quarta-feira, maio 31, 2017

ROMANCE DE AUTRAN DOURADO, POEMAS DE KHLÉBNIKOV, BAILARINAS DE COLIN SOLOMON, BRINCAVA & APRENDIA

BRINCAVA E APRENDIA – O primeiro quintal era enorme, espaçoso e tinha de tudo, até um brejo e, do outro lado, o matagal e o mudo todo. Era o quintal da bodega de vó Benita, onde eu me esgueirava na vida, brincando demais. O segundo era bem menor, a goiabeira no meio do terreiro e as bananeiras encostadas no muro, outras plantas e caqueiras. Aí veio o de Carma e Pai Lula, no qual Marquinhos e Marcelo aprumavam minhas traquinagens. No de tia Bia, o final de semana era pouco: não queria mais sair de tantos sabores e aventuras. De resto, me reduzia à goiabeira, a minha confidente amiga secreta, ora em conversa com o bananal, ora com as lagartixas e calangos que zanzavam no muro, os preás inquietos que se escondiam no mato, os passarinhos alvoroçados que eu soltava das gaiolas do meu pai pra se reuniram às cuias que eu pendurava com água açucarada, entre besouros, borboletas e até tanajuras em tarde estiada que buliam com o sapão cururu coaxando aposentado no canto como se censurasse minhas diversões, eu só aos debiques, até aparecer meu amigo invisível e nunca mais sair de lá, porque tudo existia e tão perto, ao alcance da mão. Não gostava dos maruins e mosquitos que ma atanazavam as picadas e eu virado de raiva sacava do bodoque pra espantá-los. Aí pegava no cabresto quando descobria uma nuvem baixinha, escapolindo às gaitadas pelos roçados e leirões, touceiras e moitas, de loca em loca, tabica na mão, procurando botija entre cacimbas e caçuás, inventando histórias de nunca acabar. Galho que fosse era avião, burra, comia brotes, biscoitos, frutas no pé e o cheirinho de vida embalando as travessuras. Queria era pegar uma baronesa daquela do rio pra ter todo ufano no quintal, enquanto juntava meus basculhos, bonecos de barro, soldados de plásticos, Mané-gostoso, calungas de sabugo de milho, cotocos de paus que era a gente que voava aos pés de ventos e girava cataventos pra puxar o trenzinho de madeira, o caminhão de lata, o disco voador de papelão. Do cabo da vassoura, o meu cavalo alado e a pipa dos retalhos perdidos, empinando papagaio até se enganchar na mangueira do quintal do vizinho. Quando não era um autorama feito a mão no chão de barro, com estradas de autódromos na areia pros carrinhos, caixas de fósforos, rolimãs, chimbras e casco de côco, afora uns navios de papel que havia aprendido a fazer com a tia-prima Sônia. Folgava na terra como se estivesse pelas praias paradisíacas da imaginação ou quando a água descia pelas biqueiras e eu tomava banho como se estivesse numa cachoeira qualquer do Una, o tempo eu não sabia, só se chovia ou ensolarado, o espaço era qualquer lugar. Tudo eu fazia de conta e era mais que verdadeiro, era real, da imaginação pras mãos, era o que eu tinha e tenho. O mundo todo no quintal e o universo com tudo que era e não era conforme eu quisesse. Desembaraçado a me entreter no presente criando o passado, tomando ponches, sucos e refrigerantes, aprendia que o mundo era bem divertido, como as aulas da tia-prima Sônia, as lições no Grupo José Bezerra, as encantadoras horas com a professora Hilda na Escola da Maçonaria. O que aprendia eu riscava na coleção de gibis e nos álbuns de figurinhas, pintando o sete, decalcando tudo pra repetir célere na ponta da língua à primeira indagação. Eita, menino sabido! Eu todo ancho nos braços de tia Conça, de quem só largava para pegar um livro na estante e sair mostrando as figuras das enciclopédias muitas que tinha, exercitando o beabá, aos tropeços, até aprender a escrever o ditado. Tudo que aprendia na escola eu ensinava pro amigo invisível e pra goiabeira, ralhando com os passarinhos, lagartos e bananal que não prestavam atenção, como se fosse o professor que tudo sabia na bagagem das travessuras. Menino cresci e fiquei, folheando os volumes, curioso que só, uma nova lição em cada exemplar, descobrindo o mistério das brochuras e capas duras. Tudo eu dividia, cada nova descoberta compartilhava com meus conviventes, que tudo sabiam de mim e segredavam uns aos outros, pra que eu chamasse na grande e geral, pondo ordem que era só mais desordem em tudo no quintal. © Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.

ROMANCE DE AUTRAN DOURADO
[...] Mas enfim não estou censurando ninguém, férula na mão cada um faz de sua obra o que quer, não há ainda um Patrimônio para todas as obras literárias, queira Deus nunca haja, tão perigoso é o leviatã social. Eu mesmo me incluo no rol dos torturados. Só que a minha tortura é diferente, não sei se é melhor ou pior; há muito venho procurando me libertar. Para me entregar a outra braga e prisão? Não sei. Eu mesmo sofri o espartilho daquela “nobre” disciplina que procuro satirizar através dos devaneios do personagem-fio O risco do bordado. Eram os meus professores de português [...] a martirizarem os nossos ouvidos com aquela cantilena de que o menino João, desesperado e só pensando em lugares-comuns mesmo, nas suas cartas imaginárias, se fingia boquiaberto e que procurava imitar, para concluir finalmente – e aí está a chave – “escrever assim é uma merda”. “O lugar-comum não é para a sua obra”, me aconselham generosamente. E eu, em verdade, vos digo que o que é para mesmo é o lugar-comum. [...] Um menino tatenado no escuro os dolorosos passos da “arte de escrever”. O que procurei e procuro (não sei se consegui ou conseguirei, é capaz de que não, e então se terá razão) é aquilo que os filmes mudos americanos conseguiram – a comédia, eu digo – através do lugar-comum e do clichê, dos tiques e triques. [...].
Trechos de Estilo e lugar-comum, extraído da obra Uma poética do romance (Perspectiva, 1973), do escritor, advogado e jornalista Autran Dourado (1926-2012). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

Veja mais sobre:
O sisifismo da semana, Tempo e antitempo na ficção de Luiz Toledo Machado, Quingumbo & a poesia norte-americana, Tempo & literatura de Raúl H. Castagnino, Händel & Meghan Lindsay, a música de Paulinho da Costa, a pintura de Mary Addison Hackett & Steve Hester, Alain Bonnefoit & Robert Rauschenberg, a arte de Nina Moraes & Trampo aqui.

E mais:
Brincar para aprender aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
Canto a mim mesmo de Walt Whitman aqui.
Brincarte do Nitolino, A forma fêmea de Walt Whitman, O rapto de Perséfone & Gian Lorenzo Bernini, a música de Richard Strauss & Diana Damrau, Evolução do Teatro de Francis Fergusson, o cinema de Reinaud Victor & Sandrine Bonnaire, a pintura de Alessandro Bronzino & a charge de Charb aqui.
A desgraça de um é a risada de outro, a música de Gonzaguinha, a pintura de Rosie Scribblah & Milton Dacosta, a arte de Jean-Michel Basquiat & Nitolino no Reino Encantado de Todas as Coisas aqui.
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A República no reino do Fecamepa: lições de ontem e de hoje pro que não é, A República de Platão & Cícero, O príncipe de Nicolau Maquiavel, O espírito das leis de Montesquieu, O contrato social de Jean-Jacques Rousseau, História da consciência de classe de Georg Lukács, Escitos & ensaios de Norbert Elias, Ética pós-moderna de Zygmunt Bauman & Revolução burguesa no Brasil de F aqui.
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O mundo todo cabe em um ato de paz, a pintura de René Magritte, a arte de Paul Vilinski, a música de Cláudio Nucci & a escultura de Ricardo Brennand aqui.
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DOIS POEMAS DE VIELIMIR KHLÉBNIKOV
I
Hoje de novo sigo a senda
Para a vida, o varejo, a venda,
E guio as hostes da poesia
Contra a maré da mercadoria.
II
Anos, países, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A natureza é espelho móvel,
Estrelas – redes; nós – os peixes;
Visões da treva – os deuses.
Poemas do poeta da vanguarda russa Vielimir Khlébnikov (1885-1922), extraídos da obra Poesia Russa Moderna (Perspectiva, 2001), organizada & traduzida por Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman.

CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na Terra:
As bailarinas do fotógrafo Colin Solomon.
Recital Musical Tataritaritatá - Fanpage.
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