terça-feira, dezembro 18, 2018

ESTER NAOMI PERQUIN, KRZYSZTOF PENDERECKI, FERNANDA CHIECO, SIMPÓSIO DE LINGUÍSTICA & O FANTASMA DA MARIA FUMAÇA


O FANTASMA DA MARIA FUMAÇA - Imagem: Os catamoscas, da artista Fernanda Chieco. - Da primeira vez o menino nem sabia. Ouviu o apito: o que é isso? Na rodagem não havia ninguém pra dizer o que era. Outro assobio mais longo, olhos nos quatro cantos: tudo quieto, como sempre fora. Mais outro: que droga é nove? Foi quando viu lá detrás do morro, algo que vinha na maior barulhada. Danou-se! Será o fim do mundo? E mais vinha: vou daqui, vou praí, vou te pegar! Vou daqui praí, vou te pegar! Se assunte menino! Pernas pra que te quero. Lá vem a geringonça! Escondeu-se de nada mais vê-lo, só o desmantelo e o povo acenando. Ué, ninguém correu não? Depois que o troço passava, era que ia ver. É a Maria Fumaça, soube. E no segundo dia, não ficou não, as pernas tremiam: esse povo é tudo doido. Toda vez que apontava: Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Com o tempo achou de topar e lá vinha: Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Que venha! E veio, vinha virada na gota! Segura o pipoco, olha a coisa! Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Vixe! Tudo parecia se desmanchar com a zoada! Eita, lá vem mesmo, passou. Ufa! É só isso? Já foi. Então todo dia, ele ali esperava: cadê o estrupício? E na hora de todo dia, lá vinha danada: Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Nem mais tinha medo, até acenava pro condutor! Ê maquinista! E ele acenava sorrindo puxando o apito: piui, piui. Isso era todo dia da meninice, até quase rapaz. É que havia crescido e precisava ir pra cidade trabalhar. Passaram-se os anos, décadas esquecidas. Até um dia, muitas invernadas de nem se lembrar, deu cara com a locomotiva na exposição: é ela. Oxe, ela mesma! E era aquela que passava todo dia. Os olhos de homem feito, virou menino outra vez. O céu, o canto dos pássaros, os campos, a rodagem, o povo converseiro, a vida fagueira. Ô tempo bom! Ficou admirando aquilo no mais fundo do peito, lembrando o tempo em que ela passava fazendo tudo tremer ao redor: Ô coisa bonita de se vê. Alguém falou perto: Por muito tempo, ela ia e vinha, levando gente e coisas. Era. E mais confidenciou: E eu era o maquinista. Virou-se, não havia ninguém. Procurou ao redor, nem sinal. Arrodeou a locomotiva, não tinha um pé de gente. Meio assustado, resolveu ir embora. Aí, alguém chamou: Ei, menino, lembra quando eu passava apitando e você gritava na beira da rodagem do engenho? Voltou-se de um pulo e era ele: o maquinista sorridente que o acenava todos os dias na infância perdida. E danou-se a relatar o medo que dava a passagem do trem, até se acostumar com coisa tão medonha. Viu que falava sozinho e saiu à procura dele, até chegar à recepção: Você viu o maquinista? Ah, ele morreu há mais de vinte anos, mas sempre aparece pra quem se aproxima dela. Ah é? É. Então esperou encostado nela, nunca mais ele reapareceu, a infância ficou no coração. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS
Habituas-te à tua forma. Às paredes construídas de paciência, à altura do tecto cheio de manchas estranhas, ao chão pegajoso; imperturbável, a tua respiração sonda o espaço e retorna, as tuas mãos acham no escuro o interruptor, os cigarros, como te movimentares, habituas-te a fumar no escuro, quem vês mais nitidamente são os teus filhos, pedalam em bicicletas de pneus furados, pegam em ferramentas sem terem ninguém que lhes ensine, atiram aos pássaros errados, raspam as faces com a tua navalha embotada. Habituas-te. Debaixo dos cobertores a tua mulher revolve-se nua, sente-la próxima, estendida, em dimensão real, tentas tocar-lhe, habituas-te a um corpo que ninguém mais toca e tu mais e mais perdido à volta dela, difícil de consolar. Habituas-te à vista como a uma história, a quem ta leu naquela altura, quase adormecido, já naquela altura, muitos anos atrás, praticamente não compreendeste o significado, tal como te esqueceste de muitas coisas e habituas-te à imagem que fabricas depois: salteadores aparecem e cantam, há um homem com uma gadanha, uma mulher numa torre, de braços abertos como se estivesse à espera de cair, no entanto a espera dela é voluntária, ri-se. Habituas-te. A que em breve, corajosamente alguém virá socorrê-la, derrotar os ladrões e dar cabo do homem com a gadanha. Habituas-te ao impulso de a meter para dentro. A ficar hesitante ao princípio, em seguida, aos teus hábitos, a uma relação com a luz sobre os lençóis, à porta de ferro, à torneira que pinga, aos buracos dos cigarros nas cortinas, aos teus posters nus que se oferecem, ao rosto omnipresente que se debruça quando escurece, ao bafo da justiça, às conversas dos outros e à música ao longe, ao facto de tudo provocar estalidos, ao desaparecer vagaroso de um passo no corredor, a ter medo habituas-te, à tua nudez completa, sémen na mão, caracol que és. A matutar habituas-te, à inutilidade da respiração contínua habituas-te, ao constante cismar habituas-te.
Poema Dentro dos limites, extraído da obra De Namens de ander (Em Nome do Outro, 2009), da premiada poeta holandesa Ester Naomi Perquin, tradução de Maria Leonor Raven-Gomes.

A ARTE DE FERNANDA CHIECO
A arte da artista Fernanda Chieco.

AGENDA:
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&
Cidadania & meio ambiente: a Terra somos nós, George Sand, Akira Kurosawa, A ecosofia de Arne Naess, Roland Barthes, Paul Klee, Dora Maar, Transversalidade & Inclusão, Sonia Coutinho, Kitaro, Sainkho Namtchylak, Kevin MacLeod & Tibetan Meditation Music aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje curta na Rádio Tataritaritatá a música do compositor e maestro polonês Krzysztof Penderecki: Paradise Lost, Sympnony Christmas, Polymorphia & Song of Cherubim & muito mais nos mais de 2 milhões & 980 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui.