terça-feira, junho 20, 2017

A BARBÁRIE INTERIOR DE MATTÉI, CARTA DE MULHER DE MARCELINE, AÇÃO DIRETA DE VOLTAIRINE, OUROBA, VÊNUS KALLIPYGOS & BOLSA DA VERA

A BOLSA DA VERA BANDOLEIRA – Naquela manhã Vera amanhecera com cara de poucos amigos. Muitas contribuíram pro seu mal-estar, deixando-a com um humor pra lá de ácido. Uma das contribuições viera da prima que havia menstruado desde sábado e estava aos urros com as cólicas, atrapalhando seu final de semana e deixando as circunstâncias mais enganchadas do que já estavam. Adiou passeios, dispensou pretendentes, perdeu a paciência e ficou brigando com o sono os dois dias incarreados. Mesmo assim, apesar de aborrecida e indisposta, não desistira dos rituais matinais do dia, dedicado à deusa da Lua Nova, Cerridween. Depois dessa missão cumprida, foi até a cozinha e conferiu os mantimentos faltantes para comprá-los, tomou um demorado banho e vestiu-se tal qual a devotada, não antes perguntar se a prima precisava de alguma coisa, recebendo dela apenas grunhidos de fúria. Resmungou e saiu para o supermercado. Lá chegando, foi passando pelas gôndolas e apanhando o necessitado, quando o celular tocou e ela teve de revirar a bolsa pra achá-lo: era uma consultora de telemarketing e ela dispensou logo sob a alegação de que tinha mais o que fazer, enquanto pegava um ou outro produto nas prateleiras, até irritar-se e sacudir o celular de volta na bolsa. Deu umas voltas meio perdidas, procurou a lista e não encontrou, passando a vista rapidamente na conferencia do que havia pegado, confirmou e foi pro caixa. Lá chegando, o celular novamente toca e ela se afoba ao vasculhá-lo no interior da bolsa, dando pela aproximação de um homenzarrão que ficara plantado ao seu lado no guichê. Intrigada, virou-se pro sujeito com menosprezo: Diga! Alguma coisa? Sim, a senhora poderia depor aqui os pertences da sua bolsa? Minha bolsa? Sim, as nossas câmaras flagraram a senhora embolsando produtos. Eu? Sim, senhora, por favor. Por conta disso, foi juntando gente ao seu redor, amontoando os curiosos que queriam ver detalhes daquela desfeita. Ela não teve dúvidas, pegou a dita, virou e deixou cair tudinho sobre o local exigido. De cara viu-se logo a fuga de um morcego que saiu voando, dois lacraus às carreiras, uma dúzia de baratas que espalharam por todo canto, uma lagartixa prenha, dois sapinhos que saíram pulando, afora um tanto de coisas inusitadas entre outras muitas e desarrumadas: cachecol, pulôver, passaporte, esc0va de todo tipo, rímel, brincos, absorventes, cola instantânea, sutiãs e bustiês, calcinhas, preservativos comestíveis, lenços umedecidos, canetas, estojos de maquiagens, chocolate derretido, confeitos meleguentos, chaves, meias e meias, celular que não achava – eita, até que enfim! -, Maria-chiquinha, bobes, chuquinhas, hidratante, gel para estrias e celulites, cremes depilatórios, pulseiras, anéis, pinças, espelhos, pó compacto, delineadores e lápis, sementes, rolimãs, imã, lupa, óculos e óculos, cintas, rolos amassados de papel higiênico, guardanapos soltos, saída de banho, babydoll, sabonetes, cachetes, primeiros socorros, relógios, chinelas, sandálias, blusinhas, luvas, máscara cirúrgica, gorro, gesso, chiclete mascado, garrafinha de água, folderes, revistas com páginas arrancadas, cupons, vale-transporte, vale-refeição, simpatias, novenas, receitas, uma pistola 6-35 carregada, um punhal, duas adagas, spray de pimenta, três vibradores, um pênis de borracha, bolas tailandesas, argolas, chicote, mordaça, algemas, pacote de vela, isqueiro e duas caixas de fósforos vazias, leite condensado, chantili, ky, descongestionadores, alicates, chave de fenda, lixas, esmaltes, cílios postiços, cinta liga, calcinha com bunda, uma máquina fotográfica, um gravador, calendários com santo, uma anágua, uma mão de pilão, uma figa, um elefantinho de márnore, um porquinho da índia de barro, um Buda, um dente de alho, trena, esfigmomanômetro, estetoscópio, voltímetro, parquímetro, balança, fita métrica, carretilha, uma catraca de bicicleta, soldador, dobradiças, uma maçaneta, uma tampa de radiador, um engate, tampas, duas capsulanas, esponjas de lã de aço, buchas, óleo de peroba, flanelas, pires, duas lâmpadas rachadas, uma mola, uma fita cassete, um véu, copos descartáveis, prendedores, grampeador, ruelas, um vaso de sete ervas, duas tesouras, borrachas, bisnagas, clips, cordões e uma corda, moedas soltas, um mealheiro, gel, colares, diademas e tiaras, desodorante, limão, tinta de cabelo, pincéis, perfumes, cotonetes, ralo de pé, barbeador, palitos de todo tipo, acetona, pó secante, licor de manteiga de cacau, terço e rosário, protetor lingual e solar, tricô, tapa-olho, um travesseirinho, unhas postiças, lentes de contato, apliques, adesivos, pedra de strass, uma bíblia, uma goiabada mordida e passada, uma lata de sardinha enferrujada, um pacote de queijo ralado, fitas isolantes descoladas, canivete, bússula, querosene, estilete, lata de solvente, mertiolate, mercúrio-cromo, rolhas, pregos, alfinetes, pilhas, cacos de telha, papel carbono, pule de bicho, cartelas de loteria, tíquetes, dedal, retrós, cortador de unha, talheres enrolados em guardanapos, adoçante vazio, cantil, copinho de aguardente, bola de sinuca, um estojo de taco, uma sombrinha, capa de chuva, um caixotinho, canivete suíço, lanterna, amolador, pedra-pomes, crochê, naftalina, seixos, conchas, bijouterias, repelente, pastilhas, lança-perfume, confete, serpentinas, pé-de-coelho, pé-de-cabra, ferradura, uma extensão danificada, trevos e trevos, pimentas, cápsulas, olho de boi, saquinhos de chá, café, sal grosso, galhos de arruda, santinhos, enfim, um frasco com piolho de cobra, carrapato, ácaro, percevejo e outras trepeças, afora outros troços irreconhecíveis e inomináveis. Todos: Òóóóóóó! O cara conferiu e pela aparência das coisas, estavam ali há séculos senão milênios de tão velhos. Ela: Pronto, meu senhor, quer que eu tire a roupa? Ah! Aí o coro dos presentes: tira! Tira! Tira! Ela aí desceu dos dois palmos de saltos e como já era varapau tipuda, foi logo desabotoando a calça e arriando o zíper de ver-se a calcinha azul do capô do fusca, quando ele impediu: não, basta! Ela encarou bem nos olhos do sujeito: É só isso, meu senhor? Ou tem mais alguma coisa? Sim, senhora, como é que cabe tudo isso aí dentro, hem? Ah, faça-me o favor! E num golpe só tudo dentro da bolsa - menos os bichos fugitivos que ficaram empestando a redondeza -, pegando os outros sacos de compra. Aí o vigilante aproximou-se: quer ajuda, senhora? Depois desse constrangimento, ajudaria muito você tomar no cu, seu filho da puta! E foi-se. © Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.

