domingo, abril 24, 2022

NANCY FRASER, PÉTER ESTERHÁZY, LUCE IRIGARAY & ANA LUCIA GOULART FARIA

 

 

TRÍPTICO DQP: Alma de caminheiro... – Imagem: AcervoLAM, ao som do álbum Les couleurs de la nuit (Believe Music, 2013), do compositor madagascarense François Bayle. - Sou filho do tempo e busco a tarefa perfeita no horror do deserto Kali Yuga desta Babel, como se vivesse a Idade do Ruído na Filosofia Perene do Huxley. Aqui e acolá contrafações de cassandristas com suas gravatas de calembures coloridos pelo duplipensar, seguidos por seus cheleleus de bricabraques na alma, e a enquadrar descontentes embrutecidos pela desatenção, como se ali reunidos esperassem não se sabe exatamente o quê, talvez um salvador da pátria com os milagres da remissão para seus sofrimentos milenares. Ali ninguém via a menina amamentando seu bebê diante do Manneken Pis de Bruxelas, nem a mulher nua que fugiu louca do desamor esponsal, muito menos os apressados chutando pombos e pássaros gorjeadores atrapalhando suas passagens, sequer o suicida mergulhador de escafandro que deitou no rio para nunca mais. Na esquina de muitas encruzilhadas topei a filósofa estadunidense Nancy Fraser que me alertou: Apenas olhando para abordagens integrativas que unem redistribuição e reconhecimento, nós podemos alcançar as exigências da justiça para todos. Precisava saber disso e já, porque caminhante e estrada, uma coisa só. Sem pressa ou sem a contínua condução postergatória - o destino nos ventos sacudiam a vela do barco. Remo ao sopro dos temporais, navegador insone.

 


Ignotum per ignotius... - A cada momento tropeço nas surpresas e, com elas, intuo na caminhada o que se esconde no cotidiano: a vida vaza das molduras da existência. Não fosse isso eu não me surpreenderia com os olhos vivos suspensos e próximos ao portão de um terreno baldio: neles havia algo de familiar. Outro passo e identifico a face deformada – uma cabeça exposta por troféu sobre um corpo esquartejado de mulher. O susto e o que seria aquela monstruosidade: o chão sumiu sob meus pés e despenquei pelos temores mais abissais, fuga de culpa não revelada. Nem percebi envolvido por uma nuvem densa do não-saber, do desconhecido - The Cloud of Unknowing. Foi ao atravessá-la que dei de cara com o escritor húngaro Péter Esterházy (1950-2016) que parecia mais esperar pela aterrissagem da minha queda: Quem vive não pode se esconder. Devagar, tudo acontece conosco. O tempo mesquinho se contrai... O escritor deve ser político mesmo quando não pode falar de política... Aturdido com aquilo tudo, nada entendia. E me fez segui-lo como quem solidário ignorasse a minha aflição. Quase não lhe ouvia mais, nem entendia envolto pelas algaravias que ecoavam dentro do meu crânio. Mais adiante estava Luiz Felipe Pondé que mais parecia revelar minha confusão: A paranoia é a consciência aguda da fragilidade da vida... Nada é mais temido por um covarde do que a liberdade de pensamento... Não consigo escrever ou pensar em uma linha se não sai assim como um grito. E conversavam ambos com o meu alheamento. Mais virasse as vistas para todos os lados e confabulavam animada e continuamente, até se distanciarem para que me deixassem fazer do veneno repugnante das horas algum remédio para me desintoxicar daquilo tudo. Precisava me salvar, não havia outro jeito. O que sei é que nenhum sonho fenece, ando devagar; e nem de longe, até onde a vista alcança, já sei: o que perece germina noutro lugar.

 


Sustine et abstine... - Longe fui acho e quantas não me vi braços ávidos pelo voo num sonho de uma mulher jamais encontrada, sem saber que o que fizera durante toda minha vida foi buscar entre esfíngicas e aureoladas aquela que mais desejasse. Não me perdi de todo, havia sempre uma mão como se fosse dela para me alentar com aquela do filósofo francês Raymond Aron (1905-1983): A civilização do prazer autocentrado se condena à morte quando perde o interesse pelo futuro. E tudo passava como se fosse sempre amanhã e jamais desse conta. Foi preciso que ela me aparecesse como a filósofa belga Luce Irigaray: O desejo foi relegado pela cultura ocidental à carne, negando-lhe uma dimensão espiritual... É necessário cultivar o desejo; o desejo nasce da diferença. Implica um entrelaçamento de corpo e palavra. E quase não mais dissesse do que passou porque nada mais valia, e me aguardasse como se o Sol jamais opusesse o que fosse de sombra pra sesta ou de trevas antes das descobertas. Eu só sabia o ter ido e o que fosse sem que o ter sido representasse nada mais que uma lembrança esquecida. Eu podia viver, afinal, era só o que me restava. Até mais ver.

 

Lembro também de insistir numa educação da escuta, das relações e da diferença sabendo que a situação mais desafiadora do/a docente de crianças pequenas, que não dá aula, mas organiza o espaço, o tempo e os materiais para as crianças produzirem as culturas infantis, é justamente a de deixar as crianças experimentarem, inventarem e constatarem a origem da desigualdade, sem julgar e sem hierarquizar as diferenças.

Trecho extraído do Balanço analítico da educação infantil: questões curriculares e direitos em risco (38ª Reunião Nacional ANPEd, 2017), da professora e pedagoga Ana Lucia Goulart Faria. Veja mais aqui, aqui e aqui.