BRINCAVA E APRENDIA – O
primeiro quintal era enorme, espaçoso e tinha de tudo, até um brejo e, do outro
lado, o matagal e o mudo todo. Era o quintal da bodega de vó Benita, onde eu me
esgueirava na vida, brincando demais. O segundo era bem menor, a goiabeira no
meio do terreiro e as bananeiras encostadas no muro, outras plantas e caqueiras.
Aí veio o de Carma e Pai Lula, no qual Marquinhos e Marcelo aprumavam minhas
traquinagens. No de tia Bia, o final de semana era pouco: não queria mais sair
de tantos sabores e aventuras. De resto, me reduzia à goiabeira, a minha confidente
amiga secreta, ora em conversa com o bananal, ora com as lagartixas e calangos
que zanzavam no muro, os preás inquietos que se escondiam no mato, os passarinhos
alvoroçados que eu soltava das gaiolas do meu pai pra se reuniram às cuias que
eu pendurava com água açucarada, entre besouros, borboletas e até tanajuras em
tarde estiada que buliam com o sapão cururu coaxando aposentado no canto como
se censurasse minhas diversões, eu só aos debiques, até aparecer meu amigo
invisível e nunca mais sair de lá, porque tudo existia e tão perto, ao alcance
da mão. Não gostava dos maruins e mosquitos que ma atanazavam as picadas e eu
virado de raiva sacava do bodoque pra espantá-los. Aí pegava no cabresto quando
descobria uma nuvem baixinha, escapolindo às gaitadas pelos roçados e leirões,
touceiras e moitas, de loca em loca, tabica na mão, procurando botija entre
cacimbas e caçuás, inventando histórias de nunca acabar. Galho que fosse era avião,
burra, comia brotes, biscoitos, frutas no pé e o cheirinho de vida embalando as
travessuras. Queria era pegar uma baronesa daquela do rio pra ter todo ufano no
quintal, enquanto juntava meus basculhos, bonecos de barro, soldados de
plásticos, Mané-gostoso, calungas de sabugo de milho, cotocos de paus que era a
gente que voava aos pés de ventos e girava cataventos pra puxar o trenzinho de
madeira, o caminhão de lata, o disco voador de papelão. Do cabo da vassoura, o
meu cavalo alado e a pipa dos retalhos perdidos, empinando papagaio até se
enganchar na mangueira do quintal do vizinho. Quando não era um autorama feito
a mão no chão de barro, com estradas de autódromos na areia pros carrinhos,
caixas de fósforos, rolimãs, chimbras e casco de côco, afora uns navios de
papel que havia aprendido a fazer com a tia-prima Sônia. Folgava na terra como
se estivesse pelas praias paradisíacas da imaginação ou quando a água descia
pelas biqueiras e eu tomava banho como se estivesse numa cachoeira qualquer do
Una, o tempo eu não sabia, só se chovia ou ensolarado, o espaço era qualquer
lugar. Tudo eu fazia de conta e era mais que verdadeiro, era real, da
imaginação pras mãos, era o que eu tinha e tenho. O mundo todo no quintal e o
universo com tudo que era e não era conforme eu quisesse. Desembaraçado a me
entreter no presente criando o passado, tomando ponches, sucos e refrigerantes,
aprendia que o mundo era bem divertido, como as aulas da tia-prima Sônia, as
lições no Grupo José Bezerra, as encantadoras horas com a professora Hilda na
Escola da Maçonaria. O que aprendia eu riscava na coleção de gibis e nos álbuns
de figurinhas, pintando o sete, decalcando tudo pra repetir célere na ponta da
língua à primeira indagação. Eita, menino sabido! Eu todo ancho nos braços de
tia Conça, de quem só largava para pegar um livro na estante e sair mostrando
as figuras das enciclopédias muitas que tinha, exercitando o beabá, aos
tropeços, até aprender a escrever o ditado. Tudo que aprendia na escola eu
ensinava pro amigo invisível e pra goiabeira, ralhando com os passarinhos,
lagartos e bananal que não prestavam atenção, como se fosse o professor que
tudo sabia na bagagem das travessuras. Menino cresci e fiquei, folheando os
volumes, curioso que só, uma nova lição em cada exemplar, descobrindo o
mistério das brochuras e capas duras. Tudo eu dividia, cada nova descoberta compartilhava
com meus conviventes, que tudo sabiam de mim e segredavam uns aos outros, pra
que eu chamasse na grande e geral, pondo ordem que era só mais desordem em tudo
no quintal. © Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.
ROMANCE DE AUTRAN DOURADO
[...] Mas
enfim não estou censurando ninguém, férula na mão cada um faz de sua obra o que
quer, não há ainda um Patrimônio para todas as obras literárias, queira Deus
nunca haja, tão perigoso é o leviatã social. Eu mesmo me incluo no rol dos
torturados. Só que a minha tortura é diferente, não sei se é melhor ou pior; há
muito venho procurando me libertar. Para me entregar a outra braga e prisão?
