quarta-feira, janeiro 23, 2019

RUBEM ALVES, MICHEL SERRES, O DIÁRIO DAS FRUTAS, IANGAÍ & ALAGOIANHADUBA


PEDAÇO DE HISTÓRIA – Para quem não sabe Alagoinhanduba não está no mapa porque não entrou na história. Qual a razão? Seguinte: em 1535, o capitão-donatário Duarte Coelho assumiu a Capitania de Pernambuco, tratada por ele por Nova Lusitânia. Tudo recebeu do rei de Portugal, de mão beijada, por seus serviços prestados. Todo engalanado ele chegou acompanhado de sua fidalga esposa, Brites de Albuquerque, do seu cunhado Jerônimo e de uma parentela que não tinha mais fim, todos tentando a sorte, imagine. Dessa vez era diferente de outra viagem que ele mesmo fez em 1503, quando aqui esteve, então filho bastardo de membro duma antiquíssima família da nobreza agrária do Entre-Douros e Minho, criado por uma tia materna que era prioresa do Mosteiro de Vila Nova de Gaia. Veio, então, na companhia do pai que era escrivão da Fazenda Real e que se tornou comandante da expedição, juntamente com a plebeia Catarina Anes, sua mãe. Logo retornara. Passaram-se os anos e, agora sim, como um nobre que conseguira apagar as máculas do passado, ele desembarcava de nariz empinado e senhor de todas as ordens, manda-chuva da administração geral e do cultivo da cana-de-açúcar, instalando engenhos de açúcar, tabaco e algodão, botando ordem e pintando o sete, tendo por financiamento a garantia do capital judeu e protestante, oriundo do tráfico de escravos da Guiné. Mas, tinha uma bronca: a arenga entre ele, índios e colonos só veio mesmo amainar, com a união do seu cunhado Jerônimo com Maria, a filha do cacique Arcoverde dos tabajaras. Uma dor-de-cabeça a menos, pois ainda restavam caetés e franceses, o que já era uma barra pra lá de braba. Pois bem, contando com a ajuda dos céus, foi isentado de prestar contas ao governador geral da Bahia, Tomé de Sousa, o que quase mata o maioral do coração. Por conta disso, mandou ver na capitania e tome trupé. Foi por esse tempo que teve um confronto com um grupo de aguerridos caetés, e disso foi atingido por uma flecha. Que coisa! Porém, ao se recuperar recebeu o chefe tabajara, Tabira, que trouxe os prisioneiros com pedido para sacrificá-los. Aproveitando-se da captura deles, sua intenção era outra, vez que, entre eles, estava ela, Iangaí, Ó linda. Apenas ela foi poupada, os demais foram pros quintos dos infernos ou sabe-se lá pra onde. A prisioneira passou a ser o centro das suas atenções, estava, deveras, perdidamente apaixonado. Ela, nada, virada na capota choca, revoltada, era só desprezo porque seu coração estava destinado a Camura, o seu amado caeté. O donatário usou de seus poderes e, como não poderia ser diferente, partiu pra cima dela, incontrolável, vuque-vuque e a estupra, mesmo com os protestos e rejeições dela. Ó linda, assim seviciada todas as noites, até o dia em que a índia Maria de Jerônimo confidenciou: Ela vai matá-lo. Ele ignorou, estava apaixonado demais para ser tocado pela repulsa da amada, mas precaveu-se. Passou-se o tempo e após muitas fungadas e teitei, ela pariu seu filho que é tomado por Maria para o donatário. Aí, ela foge e se mata, encontrada morta dias depois e envolta em folhas de timbó. Oh não! Em sua homenagem ele funda Olinda da Nova Lusitânia, que até então não tinha esse nome não, era local onde se instalava a aldeia Marim dos Caetés. A criança desapareceu e ninguém sabia nada do paradeiro dela. Como é que pode isso? Babau. Tome anos. A povoação é promovida a vila em 1537, em uma grande festa para o poderoso. E tudo correu normalmente até ele bater as botas em 1554, lá em Portugal, sem saber notícias do filho perdido. D. Brites que assumiu tudo por aqui, não queria ouvir falar nem de longe do bastardinho sumido, apenas dos dois filhos, Duarte e Jorge, que estavam estudando na metrópole e logo retornariam para o seu seio. Pois foi. Sem que ninguém desse por nada, o adulterino cresceu ninguém sabe como e tornou-se o destemido mameluco que arrasou sesmarias e fortunas, dizimou índios, brancos e negros que encontrasse pela frente, adultos, meninos e velhos, tudo sacrificado; apenas por cativeiro as mulheres, senhoras e filhas dos subjugados. Formou um verdadeiro harém, formado por um plantel de brancas, negras e índias para suas orgias por noites e dias. Mais tivesse ou desse. Desconhecia da honra, ignorava sentimentos e apenas matava só por prazer e festa, pois pegava bicho que fosse de mão – jacaré, tubarão, coisa ruim, o que fosse -, enfrentava cruzeta na caixa dos peitos, e tinha por café pequeno quebrar o pescoço alheio. Vôte! Diziam: Esse tem parte partes com o tinhoso! Se não for o próprio, gente! Muitas diziam dele de corpo fechado, pactuado com o demo, espírito ruim, coisas e tais. Parentes, para ele, não tinha, nem se identificava com branco ou índio, muito menos com qualquer semelhante na face da terra, passasse, matava. Teve por alvo a vida toda, afora abusar das mulheres que emprenhavam bruguelos aos montes, sacrificar quem atrapalhasse seu passeio, desbancar qualquer pé de gente metido a besta, principalmente, o de retomar todas as sesmarias doadas pelo pai, assumindo para si toda a capitania e até terras outras mais para as bandas do norte e de outras capitanias. Isso nem contava vitimar-se numa noite invenosa de priaprisma, no meio de um coito ineivado em cima de uma índia tarada, morrendo a bem da salvação dos que conseguiram escapar de seu poder e fúria. Todos os seus domínios foram resgastados um por um pelo primeiro que chegasse, restando, coitada, à Alagoinhanduba, simplesmente, aquele que ninguém queria por ser amaldiçoado e que ainda hoje é demarcado como seu espaço territorial, tão ínfimo, chão esse esconjurado secularmente por ter sido a sede do poderio desse insano. Por conta disso, a cidade sequer figura no mapa, justo porque foi ignorada pela história. E vamos aprumar a conversa, meu! © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

