sexta-feira, setembro 28, 2018

FLORBELA ESPANCA, ÉRICO VERÍSSIMO, CAPRA, ŽIŽEK, AL JARREAU & KARIN LAMBRECHT


NEGÓCIO FECHADO - Imagem: arte da pintora, desenhista, gravadora e escultora Karin Lambrecht. - Quem na terrinha boa de Alagoianhanduba não conheceu Dudé Costa, aquele que recebeu de batismo o nome de Dermmevaldito Constantinácio Costa, figura do rol dos comerciantes de abastança, de longas eras, gordo para mais de duzentos quilos, numa estatura prá lá de disforme? O dito cujo era tido por todos como pirangueiro, espirituoso, mulherengo e de um senso de humor mordaz, capaz de desequilibrar qualquer sujeitinho metido a besta e de nariz empinado, dissolvendo com sua astúcia peculiar qualquer pronúncia doctilóquia da empáfia pedante alheia, deixando o interlocutor mais rasteiro que sombra de cobra. Sim, este era o Dudé Costa, homem de muitas loas e embustes jocosos, não dispensando de seu astuto tirocínio, uma resposta afiada bem no cachaço da inquirição atrevida, desbancando idiota, imbecil, retardado ou quejando que seja. Brincasse com ele não, o inclemente boi lambido saía de pavio apagado, diziam e com veemência para não se ter dúvida alguma. Lembro-me de tantas contadas, narradas, assoletradas, inventadas, relatadas e mangadas por amigos, inimigos, simpatizantes e prejudicados do ar intrépido do bonachão que, ao longo dos anos, de serem repetidas às bocas e ouvidos nas mais impróprias ocasiões, viraram folclore do lugar, tornando figura tão impar no seio de uma sociedade em formação e com o seu maldizente jeitão de desmoralizar qualquer folgado do tipo diferencial de Rural ou que só boca de sino. Assim era. O distinto obeso era um daqueles típicos personagens da província, de extrema riqueza lendária, possuidor de uma paranóia de que estava sendo roubado e ao redor de toda mendacidade universal, atribuindo-lhes acontecidos nunca dantes possíveis no trâmite da sua vida tão recheada de lorianismos quanto de esperteza. Mais que isto, Dudé Costa virou fonte do anedotário local como referência de austeridade, pirangagem, vivacidade e sabedoria: Enrolão comigo é na base do tacão!, repetia ele na maior gozação. Apesar de comerciante era um homem de bem, incapaz de ofender um pinto, principalmente se fosse dele. Mantinha ele um enorme armazém na praça principal da cidade, que era, ao mesmo tempo, um depósito entupido de produtos e mantimentos de toda espécie, armazenados do piso ao teto, de frente aos fundos, vendendo de tudo que se imaginasse existir. Se se quisesse alguma coisa, fosse lá que tinha o peso e o preço exato. Precisava-se disso, ele tinha; necessitava-se daquilo, prontinho na hora. O que mais? Isso, aquilo, daqueloutro, agora mesmo! Daquele ali, naqueloutro, mais desse, nesse, esse, tudo arrumado, embrulhado, empacotado, embalado, ajeitado em conformidade com o pedido referenciado. Fosse o que fosse, na hora! Pronto, exato. Medido e contado: pague-se. Ninguém sabia o verdadeiro nome da loja, diziam apenas do Armazém do Dudé. Sabiam apenas que aquele estabelecimento se estendia por quatro portas estreitas de frente, em cor desbotada entre paredes esburacadas que iam dar numa marquise que segurava uma placa com algumas palavras já indecifráveis no tempo. Eram quarenta metros de frente por uns duzentos de fundos, tudo dividido apenas por um balcão comprido, de um lado a outro, no interior do pavimento, para recepcionar os fregueses assíduos, requerentes das coisas mais inusitadas. E o resto? Tudo amontoado no interior do vão, numa desordem indescritível, não obstante encontrado à primeira procura, visto já saber onde se encontravam todas as encomendas requeridas. Verdade! Adivinhava mesmo o fi'o da peste. Decifrou-se depois de muito malabarismo intelectual que a inscrição