quarta-feira, novembro 28, 2018

OSMAN LINS, MARY JANE LAMOND, NICK ALM, ALICE VINAGRE & ZÉ PIGMALIÃO


A PAIXÃO DO ARTESÃO – Imagem: Art by Nick Alm - Zé Pigmalião não tinha pai nem mãe. Sozinho no mundo, parente nenhum. Filiação ignorada, dizia a todos que brotou da Terra assim do nada, criado entre as flores dos jardins. Passava as quatro festas do ano olhando pras estrelas, cuidando dos pomares e desejando as mulheres graciosas que zanzavam impunes pelas calçadas e ruas. Aguçava o dente com seus olhos apertados de paixão pra elas, nada podia fazer, era só desdém. Quando via uma: é ela! E não sabia nem quem era a perseguir o movimento de cada passo, para se certificar: perfeita, seios, cintura, boca, olhos, semblante, tudo. É essa que eu quero. Imaginava a nudez e se espantava. Não dava, findava às arrancadas, em disparada: Pega o tarado! Quarentão, donzelo, artesão e jardineiro, quase passado no tempo. Nenhuma mulher o quis a vida toda, nem falar namoro o cara sabia, todas as investidas foram malogradas. Não adiantava ajeitar o boné, o surrado macacão, amolegando a peia pra cima ou pra baixo, de alpercatas ou galocha, com outras tantas manias de olho clínico, um termômetro embaixo do sovaco para conferir o tanto de febril que vivia, afora de fazer gargarejos de hora em hora pro bafo não espantar formosa que lhe aparecesse. Não fazia cara feia, nem botava gosto ruim, fazia-se simpático celibatário de morrer na punheta com a primeira que passasse. Onde chegasse: Pronto, apareceu o tabacudo. Aí, um dia, deu de cara com uma grande pedra de gesso abandonada num canto qualquer. Teve uma ideia e trabalhou nela noitedia. Ao final, a imagem de uma santa – que era só santa porque nome não tinha, feita por artes dele mesmo, toda nua em tamanho natural. Caprichou em cada detalhe: olhos fechados, bela, lábios salientes entreabertos, seios fartos, ventre profundo com orifícios apropriados e confortáveis, ancas bem delineadas, coxas e pernas torneadas e abertas, perfeita, só faltava falar. Admirava de passar horas de queixo caído. Deu, então, de cerzir suas vestes, todos os paramentos: o capuz, o limpel pro pescoço, todo hábito do coro. Pronto, diante dela se ajoelhava e se punha a rezar o dia todo, deitando-a de noite, com todo jeito na cama e com ela sonhar tudo o que queria. Queria casar com ela, mas quem aprovaria. Um escândalo: Como é que pode? Só intrigas e falações. Matutou por dias e findou presenteando ao pároco e lá, aos pés dela, rezava todo santo dia e o dia todo. Por sua assiduidade ali, passou a ser coroinha. Feliz seria para sempre não fosse a sua agonia: expulso por libidinagem com a santa - era ela quem desafogava as horas de aperto e precisão dele. Um vitupério, o fim da picada. Mudando de cão para gato, podia ter sido mil e duzentas, como mil cento e noventa e nove que não contei quantas vezes ele chegava perto de um: Você viu ela? Sai pra lá quejudo. Ninguém queria mais conversa com ele: Isso é um amaldiçoado! Eis que o clone PB-010 – aquele que só dava dor de cabeça ao Padre Bidião e agora apelidado de Estrupício, entra em cena. Qual o seu problema? Ele nem soube contar direito e sofreu extorsão de todo jeito. Ardiloso, aprontou pra cima dele, apresentando uma certa dama por nome de Dulcinéa Galatéa del Toboso. Pronto, Quixote, se aprume aí. Hem? Ele olhou, conferiu por baixo da saia, embaixo da blusa, de todo lado, dava pro gasto, uma meretriz aprumada, ajeitada pelo clone malfeitor. Mas não é a minha santa! Faz de conta, bestão. É pegar ou largar! Pois bem, botou dentro de casa e não sabia o que fazer, nem ela facilitava, só aboletada no divã, pedindo as coisas e exigindo mais. Até que