A BARBÁRIE INTERIOR DE MATTÉI
[...] É possível distinguir facilmente o que eu chamaria de efeitos de barbárie dos efeitos de civilização. O efeito de barbárie caracteriza toda forma de esterilidade humana e de perda do sentido no domínio da civilização, quer se trate de ética, de política, de educação ou de cultura. Para que exista barbárie é necessário que tenha existido uma civilização anterior à bárbara, como Alarico e seus visigodos quando do saque de Roma, essa que irá derrotar, pilhar e destruir. O selvagem que vive nas florestas e que ainda não foi impregnado de cultura não era considerado pelos romanos como um bárbaro. [...] Como acreditar que a política hoje tenha um sentido, e um sentido comum a todos os homens, quando se assistiu à barbárie em massa revestida de traços de uma razão social ou racial matar parte da humanidade [...] Os totalitarismos modernos, contando com a barbárie interior de um sujeito fixado à sua raça ou à sua classe, isto é, às suas determinações materiais mais grosseiras, tentaram dissolver toda forma de comunidade política com o intuito de fazer reinar o terror. À barbárie violenta desses regimes respondeu a doce barbárie das democracias, que Tocqueville já denunciara ao mostrar que a sociedade moderna ameaçava encerrar o indivíduo, atomizado na massa solitária, “na solidão de seu coração”.  Compreendemos por que Blandine Kriegel, em sua Filosofia da República, sustentou que “a filosofia do Sujeito é a filosofia dos Bárbaros”, uma vez que tende a reduzir o cidadão a um sujeito formal desprovido de substância e definido unicamente, no nosso universo administrativo e jurídico, por um conjunto de técnicas processuais cuja humanidade está ausente. O filósofo, seja ou não ele o médico da civilização, não tem competência para impor aos outros homens os remédios que permitiriam tratar, na falta de curar, o mal. Mas ele pode ao menos lembrar que a civilização como a recebemos dos gregos e dos romanos (e que a Europa, depois o mundo, fizeram frutificar em vinte e cinco séculos através da ciência, da arte, da filosofia e da política) sempre foi pensada como uma abertura em direção a uma alteridade absoluta. Ela proíbe o homem de reduzir as obras de cultura a seu “gueto íntimo”, como diria Lipovetsky, a um simples objeto de gozo interior. O homem encontra seu ponto de apoio – Descartes já o havia estabelecido em suas meditações – no exterior de si mesmo, quer se nomeie essa abertura libertadora obra, mundo ou Deus. O homem não é, e nunca será, seu próprio ponto de apoio, nem, a fortiori, sua própria alavanca. Mas sempre pode acontecer que, diante de um ser ou de uma obra que irrompe nele e o deslumbra, compreenda que é livre para dar um sentido e que, suspendendo o tempo dos ciclos biológicos e sociais, é um ser apto a começar e criar uma nova obra.
Trechos do artigo Civilização e barbárie, extraído da obra Ética e estética (Zahar, 2001), do filósofo francês Jean-François Mattei (1941-2014), autor da obra A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno (UNESP, 2002), abordando o conceito barbárie, desde a antiguidade clássica até a modernidade, demonstrando que ela se manifesta no mundo contemporâneo, na decadência da educação, na ditadura da cultura de massa e na ascensão dos regimes autoritários, defendendo que: [...] Vivemos em um mundo segmentado, estilhaçado, que interiorizou a barbárie. [...] Na educação moderna, o estudante é apenas objeto de um discurso administrativo [...].