grotesca da placa na sacada da loja, misturada a mofo, poeira e tinta velha, seria o nome jurídico da empresa em questão: Dermmevaldito Constantinácio Costa & Filhos & Cia. Ltda., nome este escolhido por ele próprio, com o objetivo de se inscrever no Cadastro Geral do Contribuinte do Ministério da Fazenda. Era a razão social esta escolhida depois de insistentes visitas de fiscais fazendários e, muitas e muitas noites de sono, dedicadas pelo contador Tabosa, encarregado da escrita daquele empreendimento comercial. Inclusive, quando se definiu tudo, Tabosa tirou três meses numas férias das boas, vez que se encontrava estressado com tanto puxa-e-encolhe do bonachão. Na placa ainda se via, apesar da dificuldade legítima imposta pelo desgaste, a figura de um jacaré, responsável pelo patrocínio do negócio e, ao mesmo tempo, representando o maior símbolo de prosperidade turística do município. É que na praça central, a prefeitura fez construir um tanque de proporções agigantadas para abiscoitar os munícipes, onde se mantinha a criação de um aligatorídeos. Era um jacaré-de-óculos, afeição maior das crianças e da população em geral, que possuía uma aresta transcendental, unindo, pela parte dianteira, as duas margens salientes das órbitas oculares, parecendo-se o aspecto de estar usando um piscinez. Apresentava o réptil fluvial uma cor escura no dorso meia que esverdeada com manchas amareladas e, apesar de manso, o crocolídeo, vez por outra, aprontava das suas, a exemplo do fato de jantar o braço de João Noé, o pé do filho de Abinadab dos bichos, o dedo de Natálicia Dulcemena, a caçola de Cremildita-fudedora, a vergonha de Terêncio, o escapulário da beata Prazeres do Céu, um disco de Taiguara do Jabão Campos, o velocípede de Nininhozinho, filho do tabelião do cartório único de notas, Osvaldinito, entre outros transtornos de somenos importância. O emidossário era o centro das atenções e todos os dias o povinho corria vexado, arrudiando o tanque o dia e a noite inteiros. Peiticavam o tempo todo em busca de um bote certeiro no atrevimento dos curiosos. E olhe que de vez em quando, o bicho abocanhava tudo e, algumas vezes, vomitava o indigesto longe. O nó cego todo é que ele gostava mesmo era de mastigar dureza, deixando um buliçoso aos prantos para felicidade geral da populaça. O espetáculo só era completo, quando ele atiçado tascava o revestrés respondendo com um fatídico susto de torar aço em destemidos que incomodavam. Tal movimentação na praça fazia com que o armazém do Dudé também prosperasse, já que alguns desavisados perdiam ou tinham por perdido alguma coisa e precisavam recorrer a ele objetivando fazer retornar o perdido, adquirindo algo similar. O próprio comerciante mantinha o réptil onicarnívoro de tudo com uma boa alimentação regada a carne de mamíferos, aves e insetos. Essa atitude do avarento era o símbolo da sua gratidão para com o animal, principalmente pelo lucro constante nos negócios. Um dia, o jacaré sumiu. Remexeram tudo, os cafundós de Judas, as entranhas das grutas, os deltas do rio, as botijas perdidas, os bolsos dos ricos, os arquivos da justiça, as curvas dos ventos, os limites dos mares, os pólos norte e sul, e nada. Ninguém sabia, ninguém viu; apenas arribou. Desaparecera. Mesmo assim, curiosamente, Dudé vendia de tudo; de agulha do que se pensasse à bomba do que se imaginasse. Tudo ali. Era só chegar, pedir ao proprietário que vivia sentado em frente a uma máquina registradora que repousava sobre um birôzinho pequeno do tamanho dela e de onde jamais se afastava, logo atendido exatamente nos conformes da solicitação. Uma coisa curiosa: nada de fiado, era imperiosa a necessidade de pagamento certo e líquido, a vista em papel ou moeda corrente no país, no exato momento da recepção