Não sei. Eu mesmo sofri o espartilho daquela “nobre” disciplina que procuro
satirizar através dos devaneios do personagem-fio O risco do bordado. Eram os
meus professores de português [...] a
martirizarem os nossos ouvidos com aquela cantilena de que o menino João,
desesperado e só pensando em lugares-comuns mesmo, nas suas cartas imaginárias,
se fingia boquiaberto e que procurava imitar, para concluir finalmente – e aí
está a chave – “escrever assim é uma merda”. “O lugar-comum não é para a sua
obra”, me aconselham generosamente. E eu, em verdade, vos digo que o que é para
mesmo é o lugar-comum. [...] Um
menino tatenado no escuro os dolorosos passos da “arte de escrever”. O que
procurei e procuro (não sei se consegui ou conseguirei, é capaz de que não, e
então se terá razão) é aquilo que os filmes mudos americanos conseguiram – a
comédia, eu digo – através do lugar-comum e do clichê, dos tiques e triques. [...].
Trechos de Estilo e lugar-comum, extraído da obra Uma poética do romance (Perspectiva, 1973), do
escritor, advogado e jornalista Autran
Dourado (1926-2012). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
Veja
mais sobre:
O
sisifismo da semana, Tempo e antitempo na ficção de Luiz Toledo Machado, Quingumbo
& a poesia norte-americana, Tempo & literatura de Raúl H. Castagnino, Händel & Meghan Lindsay, a música de Paulinho da Costa, a pintura de
Mary Addison Hackett & Steve Hester, Alain Bonnefoit
& Robert Rauschenberg, a arte de
Nina Moraes & Trampo aqui.
E mais:
Canto a
mim mesmo de Walt Whitman aqui.
Brincarte
do Nitolino, A forma fêmea de Walt Whitman, O rapto de Perséfone & Gian Lorenzo Bernini, a música de Richard Strauss & Diana Damrau, Evolução do Teatro de Francis
Fergusson, o cinema de Reinaud Victor & Sandrine Bonnaire, a pintura de Alessandro Bronzino & a charge
de Charb aqui.
A
desgraça de um é a risada de outro, a música de Gonzaguinha, a pintura de Rosie
Scribblah & Milton Dacosta, a arte de Jean-Michel Basquiat & Nitolino
no Reino Encantado de Todas as Coisas aqui.
Dos
gostos e desgostos da vida, a pintura de Claude
Monet, a escultura de Ewald
Mataré, a fotografia de Chris Maher, a arte de Marlina Vera & Quanto
mais a gente vive, mais se enrola nas voltas do tempo aqui.
A República
no reino do Fecamepa: lições de ontem e de hoje pro que não é, A República
de Platão & Cícero, O príncipe de Nicolau
Maquiavel, O espírito das leis de Montesquieu, O contrato social de Jean-Jacques Rousseau, História da
consciência de classe de Georg Lukács, Escitos & ensaios de Norbert Elias,
Ética pós-moderna de Zygmunt Bauman & Revolução burguesa no Brasil de Florestan Fernandes aqui.
Abram
alas pra revolta passar que os invísiveis apareceram, Neurofilosofia
& Neurociência Cognitiva, a pintura de Amadeo de Souza-Cardoso & a fotografia
de Debora Klempous aqui.
As
escolhas entre erros e acertos, a música de Laura
Canabrava, a escultura de Armand Pierre Fernandez, a pintura de Alexandra
Nechita & a arte de Raceanu Adrian aqui.
Das
vésperas & crástinos na festa do amor, o cinema de Peter Greenaway & Helen Mirren, a
pintura de Dalu Zhao, a arte de Luciah Lopez, A Notícia & Jamilton Barbosa
Correia aqui.
O melhor
do dia do homem é saber que todo dia é dia da mulher, a xilogravura
de Gilvan Samico & a arte de Francisco Milani aqui.
O mundo
todo cabe em um ato de paz, a pintura de René Magritte, a arte de Paul
Vilinski, a música de Cláudio Nucci & a escultura de Ricardo Brennand aqui.
Fecamepa: quando
o Brasil dá uma demonstração de que deve mesmo ser levado a sério aqui.
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DOIS POEMAS DE VIELIMIR KHLÉBNIKOV
I
Hoje de novo sigo a senda
Para a vida, o varejo, a venda,
E guio as hostes da poesia
Contra a maré da mercadoria.
II
Anos, países, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A natureza é espelho móvel,
Estrelas – redes; nós – os peixes;
Visões da treva – os deuses.
Poemas
do poeta da vanguarda russa Vielimir Khlébnikov
(1885-1922), extraídos da obra Poesia
Russa Moderna (Perspectiva, 2001), organizada & traduzida por Augusto
de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na Terra:
As bailarinas
do fotógrafo Colin Solomon.
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.