TRÊS & UMA VIDA SÓ – Imagem: A Gordiuszi csomó III (2005), da pintora
francesa Françoise Gilot. - Numa bela manhã de 1552, nascia Erik no meio de um parto
complicado com a morte materna. Cresceu ouvindo as histórias dos Vikings. de
Odin, Thor, Gladius e a batalha de Lena, Nokken, Tallemaja, Draug, Näcks, de
muito fazer uso disso na sua formação adulta. Na busca pelo pai desconhecido, soube
do excêntrico imperador Rodolfo de Habsburgo, colecionador de anões e gigantes
em um regimento do seu exército. Não entendia nada de política e muito menos da
Contrarreforma e do calendário gregoriano, das andanças por Praga, o fascínio
por jogos e códigos, astrologia, alquimia e ciências ocultas. Achava muito
estranho o que diziam de um certo pintor Arcimboldo, em meio as conversas das
revoltas austríacas e húngaras, as questões dos otomanos na Áustria, Morávia e
Hungria, as passagens por Boêmia e a Silésia. Tal como a majestade, ele também
sofria de constantes ataques de melancolia e insanidade, principalmente quando
pôde ver uma vez de longe o livro gigante do Codex Gigas, a deslumbrante oitava maravilha do mundo, escrita por
um monge copista do mosteiro de Podlazice, dado por destruído durante as
guerras religiosas do século anterior e seu autor condenado a ser emparedado
vivo por crime grave e que, para salvar-se, pediu ajuda ao demo. Aos boticões, jamais
esqueceu a decoração das tintas vermelhas, azuis, amarelas e douradas do volume,
coisa que não lhe saía da cabeça, ambicionando roubá-lo e passando a sonhos
constantes, aguçados por sua curiosidade em saber das fórmulas mágicas contidas
naquela publicação imensa. Depois disso, pesadelos assustadores acometiam suas
noites dias afora. Tantos tormentos entre trogloditas, dinossauros e guerreiros
que povoavam suas desventuras oníricas, com perseguições, quedas dos
precipícios, ataques de animais, crucificações, monstros mitológicos, guerras
de caveiras e terrores diversos. As perseguições tanto ocorriam nos seus
adormecimentos noturnos, como nos devaneios em dia claro, ouvindo vozes do
além, ameaças de íncubos e súcubos ao derredor, bruxarias e premonições
malsinadas, amedrontando seu pobre ser amargurado, identificando qualquer
aproximação de alguém, como presença de terrível algoz para destruí-lo. Por
conta disso, viveu pelas sombras da existência. Além do mais, outra paixão angustiava
o peito entre ataques de sobrevivência e aluamentos: a filha bastarda do rei,
Carlota, marquesa da Áustria, a ponto de arquitetar estratagemas para
capturá-la e aprisioná-la para si. Essa paixão platônica o fez armar ardis
engenhosos, rondando todos os locais onde supunha ela pudesse estar presente, isso
até o dia que ela se casou com o príncipe de Cantecroix, deixando-o aos
desastres da existência, ora resgatando furioso e completamente embriagado a exaltar
a memória de Gustavo Vasa e assumindo o luteranismo evangélico, ora não menos
ébrio se bandeando pela defesa da igreja romana católica. Quis estupra-la e
nisso se determinou, dela não escapar, em pleno golpe, enlouqueceu na investida
até sucumbir maldito em 1612, vítima de um ataque desconhecido no meio dos seus
tantos pesadelos. Eis que numa tarde mormaçada de 1756, nascia uma criança
entre os Palawah,
nas inóspitas regiões australianas. Cresceu entre os aborígenes e os dingos,
cangurus, emas, bumerangues, lanças, bastões, o cultivo da terra, caça, pesca e
dialetos. Era silencioso e prestava atenção em tudo. Estava adolescente quando
ouviu das sucessivas histórias contadas sobre os migrantes indianos e das
ameaças dos portugueses que zanzaram pelas terras da Australis
Incógnita, do
navegador holandês Willem Janszoon e da Nova Holanda, das andanças de James Cook pela Nova Gales do Sul e
a colônia penal, de Abel Tasman na Tasmânia, e da invasão britânica de 1788.