do pedido. Cheque, nem vê, - num é dinheiro, dizia. Fiado! Ninguém nunca usara dessa modalidade de prestação, parcela, valsa, crediário ou consignações ao mão-de-figa. Esta atitude rendeu-lhe a chacota de judeu, de turco, de Tio Patinhas e de outras nominações que representassem o repúdio à sua sovinice, além de insinuações de que o desaparecimento do jacaré devia-se ao fato dele criar o sequestrado a modos pessoais, embaixo da sua cama. Rumor ainda hoje suspeitável. Porém, certa feita recebera Dudé o requerimento de um conterrâneo de infância, o Rudinaldo Veloso, por cartuchos de espingarda, um punhado de pólvora, uma faca peixeira de doze polegadas e vinte balas de revólver calibre trinta e oito, visto que o mesmo tencionava caçar por mata virgem, cabendo precaução, ao que foi atendido com exatidão, na ponta do lápis conferido, tirado a prova dos nove, e tudo certo. Ambos eram figuras de uma infância passada e de uma intimidade que não se reduzia aos limites da convivência. Durante o atendimento zombaram um do outro, trocaram insultos visando menosprezar as virtudes imodestas de cada um, pabulagens fúteis de dois aprontadores das maiores arteirices juvenis, quando, tantantantan, somado número por número em algarismos graúdos duma caligrafia esmerada num papel grosso de enrolar carne de boi, checado com o material já embrulhado, o proprietário, após o somatório competente, exibiu a conta e cobrou do requerente, a quantia exata de trinta e seis cruzeiros e cinquenta e quatro centavos. O visitante se fazendo por dissimulado requereu descontos o que levou negativa peremptória na lata. Com a posição determinada, teve então de sacar dos bolsos, isso depois de muita lengalenga, trinta e cinco cruzeiros que os fez jogar no balcão recolhendo o embrulho de suas compras, quando recebeu a recusa do gordão, dando início a mais inflamada das discussões. Faltava, portanto, para concluir a transação, o correspondente a um cruzeiro e cinquenta e quatro centavos, o que permitia a apreensão da mercadoria requisitada. Rudinaldo que era amigo de muitos anos do lojista, exigiu os descontos convenientes recebendo mais uma negativa veemente nas fuças: Se quer descontos, vá comprar na puta que o pariu!  Estranhou, de propósito, a avareza dele. Desde crianças, segundo relatos deles mesmos por mim presenciado, que investiram muita dedada no cheira-peido deles mesmos, muito cavalo-mago trocado, muita bronha coletiva pelos mesmos fundilhos da piniqueira alheia, avistado muitas bundas-ricas de beatas, das donas dos casarões, além de esbofeteado um bocado de puta na coréia, armadores que eram das maiores estripulias e agora, estavam ali, trocando ofensas. Conversa vai, conversa vem, Dudé cobrando o devido senão a mercadoria não arredaria dali um só centímetro. E a nossa amizade por quantia tão irrisória? Irrisória é a cabeça da minha rudia! Rudinaldo com o intuito de enrolar voltou a contar histórias da época de maloqueiros quando estupraram uma mocinha no escurinho atrás da prefeitura e ambos caíram às gargalhadas. Foram assacadas piadas, situações jocosas, soltas e faltava um cruzeiro e cinquenta e quatro centavos. O devedor abufelou-se e jogou, com raiva, no balcão, a cédula de um cruzeiro e já ía tomando o pacote, quando foi interpelado para depositar, às vistas do mão-fechada, as moedas equivalentes aos centavos devidos, senão sustaria a entrega da mercadoria: Sem isso, o embrulho não sai nem com ordem judicial! Parecia uma quebra-de-braços das ineivadas, os dois segurando o invólucro, um puxava do lado, o outro arrastava para dentro e, nesse vai-e-vem, o comprador exaltou-se, meteu dois dedos na algibeira, expondo as moedas relativas àquela quizília, contados e conferidos ali mesmo, alegando, aos esporros, que