quinta-feira, novembro 29, 2018

ARTUR AZEVEDO, ELKE KRYSTUFEK, HEITOR PEREIRA, CINEMA SUPER8 & MEMÓRIA DO BISACO


MEMÓRIA DO BISACO - Imagem: arte da artista conceitual austríaca Elke Krystufek - Um dia escrevi um poema na carne sangue alto exaltado e meus ossos doídos sequer pacificaram minhas trevas no peso da sorte. Nenhum lugar para que possa me encontrar nos versos conjugados e aleatórios pulsantes, a perder-me a mim mesmo por cartas que nem escrevi na profusão de touceiras descobertas do vazio em que fui gerado no meio do sonho, escapando das formas penduradas no invisível e eu sequer dava conta dos maus bocados batendo na porta. Quase exaurido pelo desespero antecipado e tão desprevenido do mar porque todo rio desce comigo a escorregar pela escadaria nas margens sumidas e às minhas próprias custas desentendido, a poesia arremessada como se fora pedra catada no fundo do quintal. Pouco importa se são duas horas da tarde ou se a comemoração foi cancelada e o milagre inexistisse para quem parte ou quem chegou. Agora é tarde e não bastassem tantos disfarces da dor e maldissesse de nada se Inez é morta. Há mais de meio século de dentro pra fora e de fora pra dentro, quase tudo mudou. Coisas que sumiram como por encanto na noite de muitos olhos acesos, só eu que persigo as mesmas coisas, sem que me advirta do tempo perdido e suplico às estrelas o dia radiante e a palavra me socorre para que eu não padeça inconcluso. Faz tempo que estou aqui, desde menino inventando de tudo alegria de ontem pra hoje na foto guardada, quase nem lembro nada, as histórias de trancoso, o que deu na esquina, revoltas na rodagem e carestia na feira, como se a memória poeira virasse e o esquecimento a lei coatora. Os retratos caíram da parede e já não ouço direito com tanto barulho nas ruas, se festa ou funeral, os pecados do corpo pelos beirais da morte, quem se apieda de tantos tormentos, como se minha mudez fosse profana demais. Pudesse fazia coisas e outras para que tudo fosse passado a limpo com prova dos nove fora e nada dar água abaixo, ou gorando e prescrito, ilícito revogado como desvalido de agora desdontem, desdantes; Poraqui tudo é muito triste e parece que anda para trás com todas as raivas antigas que não dizem respeito de mim mas de todos que sou arrebatado aos sapatos e sandálias velhas jogadas ao lixo da guerra diária, sem repouso nem intervalo. Como tudo é tolice neste país alquebrado, anômalo, desajeitado pelos transtornos políticos e patológicas roubalheiras de cara lisa, coisa mais sem graça. Quisera não saber nada, não tomar ciência de nada, doi demais o sofrimento alheio, do sangreiro de muitos que nem sabem que são meus, da injustiça para tantos que sofrem manobras nos recantos distantes e a mim só me resta convocar do amor no coração incansável pelos mistérios da vida. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e imediatamente mandou chamar o diretor-geral da Secretaria. Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de Sua Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão. — Estou furioso! — exclamou o conselheiro; — por sua causa passei por uma vergonha diante de Sua Majestade o Imperador — Por minha causa? — perguntou o diretor—geral, abrindo muito os olhos e batendo nos peitos. — 0 senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado! — Que me está dizendo, Excelentíssimo?… E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores, quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida: — É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi… — É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de ser submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o seu oficial-de-gabinete! E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu: — Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos augustos lábios de Sua Majestade, que dei a minha demissão!… — 0h!… — Sua Majestade não o aceitou… — Naturalmente; fez Sua Majestade muito bem. — Não a aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado. — Peço mil perdões a Vossa Excelência — protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela palavra demissão. — 0 acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa Excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta natureza. O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo: — Bom! Mande reformar essa porcaria! 0 diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3a seção, que o encontrou fulo de cólera. — Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Ministro! — Por minha causa? — 0 senhor mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado! E atirou-lhe o papel, que caiu no chão. O chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou: — Queira Vossa Senhoria desculpar-me, Sr. Diretor… são coisas que acontecem… havia tanto serviço… e todo tão urgente!… — 0 Sr. Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si! — Não era caso para tanto. — Não era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que me mandou isto na pasta! — Eu… Vossa Senhoria… — Não o suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento. — Eu… Vossa Senhoria. — Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se, e mande reformar essa porcaria! O chefe da 3ª seção retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto: — Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do sr. diretor-geral! — Por minha causa? — 0 senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado! E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense. — Eu devia propor a sua suspensão por 15 dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo, na forma do regulamento! 0 que eu teria ouvido, se o sr. diretor-geral me não tratasse com tanto respeito e consideração! — 0 expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi… — Ainda o confessa! — Fiei-me em que o sr. chefe passasse os olhos… — Cale-se!… Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!… — Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta… — Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!… O amanuense obedeceu. Acabado o serviço, tocou a campainha. Apareceu um contínuo. — Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção! — Por minha causa? — Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado! — Foi porque… — Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se! — Mas… — Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você!… O contínuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da Secretaria. — Estou furioso! Por sua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas! — Por minha causa? — Sim. Quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste tanto? — Porque… — Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? — Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro estás no olho da rua. Serventes não faltam!… O preto não redargüiu. O pobre diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois do jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão. O mísero animal, que vinha, alegre, dar-lhe as boas-vindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe humildemente os pés. O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da seção, pelo diretor-geral e pelo ministro!…
Conto De cima para baixo (Cultrix, 1969), do dramaturgo, escritor e jornalista Artur Azevedo (1855-1908). Veja mais aqui e aqui.

A ARTE DE ELKE KRYSTUFEK
A arte da artista conceitual austríaca Elke Krystufek

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