Sabia apenas da noite e do dia, da fome e da caça, das coisas de sua tribo, matava
pra não morrer, savanas, o Tempo dos Sonhos, o didgeridoo, a Mãe Serpente, os
massacres dos colonos e a catequese, alijauaras, arandas, mundbaras, gurindjis,
pitjantjaras, pintubis, ualparis, uarramungas, ualpiris, mardus, o Uluru. No meio
disso teve o primeiro sonho estranho, em que vivia num mundo distante do seu,
como se fosse um dos invasores em terras estrangeiras. Eram sonhos monstruosos
que o perseguiram terrivelmente por toda vida, até sucumbir em 1816, vítima do
genocídio contra os aborígenes no processo de colonização britânica. Foi então que
na madrugada chuvosa de maio de 1960, nascia no nordeste brasileiro uma criança
de pais pobres, vítimas das secas sertanejas. Brincava do muito no terreiro
tórrido e ouvia histórias da Cumade Fulôsinha, Saci Pererê, bois e cavalos
dumas matas perdidas na imaginação. Cresceu com o Sol de janeiro a janeiro, em
plena ditadura militar, maria-vai-com-as-outras, a desconhecer da censura e
repressão. Aos dez anos teve um sonho estarrecedor: que era um menino órfão
galego no frio, perseguido por monstros e maldições. Ao amanhecer estava
amedrontado com tudo embaixo da cama. Chamou aos pais, nada encontraram, e ele
insistia tudo aquilo sonhado lá embaixo. No outro dia acordou com o pesadelo de
ser uma criança de cor perseguida por invasores brancos barbudos que matavam os
da sua tribo. Contou pros pais que disseram estar ele ouvindo muita Estória de
Trancoso. Não era, noite após noite, e precipícios, feras, bruxarias, uma
princesa linda que o levava para a morte, ataques de invasores, tiros,
mortandade, terrores. Estava adolescente púbere e no seu mundo de devaneios
macabros, para ele tanto faziam falar de Papai Noel, AI-5, a Mula sem cabeça, a
Burrinha do Padre, Iêiê, O meu pé de laranja lima, Moral e Cívica, Brasília e
FMI, Milagres, guerrilhas, Arena e MDB, tudo como se fosse Monteiro Lobato
contando coisas pros jovens que podiam ser tratados por homens feitos.
Misturava Araguaia com Homem Aranha, USTop com MR-8, Hippies e cristãos, Cuba
com as calças Lee, TFP com a tricampeonato de futebol, desemprego com
subversão, Guerra Fria com ligas camponesas, corrupção com levar vantagem em
tudo, promulgação da Constituição Federal com papo de ETs, AIDS com a economia
canavieira, dívida externa com papo furado, impeachment com a novela da Globo, Plano Real com a vinda de Jesus e por aí vai. Aos
trinta e quatro anos era ufano tetracampeão, falando de Emerson, Piquet e Senna
como se fossem os únicos heróis nacionais depois dos jogadores. Odiava coisas
de estudo ou escola, terminara o segundo grau a pulso na escolinha do arruado e
ali ficara como se fora o maior sabichão do planeta. Misturava lucro com
apurado, metia o pau nos comunistas e votava de acordo com a amizade nas
eleições. A partir dos trinta e cinco anos, os pesadelos horríveis passaram a
ser recorrentes, sem poder distinguir o que era a vida e o que era sonhado,
misturando-se por infernos dantescos e buscas de felicidade jamais alcançada,
até o dia em que teve a nítida experiência de que era Erick e não sabia que a
sua vida era assim porque tinha sido ele e reconhecera ser ele mesmo, ao passo
que tudo se transformava em si e já o inominável australiano a fugir e guerrear
contra os invasores intrépidos, e tudo inexplicável sem entender como podia ser
quem era nisso tudo, um nordestino brasileiro, enquanto um branco escandinavo e
um aborígene australiano eram nele uma coisa só e não sabia mais nada porque
mergulhando na trindade esqueceu existir para sempre. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja
mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do cantor e compositor Milton Nascimento: Planeta blue na terra do sol, Ângelus, Uma Travessia 50
Anos ao vivo & Pietá ao vivo & muito mais nos mais de 2 milhões de
acessos ao blog & nos 35
Anos de Arte Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui, aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA – [...] Três
coisas condicionam o rumo de vida de um ser humano entre o nascimento e a
morte; e com isto ele é triplicemente dependente de fatores situados aquém do
nascimento e além da morte. O corpo está sujeito às leis da hereditariedade. A
alma está sujeita ao destino criado pelo próprio ser humano; esse destino
criado pelo homem é denominado com a antiga palavra carma. E o espírito obedece
às leis da reencarnação, das repetidas vidas na Terra. Sendo assim, a relação
entre corpo, alma e espírito pode ser expressa da seguinte maneira: o
imperecível é o espírito; o nascimento e a morte imperam na corporalidade
segundo as leis do mundo físico; a vida anímica, sujeita ao destino, serve para
unir o espírito e a corporalidade durante uma vida terrena. Todos os demais
conhecimentos sobre a natureza do homem pressupõem o conhecimento dos ‘três
mundos’ a que ele pertence. [...]. Trecho extraído da obra Teosofia: introdução ao conhecimento
supra-sensível do mundo e do destino humano (Antroposófica, 2002), do
filósofo e educador austríaco Rudolf Steiner (1861-1925). Veja mais
aqui.