situação era aquela em que não poderia mais se dar ao luxo de uma amizade sadia onde alguns centavos determinavam a irredutibilidade numa transação o que, o gorducho, sentenciou que dali só sairia alguma coisa dele com pagamento certo e fim de papo: Vá cortar cu-de-cobra, Zé Bostinha! -, arremedou Dudé. Brigas como esta eram constantes e registradas nos anais da gaiatice popular. Pois assim era Dudé, extravagante no peso, exagerado em tudo e quando se falava de dinheiro perto dele, necas, nada de gastar! Até os filhos eram tratados na lei do cão. Para se ter idéia, com os empregados, somente meninos de dez anos de idade, ou até isso. Segundo ele, depois dos dez anos, os maloqueirinhos ficam sabidos e, menino sabido, é um perigo para qualquer negócio. Dos onze filhos apenas um gozava da simpatia dele. Dos outros, tudo para a puta-que-os-pariu, no relho, cabresto justo. Mas não dava folga para nenhum, tudo regrado na avareza. Sizenandilson, não, este era o único que Dudé botava pra ele simplesmente simpatia e nada de dinheiro. Isso porque Sizenandilson era obediente, fazia tudo o que o pai queria, pau-mandado mesmo. Numa certa tarde de sexta-feira, em meados de outubro, um representante comercial de certa multinacional, aportara no balcão do estabelecimento, objetivando uma entrevista com o possuidor daquela loja, Levado pela apresentação de produtos da mais nova extensão tecnológica, lançados, recentemente, no mercado, o visitante queria fechar negócios promissores para atender sua meta. Dudé que se encontrava tomando sua bicadinha de cachaça de cabeça, raiz de pau das boas, trazida do longínquo engenho Tumberado, aperitivo do bom, segundo o gosto dele, pois é só derramar a bicha no chão, bastando um risco de fósforo, para a danada pegar fogo, álcool puro. Inflamável. Isso era toda sexta-feira, bicadinha na mão, lorotas e peidos ao vento e muita pacutia. Chegasse quem chegasse depois do meio dia, Dudé só se interessava em atender a freguesia e mais ninguém. Nem Jesus Cristo descendo da cruz era atendido se quisesse conversar pela sua salvação. No meio de um gole, fora cientificado pelo filho da presença do profissional de vendas nas dependências do seu compartimento o que, de pronto, na ponta da língua, emitiu a resposta de que ele não queria ser incomodado, nem ver porra nenhuma de vendedor lhe amolando o saco para comprar merda nenhuma. O jovem teve de explicar ao genitor que, por educação, deveria recepcionar o visitador porque ele poderia apresentar algum objeto do interesse dele para venda no depósito, o que ele insistiu em não receber porque aquela não era hora nem dia de se comprar nada: Sexta-feira é dia da bicada e do raparigal, mais nada, porra! E o rapaz voltou a dizer pacientemente que não ficaria bem o distinto voltar sem ser recebido justo porque se tratava de uma negociação que poderia ser lucrativa com os possíveis dividendos em curto prazo e dinheiro não se despreza, nem um bom negócio: Ih! Nisso aí, tem cu no meio! - reclamou rejeitando a insistência. De colhão inchado, Dudé estalou, falasse em dinheiro seus olhos brilhavam. E já dava para notar os cifrões mexendo com a sua sensibilidade. Sizenandilson futucava o coração dele, sabia arrancar-lhe a compreensão. E já irado por ter de ceder aos argumentos do filho, vociferou que não tinha saco para tratar nada com ninguém naquela hora e que fosse ele, o representante para a casa do cacete voador, que não queria nada e parasse de atanazá-lo e se quisesse comprar que comprasse, e tomasse no cu do jeito que quisesse e vá prá porra! Depois de muita amolação e enchessão de saco, Dudé, enfim, mais a contragosto que compreensivo, concordou em levar um dedinho de prosa com o esconjurado intrometido que aparecia numa hora daquela para inflar