Veja mais sobre:
Aprendendo no compasso da vida, Introdução á psicologia social de Arthur Ramos, Sharon & minha sogra de Suad Amiry, o pensamento de Roger Bacon, a pintura de Georges Ribemont-Dessaignes, a música de Nação Zumbi, Transhumance, a arte de Hans Richter & Jiddu Saldanha aqui.

E mais:
As situações de Vera aqui e aqui.
Infância, imagem & literatura, As ilusões da pós-modernidade de Terry Eagleton, Caderno de memórias de Osamu Dazai, O bumba-meu-boi de Hermilo Borba Filho, a música de Jacques Offenbach, o cinema de Jean-Paul Rappeneau & Isabelle Adjani, a arte de a arte de Silvia Pontual, a pintura de Léon Bonnat & Kim Roberti aqui.
O teste da goma & A arte de amar de Erich Fromm aqui.
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Vamos aprumar a conversa: psicologia infantil, Obras escolhidas de Walter Benjamin, Felicidade clandestina de Clarice Lispector, Folhas da relva de Walt Whitman, A cantora careca de Eugène Ionesco, a literatura de Nathaniel Hawthorne, o cinema de Joan Plowright & Demi Moore, a música do Enya, a pintura de Siron Franco aqui.
Vamos aprumar a conversa: Violência sexual, Tornar-se pessoa de Carl Rogers, Por que não sou cristão de Bertrand Russel, Medeia de Eurípedes, Horizonte perdido de James Hilton, a música de Ricj Wakeman, Pelé, Movimento, o cinema de Frank Capra, a pintura de Eugène Delacroix & Francis Bacon aqui.
O pulo do amante, A natureza do espaço de Milton Santos, Casa do prazer de August Stramm, O poder da identidade de Manuel Castells, a música de Bach & Alina Ibragimova, a fotografia de Man Ray, a pintura de Paula Garcia, a arte de Rich Snobby & RozArt aqui.
Tudo acontece no ermo das ruas, Complexidade e ética da solidariedade de Edgar Morin, a poesia de Emily Dickinson, Limites & sustentabilidade de Guillermo Foladori, o cinema de Ingmar Bergman, a música brasileira de João Carlos Botteselli, a pintura de János Vaszary & a arte de Felix Reiners aqui.
Minha alma tupi-guarani, minha sina caeté, A geração dos poetas de Roman Jakobson, a poesia de Vicente de Carvalho, Paregma & Paralipomena de Arthur Schopenhauer, a música de Laura Nyro, a arte de Deborah De Robertis, a fotografia de Erwin Blumenfeld & Liliana Porter aqui.
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UMA CARTA DE MULHER DE MARCELINE
As mulheres, eu sei, não devem escrever;
Mas ouso a arte,
Pra que em meu coração de longe possas ler
Como quem parte.
Qualquer beleza que existir em minha escrita
Mostraste antes
Mas soa nova a palavra cem vezes dita,
Quando entre amantes.
Que te traga alegria! Eu fico a esperar,
Mesmo distante;
Sinto que me vou, para ver e escutar
Teu passo errante.
Não te desvies se passar uma andorinha
Sobre esse chão,
Porque acredito que era eu, fiel, quem vinha,
Tocar-te a mão.
Tu te vais, tudo se vai! Parte em viagem,
Luzes e flores,
O verão te segue e me deixa à fria aragem,
Dos dissabores.
Se só temos esperança e alarmes, no entanto,
E a vista cansa,
Dividamos pelo melhor: mantenho o pranto,
Guarda a esperança.
Não, não queria, tanto a ti estou ligada,
Te ver penar:
Querer dor a sua metade abençoada,
É se odiar
.
O poema Uma carta de mulher, extraído da obra Poésies Inédites (1860 – Gallimard, 1983), da poeta maldita francesa Marceline Desbordes-Valmore (1786-1859), tradução de Sandra Stroparo & Caetano W. Galindo.