SOCIEDADE DOS INDIVÍDUOS – [...] O
controle comportamental desta ou daquela espécie existe sem dúvida em todas as
sociedades humanas. Mas aqui, em muitas sociedades ocidentais, há vários
séculos que esse controle é particularmente intensivo, complexo e difundido; e
o controle social está mais ligado do que nunca ao autocontrole do indivíduo.
Nas crianças, os impulsos instintivos, emocionais e mentais, assim como os
movimentos musculares e os comportamentos a que tudo isso as impele, ainda são
completamente inseparáveis. Elas agem como sentem. Falam como pensam. À medida
que vão crescendo, os impulsos elementares e espontâneos, de um lado, e a
descarga motora – os atos e comportamentos decorrentes desses impulsos –, de
outro, separam-se cada vez mais. Impulsos contrários, formados com base nas
experiências individuais, interpõem-se entre eles. [...] Uma trama delicadamente tecida de controles,
que abarca de modo bastante uniforme, não apenas algumas, mas todas as áreas da
existência humana, é instalada nos jovens desta ou daquela forma, e às vezes de
formas contrárias, como uma espécie de imunização, através do exemplo, das
palavras e atos dos adultos. E o que era, a princípio, um ditame social acaba
por tornar-se, principalmente por intermédio de pais e professores, uma segunda
natureza do indivíduo, conforme suas experiências particulares. [...] Considerados como
corpos, os indivíduos inseridos por toda vida em comunidades de parentesco
estreitamente unidas foram e são tão separados entre si quanto os membros das
sociedades nacionais complexas. O que emerge nestas últimas são o isolamento e
a encapsulação dos indivíduos em suas relações uns com os outros [...] à medida que prossegue essa mudança social,
as pessoas são mais e mais instadas a esconder umas das outras, ou até de si
mesmas, as funções corporais ou as manifestações e desejos instintivos antes
livremente expressos, ou que só eram refreados por medo das outras pessoas, de
tal maneira que normalmente se tornam inconscientes deles [...]. Trechos
extraídos da obra A sociedade dos indivíduos (Jorge Zahar, 1994), do sociólogo
alemão Norbert Elias (1897-1990). Veja mais aqui.
O SENHOR DAS MOSCAS - [...] O
fogo chegou nos coqueiros junto à praia e os devorou ruidosamente. Uma chama,
aparentemente isolada, torceu-se como um acrobata e lambeu as frondes das
palmeiras na plataforma. O céu estava negro. O oficial sorriu alegremente para
Ralph. — Vimos sua fumaça. O que estavam fazendo? Uma guerra ou algo assim?
