uma estante e outra. Sim, isso ocorria com frequência, não sabia que era iniciativa deles, para me perturbar. Isso dissipava meus temores já achegado ao circulo habitual. Passei a entender o pacto dos livros em me tapiar: procurava ao máximo colocá-los nos lugares devidos e, no dia seguinte, deparava com prateleiras desorganizadas, assuntos misturados, tudo fora de ordem. Eram eles que faziam a confusão. Hermilo então me confidenciou sobre a assiduidade de determinados visitantes diários, também fantasmas enlouquecidos e ocultos em formas humanas: o que furtava livros todos os dias, sem saber a causa, disse-me: Ele fugiu de uma história e se perdeu. Por isso todo dia rouba um livro para voltar, mas a maldição não permite. Falou-me daquele mitômano que senta todo santo dia como entretido na leitura que não faz, passa a manhã todinha e no início da tarde sai na sua loucura de misturar ideias à realidade. Entre outros haviam os obcecados que chegavam ali para encontrar suas próprias doidices nas leituras de terror, ou crimes hediondos, psicopatologias e os mais diversos horrores da humanidade. Alguns apareciam na veneta, carregados de remorsos a espremer seus íntimos e soltar suas enfermidades em conversas longas e demoradas comigo, relatando coisas como se fossem de outras pessoas quando, na verdade, eram seus próprios desatinos. Todos eram fantasmas que vagavam pelos dias, esses os condenados à vida que, a exemplo de Bonnet, me apresentavam curiosidades estranhíssimas recolhidas de suas próprias vidas como se recolhidas das epopeias, como a da morte do compositor Charles Alkan, esmagado pelos livros da sua própria biblioteca; o poeta Gilbert Lély que só reunia cem volumes, ou aqueles que apareciam com cortes de vítimas de bordeline ou Síndrome de Lesch-Nyhan, utilizando-se das páginas de livros para autogolpes; aqueles que utilizaram de grossíssimos volumes para abater seus alvos humanos; aqueles que foram atacados pelos personagens revoltosos que emergiram das histórias lidas, ou os que misturaram suas vidas entre os relatos ficcionais, os que assumiram a personalidade de seus heróis históricos, os que enlouqueceram com o volume de informação de suas leituras, os que mergulharam nos cenários narrativos para nunca mais voltar, os que viraram verbetes de dicionários e enciclopédias, enfim, não sabia que vivos e mortos pagavam suas contas à revelia. Era adorável, pois, durante oito meses convivi antes e depois do horário de funcionamento com os fantasmas do Una, benfeitores que apenas gozavam da outra vida deles; era doloroso, durante o expediente, encontrar outros tantos disfarçados de gente que me exaltavam qualidades e virtudes que nunca tivera, teimando ambíguos em transitar entre a minha atenção e os logradouros, com pinoias e lamentações inaceitáveis, os menores que seu próprio tamanho. Oito meses inesquecíveis nos labirintos da biblioteca. E a minha história acabou. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do compositor e multi-instrumentista mexicano Carlos Santana: Concert Live, Shaman, Supernatural & Abraxas & muito mais nos mais de 2 milhões & 500 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui, aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] Os perigos dos quais se tem medo (e também os medos derivados que estimulam) podem ser de três tipos. Alguns ameaçam o corpo e as propriedades. Outros são de natureza mais geral, ameaçando a durabilidade da ordem social e a confiabilidade nela, da qual depende a segurança do sustento (renda, emprego) ou mesmo da sobrevivência, em caso de invalidez ou velhice. Depois, vêm os perigos que ameaçam o lugar da pessoa no mundo – a posição na hierarquia social, a identidade (de classe, de gênero, étnica, religiosa) e, de modo mais geral, a imunidade à degradação e à exclusão social. [...] E, como você deve ter adivinhado, não há como revogar totalmente as expulsões. A questão não é se, mas quem e quando. As pessoas não são eliminadas por serem más, mas porque faz parte da regra do jogo que alguém deve ser eliminado e porque outras pessoas se mostraram mais habilidosas na arte de se descartar de outras como elas; ou seja, eliminar outros jogadores do jogo que todos jogam, os que expulsam e também os que são expulsos. Não é que as pessoas sejam expelidas por terem sido identificadas como indignas de permanecerem. É exatamente o contrário: as pessoas são declaradas indignas de permanecerem porque há uma cota de eliminações que deve ser cumprida. [...] Trechos da obra Medo líquido (Zahar, 2008), do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). Veja mais aqui e aqui.