seus colhões. Já no interior do armazém, o indistinto apresentou-se perfilado militarmente, com uma cotinência exagerada e abrindo o verbo, isso ao mesmo tempo em que expunha um catálogo por cima da máquina registradora, ficando em pé mesmo porque ali não existia cadeira ou acento para que os empregados não ficassem ociosos, e explicando o funcionamento e particularidades, vantagens e proveitos de cada máquina, motor, bomba, extrator, soldador, cantoneira, betoneira, diafragma, compressor, vergalhão, bigorna, propulsor e exaustor. Dudé sequer olhou para os catálogos, só com desdém no semblante do condenado. E eram catálogos, folders, prospectos, releases, instruções, lay out, bula, atlas, cartografias, plantas, revistas, gibis, alternativos, informativos, tomos, atas, opúsculos, livretos, traslados, certidões, termos, formulários, minutas, nada. Dudé nem-seu-silva-de-dar-bola. E tome pedras preciosas, cristalografias, cosméticos, perfumarias, boticários, esoterismos, bagulhos, bugigangas, dedais, agulhas, alfinetes, refrigeradores, condicionadores de ar, fogões, panelas, pitisqueiras, utensílios, abajús, lampiões, candeeiros, nada. E Dudé nem aí para quem pintou porca. Mas, instigado pela ironia, largou escárnio certeiro: Esse cabra parece mais o gênio de Aladim, vai ter coisa assim no raio que o parta! A certa altura da exposição incansável dele, Dudé interrompeu as amostras, sugerindo, ao intrometido, ingerir alguma bebida alcóolica, o que com a expressão de espanto, um riso largo no rosto, respondeu espalhafatosamente de forma afirmativa. Enquanto vasculhava os copos e a bebida, ele ainda asseverou na munganga: Eu queria era ver você trazer isso tudinho que me mostrou nas suas costas ôcas, desgraçado. Queria ver esse carregamento na cacunda de um corno! Héhéhé, que é isso seu Dudé? Todo castigo para corno é pouco! Dois copinhos miúdos na frente, encardidos, duas lapadinhas para se animar a conversa, ou seja, o monólogo e veio o ritual; ofereceu uma pro santo, benzeu-se e ingeriram juntos o queimor absoluto da aguardente. Tá cá gôta, essa arrepia até o retrato!, bafejou o estranho. Caretas, doses, o palavrório teve reinicio com explicações detalhadas sobre o funcionamento de bombas hidráulicas e da margem de lucro oferecida pelo produto, da rentabilidade prosperando no comércio, da exclusividade de exposição com uma expositora bem boazuda de shortinho persuadindo o infeliz do cliente a comprá-la já, uma promotora de merchandising escolhida a dedo por ele proprietário, quando o tinhoso arregalou os olhos e pensou: Mulher? Ah! Mulher, mulher sim, teve boceta no meio eu gosto! -, e conversa vai, conversa vem, já se falava de fossas, lajes, ripas, caibros, tijolos, telhas, cimento, areia, o homem se ingicando com tanta coisa do insistente, nada: Ô, seu home-da-cobra, quando é que vai voltá o conversê de boceta de novo, hem? Vamo, fale do que é bom, seu cabra! O sujeito ficou desconcertado com essa enquanto Dudé amolegava a pêia imaginando uma gostosa no seu colo: Tô já cumendo o cu desse veado besta! Cu de bêbo num tem dono, aviso logo! Duas novas lapadinhas e talagadas certeiras goela adentro, seguidas de novas explicações, fuxicos, miolo de pote, disparates, mentiras, arrazoados, imposturas, petas, potocas, fraudes, nada: Num tem foto de mulher nua nisso não? O inarredável vendedor sacou lá do fundo do baú um calendariozinho com aquelas maravilhosas pin-ups, do nego velho ficar zarolho com uma mulher arreganhada na foto. O inchado agarrou-se ao presente, deu uns beijos demorados nos arreganhos da fotografada, fazendo juras de amor. Quase que o visitante perde a cabeça com aquela baboseira. Mais duas talagadas, respirou fundo e tome explicações e mais tubos de