AÇÃO DIRETA DE VOLTAIRINE
[...] Bem, eu já declarei que, ocasionalmente, algumas coisas boas podem resultar da ação política -- e não necessariamente da ação de partidos proletarios. Mas estou plenamente convencida de que cada benefício alcançado é mais do que anulado pelo malefício que traz a tiracolo; também estou plenamente convencida de que, ocasionalmente, cada malefício resultante da ação direta é mais do que anulado pelo benefício que traz a tiracolo. [...] Eu concordo totalmente que as fontes da vida, e toda a riqueza natural da terra, e as ferramentas necessários à produção cooperativa, tem que estar livremente acessíveis a todos. Tenho certeza de que o sindicalismo precisa alargar e aprofundar seus propósitos, ou será extinto; estou segura de que a lógica da situação os forçará a ver isto gradualmente. Eles têm que aprender que o problema dos trabalhadores nunca pode ser resolvido espancando fura-greves, sua própria política de limitar seus sócios cobrando altas taxas e outras restrições ajuda criar fura-greves. Eles têm que aprender que o curso do crescimento não está tanto em salários mais altos, mas em jornadas mais curtas de trabalho que os permitirão a aumentar a quantidade de membros, a chamar qualquer pessoa disposta a entrar no sindicato. Eles têm que aprender que se eles querem mesmo ganhar batalhas, todos os trabalhadores aliados têm que agir em conjunto, e agir depressa (sem avisar aos patrões), e resguardar sua liberdade de entrar em greve quantas vezes for necessário. E finalmente eles têm que aprender (quando houver uma organização completa) que jamais ganharão nada permanente a menos que lutem, não por conquistas parciais, mas por conquistas totais -- não por um salário, não por benefícios secundários, mas pela conquista de todas as riquezas naturais do planeta. E procedam à expropriação direta de tudo! [...] Enquanto isso, até este despertar internacional, a guerra entre as classes continuará seguindo seu curso, apesar de toda essa manifesta histeria de pessoas bem-intencionadas mas que não compreendem a vida e suas necessidades; apesar do patente temor dos líderes acovardados; apesar de toda vingança reacionária que pode ser perpetrada; apesar de todo capital que os políticos recebem da situação. A luta de classes continuará seu curso porque a Vida anseia por viver, mesmo com a propriedade negando sua liberdade para viver; a Vida não se submeterá. Nem deve se submeter. Seguirá seu curso até aquele dia quando uma Humanidade que se auto libertou puder cantar o Hino ao Homem de Swinburne: Glória ao Homem nas alturas, Ao Homem, Senhor das coisas.
Trechos extraídos da obra Ação direta (BPI, 2013), da escritora anarcofeminsita estadunidense Valtairine de Cleyre (1866-1912).

VÊNUS KALLIPYGOS
Escultura anônima da Venus Callipyge ou Aphrodite Kallipygos, significando Vênus (ou Afrodite) das lindas nádegas, antiga estátua de mármore romano, cópia original grega.

OUROBA
Acaba de ser gravado o primeiro cd do grupo vocal OuroBa, formado por Marianna Leporace, Célia Vaz, Chris Tristão, Dalmo Medeiros, Symô & Vicente Nucci, um projeto de pesquisa dos Cantos Sagrados do Candomblé, agora com uma campanha de venda antecipada para confecção da arte gráfica e prensagem. Confira aqui e aqui.