O AMOR[...] Ao contrário daquilo que filósofos, moralistas, teóricos, afins e psicólogos sempre afirmaram, o amor não é um escolha. É um imperativo biológico. E assim como a evolução favoreceu seres humanos capazes de fincar de pé, ela favoreceu os seres humanos que sentiam amor, porque o amor possui um grande valor de sobrevivência. Aqueles que sentiam amor asseguravam a sobrevivência de sua prole, essa prole herdou a capacidade de amar e viveu mais tempo e teve mais filhos seus. Com o decorrer do tempo, a tendência ao amor tornou-se parte de nossos dotes genéticos, por fim tornou-se mais profundamente inata do que uma simples tendência, aptidão ou legado, e sua riqueza passou a subsidiar todas as iniciativas de nossa vida. Os seres humanos tornaram-se capitalistas aventureiros emocionais. [...] Quando amamos com todo nosso coração, com toda nossa alma, com toda nossa vontade, trata-se de uma paixão elétrica. O amor desenvolve-se nos neurônios do cérebro, e sua maneira de crescer depende de como esses neurônios foram treinados quando éramos crianças. [...] Nossa maneira de amar é uma questão de experiência. [...]. Trechos extraídos da obra Uma história natural do amor (Bertrand Brasil, 1997), da escritora e naturalista estadunidense Diane Ackerman. Veja mais aqui e aqui.

A PORTA ILUMINADA – [...] Aqui não se deve morrer. [...] No rês-do-chão habita um sujeito chamado El Alami; homem de cinquenta anos, sempre de mau humor que aterroriza sua jovem mulher, ameaçando-a todos os dias de repúdio. Mas eu amo esta pobre Aicha que se ouve chorar com soluços de criança e fungos de menina ranhenta. Eu a amo porque ela é sempre limpa e canta com gorjeios de andorinha: Amor! Amor! / Abriste meu coração / para aí te alojares. / Nem médico nem fqih / podem nada contra ti. Minha não compartilha da minha simpatia para com a jovem. [...] Aicha! Sonho para ti uma existência melhor, saturada de perfumes e flores, acalentada de cantos de pássaros. Com gorjeios de andorinha cantarás todo o dia atrás das árvores do jardim [...] Aicha reina neste palácio e canta sobre as romanzeiras em flor [...] Esta canção me vem aos lábios; não compreendo o seu sentido, mas há necessidade de que uma canção tenha sentido? [...] Aicha, não chores mais com teu soluço de criança, teus fungos de menina nervosa. Os escravos preparam caçoilas de perfume; estendem tapetes da Pérsia para receber-nos. Vem, vem, para nós nenhuma porta ousará permanecer fechada. Todos os dias, através dos maciços jasmins, cantaremos com gorjeios de andorinha [...]. Trecho de conto do escritor marroquino Ahmed Sefrioui (1915-2004).

SE O HOMEM PUDESSE DIZER - Se o homem pudesse dizer o que ama, / Se o homem pudesse levantar seu amor pelo céu / Como uma nuvem na luz; / Se como muros que se derrubam, / Para saudar a verdade erguida no meio, / Pudesse derrubar seu corpo, deixando só a verdade de seu amor, / A verdade de si mesmo, / Que não se chama glória, fortuna ou ambição, / Mas amor ou desejo, / Eu seria aquele que imaginava; / Aquele que com sua língua, seus olhos e suas mãos / Proclama ante os homens a verdade ignorada, / A verdade de seu amor verdadeiro. / Liberdade não conheço senão a liberdade de estar preso em alguém / Cujo nome não posso ouvir sem arrepio; / Alguém por quem me esqueço desta existência mesquinha, / Por quem o dia e a noite são para mim o que quiser. / E meu corpo e espírito flutuam em seu corpo e espírito / Como troncos perdidos que o mar afoga ou levanta / Livremente, com a liberdade do amor, / A única liberdade que me exalta, / A única liberdade por que morro. / Tu justificas minha existência: / Se não te conhecer, não vivi; / Se morrer sem te conhecer, não morro, porque não vivi. Poema do poeta e critico literário espanhol Luis Cernuda (1902-1963). Veja mais aqui e aqui.

FANTASMAS NA BIBLIOTECA
[...] os livros eram onipresentes e formavam verdadeiras florestas com alamedas, avenidas, bosques, caminhos, nos quais se tropeçava nas pilhas e nos montes que transbordavam das prateleiras, abarrotavam as mesas, os móveis, os assoalhos... [...] Curiosamente, a fonte infinita de informações que constitui a internet não tem para mim o mesmo estatuto mágico que a minha biblioteca. Estou diante de meu computador, graças ao qual posso chegar a todas as informações imagináveis, ainda mais mestre do tempo e do espaço, e, no entanto, falta aí o "divino". Talvez se trate de uma questão corporal: faço isso com a ponta dos dedos, e tudo permanece exterior, passando por uma máquina e uma tela. Nada a ver com minhas paredes atapetadas de livros que eu conheço — quase — de cor. De um lado, tenho a impressão de estar no comando de um braço articulado capaz de todas as performances no vazio sideral exterior, de outro, num útero cujas paredes são atapetadas de prateleiras cujo arquétipo romanesco poderia ser o Nautilus. Como se vê, a questão não é apenas de racionalidade. [...].
Trechos extraídos da obra Fantasmas na biblioteca (Civilização Brasileira, 2013), do escritor francês Jacques Bonnet. Veja mais aqui e aqui.

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A arte do pintor francês David Gista.
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Semafil Livros nas faculdades Estácio de Carapicuíba e Anhanguera de São Paulo. Organização do Silvinha Historiador, em São Paulo. Fone: 11 98499-2985.