Ralph assentiu. O oficial examinou o pequeno espantalho à sua frente. O menino
precisava de um banho, de um corte de cabelo, de uma assoada de nariz e de uma
boa quantidade de unguento. — Ninguém morreu, espero. Há algum cadáver? — Só
dois. E sumiram. O oficial inclinou-se para baixo e olhou bem de perto para
Ralph. — Dois? Assassinados? Ralph concordou com um gesto. Atrás dele, toda a
ilha estremecia em chamas. O oficial sabia, por ofício, quando as pessoas falavam
a verdade. [...] Por
um instante, vislumbrou uma imagem fugaz do estranho encanto que outrora
dominara as praias. Mas a ilha estava carbonizada como lenha usada... Simon
morrera... e Jack havia... As lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces e soluços
sacudiram-no. Pela primeira vez, desde que chegara à ilha, entregou-se ao
choro; grandes e convulsivos espasmos de tristeza pareciam torcer todo o seu
corpo. Sua voz elevou-se sob a fumaça negra diante dos restos incendiados da
ilha; contagiados por aquela emoção, os outros meninos começaram a tremer e a
soluçar. No meio deles, com o corpo sujo, cabelo emaranhado e nariz escorrendo,
Ralph chorou pelo fim da inocência, pela escuridão do coração humano e pela
queda no ar do verdadeiro e sábio amigo chamado Porquinho. O oficial, cercado
por todo esse ruído, ficou emocionado e um pouco embaraçado. Virou-se para dar
tempo a que se recuperassem. Esperou, deixando os olhos fixos no garboso
cruzador a distância. Trechos extraídos do romance O senhor das moscas (Nova Fronteira,
2011), do escritor e dramaturgo William
Golding (1911-1993).
DOIS POEMAS – I - Pode-se com os olhos fechados viver, / Não desejando nem mesmo a
sorte / E para sempre adeus ao céu dizer. / E entender, que ao redor há apenas
morte. / Pode-se viver, em silêncio esfriando, / Não contando os minutos
passados, / Como vive a floresta de outono, afinando, / Como vivem os sonhos
apagados. / Pode-se todo o amor renunciar, / Pode-se tudo para sempre deixar de
benquerer. / Mas não pode para o passado esfriar, / Mas não pode sobre o
passado esquecer! – VENTO – A natureza é um templo onde vivos pilares / Deixam
filtrar não raro insólitos enredos; / O homem o cruza em meio a um bosque de
segredos / Que ali o espreitam com seus olhos familiares. / Como ecos longos
que à distância se matizam / Numa vertiginosa e lúgubre unidade, / Tão vasta
quanto a noite e quanto a claridade, / Os sons, as cores e os perfumes se
harmonizam. / Há aromas frescos como a carne dos infantes, / Doces como o oboé,
verdes como a campina, / E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes, / Com a
fluidez daquilo que jamais termina, / Como o almíscar, o incenso e as resinas
do Oriente, / Que a glória exaltam dos sentidos e da mente. / Viver do presente
eu não posso, / Amo o turbamento dos meus sonhos. Poemas do poeta russo Konstantin Balmont (1867-1942).
O GOSTO DA CEREJA
O
premiado filme O gosto de cereja (Palma de Ouro de Cannes, 1997), do também do
premiado cineasta, poeta, roteirista, produtor e fotógrafo iraniano Abbas
Kiarostami, conta a história de um homem de classe média que habita em
Teerã e planeja um suicídio. Procura alguém para ajudá-lo a cavar um túmulo nas
montanhas, todos se recusam e, apenas um velho taxidermista turco concorda em ajudá-lo.
Porém, o contratado tenta convencê-lo a desistir da ideia, alegando que o sabor
da cereja havia impedido que ele próprio cometesse um suicídio. Recomendo. Veja
mais aqui.
O VI Seminário
da Educação Brasileira & muito mais na Agenda
aqui.
&
A arte da pintora francesa Françoise Gilot.
&
A Previdência Social é superavitária!, O socialismo de Bernard Shaw, Casablanca
de Umberto Eco, a música do Quarteto
Camargo Guarnieri, a arte de Judy Burgarella & Eneida Paes Lima aqui.
&
A quadrilha da paixão, A era do vazio de Gilles Lipovetsky, o cinema de Fernando Arrabal, Anouk Ferjac & Mariangela
Melato; o teatro de Samir
Yazbek, a fotografia de Nair
Benedicto, a arte de Roland Topor & Luciah Lopez
aqui.
APOIO CULTURAL: SEMAFIL
Semafil Livros nas faculdades Estácio de Carapicuíba e Anhanguera de São
Paulo. Organização do Silvinha Historiador, em São Paulo.