PVC, satélites, sivam, corrupções, inox, chaleiras, alumínio, corda, ferro, tralhas, grampos, jamps, miséria, impeachment, juros, correções, siderurgia, leilões, metalurgia, privatizações, CPIs, ônibus, mixórdia, interesses, manchetes, dentifrícios, shoppings, pão, circo, eletrodomésticos, inflação, eletroeletrônicos, sonegações, sequestro, violência, baixaria, hipocrisia, revelações, notícias, calúnias, colmeias, latifúndios, desterrados, expatriados, cidadania, fome, solidariedade, utopias, liminares, injustiças, sentenças, reparações, desaparecidos, indenizações, cobranças, delinquências, inadimplências, crimes, impunidades, sequelas, aids, vitrines, vibriões, cauções, esbravejamentos, liquidações, intervenções, greves, mobilizações, gols, torturas, cacetes, modernidade, progresso, democracia e caralho a quatro, nada. Dudé só embromando, virando os olhos com as boazudas das folhas. Suor caindo no rosto, pescoço enxaguado, gravata afrouxada, cansaço nas pernas, duas lapadas, meio mundo de portfólios explicativos, nada. Dudé arremedando a leseira dele, cafungando com as páginas de suas gostosas, insinuando punhetar-se. Quando então aparece um cliente, o pesadão se levanta, derruba tudo e deixando o outro a falar sozinho. Tudo no chão, espalhado, agonia para arrumar tudo. Freguês atendido, mais duas doses da tirana, novas colocações persuadindo o velho, nenhuma resposta, nenhum sinal de interesse, todas as máquinas, assinaturas, pedidos, bíblias, santinhos, tipografias, cordões, relógios, securitários, consórcios, capitalizações, carnês, artesanatos, planos, orçamentos, previsões, planilhas, posições, relatórios, borderôs, listagens, projetos, procurações, autorizações, contratos, formulários, nada. Dudé sapecando enrolação. Já cansado e tentando empolgar o impassível comerciante, o ousado recebeu mais duas bicadinhas, ocasião que solicitou, delicadamente, da existência de qualquer tiragostinho para melhor digerir a quente, o que, riso cheio, vencedor e feliz, Dudé, ritualísticamente, pôs uma das mãos num dos seus bolsos longos joelho abaixo, remexeu, saculejou, trazendo, da empreitada, dois confeitinhos de mel de abelha no meio de um riso reprovador para satisfazer o desejo do corajoso: Taí, seu merda! O cara teve um troço, foi levado às pressas para uma emergência e nunca mais deu as caras por ali. Num disse! Demorasse mais, eu envergava o gogó desse fresco! Ora se. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do saudoso cantor estadunidense Al Jarreau (1940-2017): Live in Italy, Newport Jazz Festival, Live at Montreux Jazz Festival & Leverkusener Jazztage & muito mais nos mais de 2 milhões & 700 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.

DITOS & DESDITOS – [...] até mesmo a defesa neoconservadora de valores tradicionais aparece sob nova luz: como uma reação contrária ao desaparecimento de uma normatividade legal e ética, gradualmente substituída por regulações pragmáticas que coordenam os interesses particulares de grupos diferentes. Esta tese pode parecer paradoxal: não vivemos nós na era dos direitos humanos universais. [...] não vivemos nós na era dos direitos humanos universais, que se afirmam até mesmo contra a soberania estatal? O bombardeio da Iugoslávia pela OTAN não foi o primeiro caso de intervenção militar realizada em decorrência de pura preocupação normativa (ou, pelo menos, apresentando-se como assim realizada), sem referência a qualquer interesse político-econômico “patológico”. Essa nova normatividade emergente para os ‘direitos humanos’ é, entretanto, a forma em que aparece seu exato oposto. [...]. Trechos extraídos de Direitos humanos e ética perversa (Folha de S. Paulo, 1º/jul./2001), do filósofo, professor, teórico crítico e cientista social esloveno Slavoj Žižek. Veja mais aqui.