DITOS & DESDITOS
O amor, não a guerra. [...] O amor, não a guerra, isso requer talento demais. Um poder que se acha no povo, uma relação positiva com a vida que falta aos intelectuais, burgueses, militares e políticos. Àqueles que impuseram uma cultura da sexualidade torta, sadismo, masoquismo e não sei mais que outras máquinas de evitar os exauridos; àqueles que ensinam às crianças a patologia do erotismo para esconder as delícias delicadas da normalidade. É preciso aí uma forma tranquila, quieta, sem vontade, estável e serena como uma árvore. A ternura. É preciso um saber, esta felicidade vital que dá tudo num sorriso, a gentileza, esta alta genialidade de grandeza dentro da relação corporal. [...] A filosofia se faz precisa por completo, a verdadeira, aquela que temos pés na terra e que se decifra como sabedoria do amor, uma percepção atual da onitude do cosmos, todo o saber humano, mesmo se o ignoramos e o ensinamos, mais o incêndio ardente do patético. [...] Ela não tem nem mesmo necessidade de reprimir a sexualidade, isso acontece espontaneamente. Como se, ao contrário, a maioria não fosse levada a isso, poucos terão tido a primeira ideia de fazê-lo. Vamos, vós não pensais nisso; se os poderosos do Eros chegassem amanhã ao poder, a humanidade padeceria de vergonha. Uma tal transvaloração, hoje em dia salvadora, obrigaria todos os dominadores da história a se esconderem nos canaviais.
Trechos de Traição: a tanatocracia, extraídos da obra Hermes, uma filosofia das ciências (Graal, 1990), do filósofo francês Michel Serres, evocando a figura do deus grego Hermes, o mensageiro, intérprete da vontade dos deuses, deus dos viajantes. Ressalta o autor que dois aspectos de Hermes são essenciais simbolicamente na filosofia: a sua mobilidade em viajar pelos mais diversos lugares e o seu dom de invenção, representando assim as relações ou redes ou passagens que os diversos ramos do conhecimento, das ciências às artes, devem ter, chamando atenção para a filosofia da invenção que se encontra nas intersecções, nos caminhos terceiros, nos terceiros lugares, lugares de contato entre ciência e poesia, lugares mestiços. Veja mais aqui e aqui.

O DIÁRIO DAS FRUTAS DA CAIS CIA DE DANÇA
O espetáculo O diário das frutas (2017), da Cais Companhia de Dança, foi inspirado no conjunto de crônicas do jornalista, escritor e antropólogo Bruno Albertim e que deram origem a uma série de pinturas de Tereza Costa Rêgo. Este espetáculo marcou a estreia do conceituado e premiado bailarino e coreógrafo Dielson Pessoa como diretor da nova companhia em Campina Grande. O coreógrafo pernambucano já participou da Companhia de Dança Deborah Colker e Balé da Cidade de São Paulo, apresentando-se em grandes palcos do cenário internacional, tais como Uruguai, Chile, Argentina, EUA, Itália, Áustria, França, Inglaterra, Alemanha, Singapura, ao mesmo tempo em que interpretou trabalhos de célebres coreógrafos, como Ohad Naharin (Israel), Mauro Bigonzzetti (Italia), Itzik Galili (Holanda), Luiz Arrieta (Argentina), Cayetano Soto (Espanha), Jorge Garcia e Deborah Colker (Brasil). Veja mais aqui e aqui.

O ENTERRO DA PERNA, DE RUBEM ALVES
[...] Aos olhares dos pranteadores, cujo pranto era interrompido pelo espanto, explicava com voz pausada e grave, própria de alguém que conhece os segredos da morte: “Uma perna, para o sepultamento cristão...” Com mãos firmes e palavras claras de alguém que sabe o que está fazendo, abriu seu livro de ofícios fúnebres, e começou: “O Senhor a deu; o Senhor a tirou. Bendito seja o nome do Senhor.  Queridos irmãos: estamos aqui reunidos para devolver à terra a perna de um nosso irmão ausente...” O coveiro, solene, escutava em silêncio as palavras sagradas que saíam da boca do reverendo e enchiam o espaço crepuscular do cemitério. Já as havia ouvido vezes incontáveis e quase as conhecia de cor. “E agora devolvemos esta perna à terra, até a ressurreição do último dia, enquanto a sua alma retorna a Deus, que a criou, para o descanso reservado aos justos”. Com tais palavras, fez o gesto sobejamente conhecido de todos os coveiros. Chegara a hora para o morto fosse baixado á sepultura. Finalmente, estava tudo terminado. “Eu podia jurar que enterro protestante era mais comprido. Este acabou depressa...”, disse o coveiro ao se despedir do reverendo. “De fato é mais comprido”, confessou o reverendo. E explicou: “Mas enterro de uma perna só pode ser um quatro do oficio inteiro. Quando vier o resto do corpo vou ler os outros três quartos do oficio que eu pulei...”.
Extraído da obra O sapo que queria ser príncipe - adolescência e juventude (Planeta, 2009), do psicanalista, educador, teólogo e escritor Rubem Alves (1933-2014). Veja mais aqui e aqui.
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