sábado, maio 01, 2021

SEBALD, BARICCO, YASMINA KHADRA, KIM EDWARDS & GENTIL PORTO FILHO

 

 

TRÍPTICO DQC: O tio-irmão se foi e fiquei só mais uma vez - O brejo no quintal e o meio da rua principal, a infância no que não era água escura, apenas um nome inocente. Aquele Zito – coisito de carinho, mimo -, ser caçula como todos somos e com uma obediência cega por meu pai que nunca tive até a descoberta do fracasso e senilidade dele, aí passou para o plano da compreensão, porque era o filho do mais velho que era meu pai e, por isso, meu irmão. E o respeito submisso o fez doutor Rildo que foi para mim nada mais além do nome, alcançar a rebeldia insubordinada – era enfim ele por ele mesmo – de vereador a vice-prefeito que, também, para mim, não era mais que outra nomeação distante, porque arrombamos com toda hierarquia: ser o primeiro neto deu-me o poder sobre o tio mais novo, a equidade. E ríamos e discordávamos no meio da nossa cumplicidade. Nada do que fomos além de nós mesmos em nós mesmos não valia nada. Como ele era bissexto, envelheci primeiro, antes dele e recitando a epístola aos poetas que virão de Manuel Scorza – apesar dele ter passado não sei quantos anos além de mim. O que ficou de mesmo foi essa isonomia e as mãos dalas pela proximidade de sonhos, anseios similares, apesar de distintos, claro, mas dois num só, na verdade três mosqueteiros: eu, ele e todas as coisas, enquanto apreendia as quatro narrativas longas dos emigrantes, do escritor alemão W. G. Sebald (1944-2001): O certo, porém, é que o sofrimento espiritual é praticamente infinito. Quando se acredita ter atingido o último limite, sempre há novos tormentos. A pessoa cai de abismo em abismo. E éramos um pelo outro no pacto de sangue que sequer celebramos e nem a morte nos separou porque se ele está morto seja lá onde for, está vivo em mim, como dissera Alessandro Baricco: Os mortos morrem, mas continuam a falar em nossa voz. Aumentou minha solidão, mas é assim que sou e vamos sempre juntos.

 


DOIS: Cassemblas – Comartefatos, brinquedadas, trouvobjetos, vidartes - Aqui estou e muitoutros eus, isso de mim mesmo. É assim: de primeiro ouvi e o ouvido fez-se minha fala, Fiat Lux et cétera e tal. E em mim a descoberta do que não ouvi nem se falou: do que sou e de tudo duma só vez emanavam e eu capturando os pedaços que voavam de mim não sei de onde, de dentro sim, e sentia sem que pudesse compreender, o ilógico, algo não-ego, outro eu e muitoutros de mim mesmo brotavam do meu coração e cresciam a se enraizarem além dos meus pés e se elevavam além da minha cabeça e tamanho, como se minha alma não fosse só minha e não mais eu, incorporando a mim e todo universo. Foi de repente e me vi Sônia Guajajara empunhando a vida e era ao mesmo tempo o pedinte aboletado na esquina e o escritor argelino Yasmina Khadra: Quando um mosquito se deixa apanhar numa teia, não pode querer mal à aranha. E não só, o primeiro passo esquecido, o sorriso de Carma, a última esquina passada onde não encontrei minha mãe que se foi para nunca mais, cenas que não vi, o que não percebi e o esquecido, as árvores do quintal da infância, os rios que atravessei e me deixei levar, os enfermos das emergências hospitalares, os quase vivos e os quase mortos, ouvindo Gotas de oceano da cantautorótimaravilhosa Camila Inês e contra-o-ponto da vã filosofia porque tudo é fugaz sereia morena Leiria e o eco na mente de Kim Edwards: Não se pode deter o tempo. Não se pode raptar a luz. Tudo o que se pode fazer é virar o rosto para cima e deixar a chuva cair. Ser em si o outro e muitoutros não é nada pacífico, isso eu sei; mas nada pude fazer: guerras e tempestades permitidas, política de boa vizinhança. E me apaziguo ao desconhecido, tenho de seguir adiante.

 


TRÊS: Livro fechado – Abri e fui comodamente palavra por palavra, frase por frase, período por período, página por página até a linhultima da paginultima: Por outro lado, o caixeiro, para ser caixeiro-viajante de verdade, não precisa de escrúpulos, o que lhe deixa em posição de igualdade em relação à natural falta de escrúpulos do primata, mas com a vantagem de poder desfrutar dos privilégios da linguagem. Logo no início fui avisado: De histórias, o cemitério anda cheio. Era para saber: Viver lentamente para morrer rapidamente. E outro alerta: ...fuja mesmo e não se atrase. Lá pras tantas, outros recados no meio de muitos tantos: Ou talvez até não precise de nada, se você vislumbrar a própria divindade que há em você. O que me dizia, não olvidava: ... porque o tempo urge. Urge para que você dê aquele passo que vai lhe tirar da sua condição de vítima. Ali estava o que eu não disse e estava dito, o que não fiz e estava feito, o que não escrevi e estava sacramentadamente escrito. Deveria ter lido de antemão o prefácio d’A saga do Zeitgeist Cowboy contra o inferno do Fabio Victor, outra obra de arte, mas não passei batido: ... é um labirinto, um jogo de espelhos, um caleidoscópio instigante e vertiginoso. Um manifesto-ensaio-provocação-em-prosa-poética, no limite da prosa, no fio da navalha da poesia. Um achado, esta síntese. Justo quando lembrei comovido daquela passagem que diz: Amar o próximo é importante. Nem que seja só um amigo, daqueles capazes de saltar muros e fugir de guardas com você. Capazes também de roubar um carro com você, mas, sobretudo, de dividir o próprio futuro que se faz com ele no presente. O que eu não sabia, tudo muito e demais: um livro fechado que abri e li porque sou o que restou do meu pai. Até mais ver.

 

A ARTE DE GENTIL PORTO FILHO



[...] Sinceramente, não sei bem o que fiz neste livro. Sentei em frente ao computador como se diante de uma tela em branco. O único princípio que me impus foi justamente o de escrever sem projeto nem processos preestabelecidos. Parece-me que havia apenas a necessidade de escrever livremente [...]. Talvez pelo fato de ter a necessidade de escrever livremente, tenha me levado a este fluxo de imagens e percepções. Do título do livro, penso que me veio como uma síntese de ideias contraditórias. Parecia-me um trabalho fechado nele mesmo, aparentemente independente do exterior. Ao mesmo tempo, me parecia também o mais aberto possível, porque sem temas, estruturas ou técnicas predefinidas, o que também me recordou da Caixa de Pandora. Uma caixa fechada, mas para ser aberta e liberar ‘todos os males do mundo’. [...].

A arte do escritor, professor, pesquisador e artista plástico, Gentil Porto Filho, autor da obra Livro Fechado (Autor, 2020), que é professor de Teoria da Arte e formação em arquitetura. Veja mais aqui e aqui.