PERTENCENDO AO UNIVERSO - [...] No velho paradigma, acreditava-se que em qualquer sistema complexo a dinâmica do todo poderia ser compreendida a partir das propriedades das partes. No novo paradigma, a relação entre as partes e o todo é invertida. As propriedades das partes só podem ser entendidas a partir da dinâmica do todo. Em última análise, não há partes, em absoluto. Aquilo que chamamos de parte é meramente um padrão numa teia inseparável de relações. [...] No velho paradigma, acreditava-se que a soma total dos dogmas (todos, basicamente, de igual importância) acrescentava-se à verdade revelada. No novo paradigma, a relação entre as partes e o todo é invertida. O significado de cada dogma só pode ser entendido a partir da dinâmica das revelações como um todo. Em última análise, a revelação como processo constitui-se num bloco único. Os dogmas focalizam momentos particulares da auto manifestação de Deus na natureza, na história e na experiência humana. [...] No velho paradigma, pensava-se que havia estruturas fundamentais, e também que havia forças, e mecanismos por cujo intermédio estas interagiam, dando, dessa forma, nascimento ao processo. No novo paradigma, cada estrutura é vista como a manifestação de um processo subjacente. Toda a teia de relações é intrinsecamente dinâmica. No velho paradigma, pensava-se que havia um conjunto estático de verdades sobrenaturais que Deus pretendia nos revelar, mas o processo histórico pelo qual Deus as revelou foi visto como contingente e, portanto, de pouca importância. No novo paradigma, o processo dinâmico da história da salvação é, ele próprio, a grande verdade da auto manifestação de Deus. A revelação, como tal, é intrinsecamente dinâmica. No velho paradigma científico, acreditava-se que as descrições eram objetivas, isto é, independentes do observador humano e do processo de conhecimento. No novo paradigma, acredita-se que a epistemologia - a compreensão do processo de conhecimento - deve ser incluída explicitamente na descrição dos fenômenos naturais. A esta altura, não há consenso a respeito do que seria uma epistemologia adequada, mas há um consenso emergente de que a epistemologia terá de ser parte integrante de cada teoria científica. No velho paradigma teológico, presumia-se que os enunciados eram objetivos, isto é, independentes da pessoa que crê e do processo de conhecimento. No novo paradigma, sustenta-se que a reflexão sobre modos não-conceituais de conhecimento - intuitivos, afetivos, místicos - deve ser incluída explicitamente no discurso teológico. A esta altura, não há consenso quanto à proporção em que os modos de conhecimento conceituais e não-conceituais contribuem para o discurso teológico, mas há um consenso emergente de que modos de conhecimento não-conceituais constituem parte integrante essencial da teologia. A metáfora do conhecimento como construção - leis fundamentais, princípios fundamentais, blocos de construção fundamentais, etc. - tem sido usada na ciência e na filosofia ocidentais por milênios. Durante as mudanças de paradigma, sentiu-se que os alicerces do conhecimento estavam se desagregando. No novo paradigma, essa metáfora está sendo substituída pela metáfora da rede. Na medida em que percebemos a realidade como uma rede de relações, nossas descrições formam, igualmente, uma rede interconexa representando os fenômenos observados. Nessa rede, não haverá hierarquias nem alicerces. A mudança de construção para rede também implica o abandono da idéia de que a física é o ideal por cujo intermédio todas as outras ciências são modeladas e julgadas, e a principal fonte de metáforas para descrições científicas. A metáfora do conhecimento como construção - leis fundamentais, princípios fundamentais, blocos de construção fundamentais, etc. - tem sido usada em teologia por muitos séculos. Durante as mudanças de paradigma, sentiu-se que os alicerces da doutrina estavam si desagregando. No novo paradigma, essa metáfora está sendo substituída pela metáfora da rede. Na medida em que percebemos a realidade como uma rede de relações, nossos enunciados teológicos formam, igualmente, uma rede interconexa de diferentes perspectivas sobre a realidade transcendente. Nessa rede, cada perspectiva poderá produzir introspecções válidas e únicas no âmbito da verdade. A mudança de construção para rede também implica o abandono da idéia de um sistema monolítico de teologia como sendo aquilo que constitui a ligação para todos os que crêem e como fonte única para a doutrina autêntica. [...] No novo paradigma, se reconhece que todos os conceitos, todas as teorias e todas as descobertas são limitadas e aproximadas. A ciência nunca poderá fornecer uma compreensão completa e definitiva da realidade. Os cientistas não lidam com a verdade (no sentido de correspondência exata entre a descrição e os fenômenos descritos); eles lidam com descrições limitadas e aproximadas da realidade. [...]. Trechos extraídos da obra Pertencendo ao universo: explorações nas fronteiras da ciência e da espiritualidade (Cultrix, 1991), do físico e escritor Fritjof Capra. Veja mais aqui.

