PRESENTE
DE ANIVERSÁRIO (Imagem:
sem título da pintora Carla Osório) -
Era antevéspera do aniversário dele. Cinquenta anos de trabalho começado ainda
menino, aos dez, vendendo brebotes na feira, acompanhando o pai artesão e a mãe
verdureira. Amealhou cada centavo, moedas da muita no mealheiro do
porquinho-da-índia, em bolas de meia com nós e no garrafão de vinho Padim Ciço,
algumas até sem valia pelo tanto de tempo. Alimentou um sonho anos a fio: um
automóvel, seminovo que fosse, pra quem só conhecia carro-de-boi, ou carroça
puxada a jumento. No dia que viu pela primeira vez um jipe na rodagem fazendo
poeria, correu pé-na-bunda de se esconder por dias, medroso. – Isso é um
invento do cão! O medo só passou quando pegou bigu numa Rural, já homem feito,
pra ir pra praia de Saraquaquema. Foi quando conheceu Dermevalda, hoje a
senhora Justilino, amada e mantida pelos últimos trinta e tantos anos e lá vai
teibei. Nem ele sabia direito, ela dava conta dos quase quarenta. Os filhos,
dois rapagões, duas jeitosas. Dois casais, cada qual, cada qual, da mesma
fôrma, cara dum, focinho de outro. E todos sonhavam passear de carro pelas
estradas. Décadas resignados, andando a pé, de casa pro trabalho, da escola pro
domicílio. Quando muito, pegavam o primeiro cata-corno pra capital ou prouta
cidade vizinha. Ou no lotação dos bairros. Era antevéspera de sua festa. E eis
que chegou o dia de tirar o pé da merda, ter um carro e rivalizar com outros
metidos da cidade. Quando ele viu aquela perua, do jeito que ele sonhara, na
cor ideal, usada mas bem conservada, quilometragem mínima de quem comprara e
pouco usara, alinhada, original, ainda com cheiro novo nos estofados, tudo nos
conformes. Oxe, contou uma por uma das moedas, juntou ao que tinha escondido no
colchão, deu baixa na carteira e sacou do Fundo de Garantia, PIS/PASEP, seguro desemprego,
arrastou o que tinha na poupança produto de umas caranhas, amarrou tudo no saco
e foi pra loja: - Quero esse carro! E o tanto acertado foi pago na hora, mal
sabia ele dirigir direito. Pediu que aprumassem o veículo para ele poder guiar.
Não sabia dar marcha à ré, mas isso era de menos. Fazer a volta, dava trabalho.
Ia em frente, era o que pra ele valia. Quando chegou em casa, deixou
atravessado e já foi chamar todo mundo pra ver e, ao mesmo tempo, providenciar
a primeira lavagem pra tirar a poeira. E lavaram. Depois de enxuto, lavaram de
novo. – Ô pai, quando é que a gente vai pissiá? – Agora mermo, mô fio. E saíram
dando volta na cidade. Depois que arrodearam a praça umas trocentas vezes, ele
estacionou enviesado na porta de casa, bufou e relaxou. Os braços doíam da
força que ele fazia no volante. O calor era grande porque ele não sabia sair da
primeira pra segunda, andou o tempo todo numa marcha só. Mas como era sexta de
tardezinha, a festa era uma só. Na manhã seguinte seria véspera de seu
aniversário. E danaram-se a lavar de novo. – Amanhã vamo no sítio de Pai João.
– Ôbaaaaaa! Maior festa. – A gente vai comemorá meu anirversáro lá! Eba! Depois
que deixaram o carro limpíssimo, ali mesmo ficou e foram dormir. Não era nem
cinco da manhã, Justilino acordava a mulher e os filhos. – Bora, cambada! E fez
as malas e juntou os bregueços todos e sacudiram no porta-malas. – Amanhã é meu
aniversáro e não se esqueçam de nada, viu? E trouxeram travesseiros, lençóis,
vestimentas, toalhas, gaiolas de passarinho que não podiam passar fome, o gato
Chué, o cachorro Tição, até a jabuti Jamela ía na embalagem. Uma tranqueira
geral quase não deixa nem eles entrarem no carro. Atreparam todos no maior aperto
da catrevagem e saíram cantando o sucesso do rádio. – Ô pai, sabe que tô filiz?
– Sei, mô fio, eu tomém, todos tamo filiz. O riso às orelhas, maior euforia. Na
saída da cidade, deu trabalho para entrar na rodovia estadual. Contudo,
passando do acostamento pra faixa contrária, conseguiu aprumar e foi só acelerar.
Alguns quilômetros adiante, o carro pifou no meio da pista. – Que droga que é
isso? Alguns bons pariceiros pararam para saber o que havia. Constataram:
faltou gasolina. E ajudaram até ir ao posto, compraram uns galões e abasteceram.
Recomendaram que parasse no próximo posto pra completar o tanque. Assim o fez.
Reabastecido, seguiu para um cruzamento entre a rodovia estadual que trafegava,
passando para uma federal. Nem aí, fincou pé no acelerador e se esgueirou pelo
asfalto. Nem deu tempo pro susto: era uma descida bastante acentuda, daquelas
que os motoristas de auto-carga costumam descer na banguela. O sonho, o
aniversário, a festa. Nem deu pra sacar um treminhão sobrecarregado que mandou ver
na buzina e só deu tempo mesmo de ouvir o primeiro sinal: tudo arrastado e
preso nas ferragens, enganchado na última etapa dos pneus. As duas primeiras
levas de pneus do cavalinho foram o bastante para não restar mais que alguns
poucos centímetros de tudo daquele automóvel, que ninguém mais sabia nem que
marca era do pouco que sobrara de identificável. O sonho, só fumaça de frenagem
e borracha. O aniversário, estalido de ferro quente dilatando e silêncio
tumular. A festa, era uma vez. ©
Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
Imagem: a
arte da pintora Svetlana Ziuzina.
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