era bonita pra ele, mas do jeito que ela ficava não dava pra bater sequer uma bronha. Assim não dava e devolveu-la ao chantagista. Trancou-se no quarto e passou dias meditando. Semanas depois estourou no noticiário: roubaram a santa sem nome da igreja. E ele: E foi? Que coisa! © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] À minha frente, Zilda, com um vestido que procura dissimular o volume do ventre, pousou as mãos no regaço e olha a paisagem. “Nunca cheguei a imaginá-la com um vestido desse – dizia-lhe há pouco. Só pensava em você trepando em árvores, jogando bola, atirando de baladeira e coisas assim. Talvez foi por isso que tive ciúme, quando soube que ia casar-se”. [...] Não é isso – expliquei. É que possuímos tantas lembranças comuns! Além do mais, o fato de me haver separado de você e, durante tantos anos, não ter notícias suas, conservou-a imutável. Era como nos contos: um Reino Encantado. A notícia rompeu o encanto, foi isto. Você não era mais aquela menina de quem eu me lembrava. [...] Por um inexplicável pudor, abstive-me de revelar que, até então, contara com a possibilidade de reencontrá-la solteira, ideia essa mesclada com uma infinidade de anseios. (E que, deste modo, o sentido que ela atribuíra à palavra ciúme, não era de todo modo inexato). Mas não contive o desejo de confessar que durante certo período da infância, meu primeiro pensamento era dedicado a ela e que as noites, eu só as suportava por ter certeza de que o dia seguinte nos reuniria outra vez. [...] Sua voz cantante, um pouco áspera e mesmo assim agradável, tornou-se pausada; o riso é menos vibrante; e os olhos, embora conservando o brilho antigo, já não possuem a mesma vida: de alegres que eram, têm agora um quê de melancólica serenidade. [...] Frágil e alto muro dividia nossos quintais. Mas não era tão alto nem frágil que que nos impedisse de escalá-lo e aí ficarmos empoleirados: eu sonhando, contando histórias, declamando versos, inventando projetos; ela escutando, tornando meus planos mais ousados, minhas histórias mais excitantes, erguendo-se, sentando-se, levantando-se outra vez e seguindo ao longo do muro, com uma segurança que ainda hoje me espanta. [...] Uma barreira pedregosa ergue-se aos lados do trem. Arestas lívidas se sucedem. Súbito, o panorama se abre. Descortinamos uma pastagem ampla, que se estende até o cume de um monte, ultrapassa-o. [...] Somos, não resta dúvida, temperamentos díspares. Está visto que essas evocações não têm igual valor para nós. Ela tem uma visão imparcial do que lhe sucede na vida. Sua memória, demasiado fiel, não transmuda nem escolhe. E se esqueceu alguma coisa, não é por nenhum motivo. Esqueceu-a, apenas. [...]. O tesouro que eu supunha comum, é unicamente meu – verifico. Apesar de havermos vivido durante muito tempo as mesmas aventuras, cada um recolheu o que elas continham de si próprio. Evocá-las, jamais repetirá o milagre de fazer com que sejam um elo entre nós – se é que mesmo naquele tempo estivemos unidos algum dia. [...] Olho para fora. A linha férrea margina agora a estrada de rodagem. A máquina desprende vapor, ruidosamente, atirando para trás uma poalha líquida, iluminada pelo sol. Através da iridescente neblina, num cabriolé de rodas vermelhas, segue uma jovem de azul. O cavalinho baio tem uma papoula na testa. A moça sorrindo, leva uma rosa na mão e acena para o trem com a sua flor. Respondo ao seu adeus.
Trechos extraídos do conto Reencontro (Melhores contos de Osman Lins - Global, 2003), do escritor e dramaturgo Osman Lins (1924-1978). Veja mais aqui.

A ARTE DE NICK ALM
A arte de Nick Alm

AGENDA:
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