A NOITE – [...] Ele observava a mulher com um misto de admiração e inveja, enquanto ela, com um copo na mão, andava dum lado para outro, de grupo em grupo, soltando risadas, como se a dona da casa a tivesse encarregado de animar a festa. Com que facilidade fazia amigos, com que envolvente encanto tratava a todos! Era indiscutivelmente a pessoa mais popular do grupo. Ele, entretanto, não podia deixar de sentir um mal-estar quando a via cercada de homens. Sim, porque a consciência de suas falhas como marido o havia levado implacavelmente à conclusão, à certeza de que mais tarde ou mais cedo ela acabaria tendo um amante. Era evidente que os homens a admiravam e desejavam. Até mesmo os amigos mais íntimos do casal a cortejavam. Era natural que a considerassem presa fácil, pois decerto interpretabam mal sua fraqueza, sua alegria, sua familiaridade... Não poderia ela ser menos expansiva? Não tinha idade suficiente para saber que as pessoas são perversas, maliciam tudo? E que mania irritante, aquela de tocar sempre o interlocutor! Lá estava ela a dar palmadinhas na mão dum homem... [...] A música parou. Ela correu para o garçom que passava com uma bandeja, apanhou um copo e bebeu um gole largo. Três homens a cercaram. A orquestra rompeu uma rumba. Todos pareciam querer dançar com ela. disputavam-na. Um segurou-lhe o braço, outro enlaçou-lhe a cintura, o terceiro pôs-se a dançar na frente dela, rebolando despudoradamente as ancas. (Do fundo do casarão três velhas secas viam tudo e comentavam: “Bem como uma cadelinha cercada de cachorros”). [...]. Trechos extraídos da obra A noite (Globo, 1995), do escritor Érico Veríssimo (1905-1975). Veja mais aqui.

DOIS POEMASEU - Eu sou a que no mundo anda perdida, / Eu sou a que na vida não tem norte, / Sou a irmã do Sonho, e desta sorte / Sou a crucificada ... a dolorida ... / Sombra de névoa ténue e esvaecida, / E que o destino amargo, triste e forte, / Impele brutalmente para a morte! / Alma de luto sempre incompreendida! ... / Sou aquela que passa e ninguém vê ... / Sou a que chamam triste sem o ser ... / Sou a que chora sem saber porquê ... / Sou talvez a visão que Alguém sonhou, / Alguém que veio ao mundo pra me ver / E que nunca na vida me encontrou! DESEJO - Quero-te ao pé de mim na hora de morrer. / Quero, ao partir, levar-te, todo suavidade, / Ó doce olhar de sonho, ó vida dum viver / Amortalhado sempre à luz duma saudade! / Quero-te junto a mim quando o meu rosto branco / Se ungir da palidez sinistra do não ser, / E quero ainda, amor, no meu supremo arranco / Sentir junto ao meu seio teu coração bater! / Que seja a tua mão tão branda como a neve / Que feche o meu olhar numa carícia leve / Em doce perpassar de pétala de lis.../ Que seja a tua boca rubra como o sangue / Que feche a minha boca, a minha boca exangue!... / Ah, venha a morte já que eu morrerei feliz!... Poemas da poeta portuguesa Florbela Espanca (1894-1930). Veja mais aqui.

A ARTE DE KARIN LAMBRECHT
A arte da pintora, desenhista, gravadora e escultora Karin Lambrecht.

AGENDA
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Quem anda de noite que vê muita coisa, também cala a boca, Robert Louis Stevenson, Celso Furtado, J. Borges, Oswaldo Goeldi, Bóris Trindade, Amaro Matias Silva, Meio Ambiente & Educação, Beto Guedes, Miriam Ramos, Álvaro Henrique & Cris Braun aqui.
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Lingua falou, cu pagou!, Thiago de Mello, Hans Bellmer, Sérgio Augusto, Mario Sette, Ronildo Maia Leite, Sidney Wanderley, Ivan Lins, Viviane Hagner, Nando Lauria & Julya Cristal aqui.
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A segunda do Padre Cícero, Ralf Waldo Emerson, Monteiro Lobato, Sérgio Valle Duarte, Paulo Caldas, Generino Batista, Paulo Santos & Genésio Cavalcanti, Elomar Figueira de Mello, Tomoko Mukaiyama, Ricardo Silveira & Ná Ozzetti aqui.