EU QUERO A MINHA MÃE – Rudildo,
o Ridú das falas, nasceu por aí, ninguém sabe como. Fora abrigado pela bondosa
viúva Lidú – a que todo mundo queria por mãe, mas não só quis ele por filho, vez
que seu finado marido deixara-lhe um casarão em vasto terreno, propiciando que
a mesma convivesse com numerosa matilha arrodeada de toda espécie de bicho,
desde um saci pererê obsceno que vivia de provocar um jacaré que engordava só
papando os outros animais do seu zoológico particular. O criatório tinha de
tudo. Ainda meninote ele ganhou um radinho de pilha, do qual tornou-se
inseparável pro resto da vida. Assim vivia Ridú na fauna, entre ninhadas,
colmeias, varas, o escambau e flora. Bem cuidado, melhor educado, alimentava o
sonho de quando crescer tornar-se locutor. Isto até o dia que pôs as vistas na
Lucrecilda, a Cidinha das gaitadas, de ficar roxo de paixão. Todos os dias a
presenteava com flores, filhotes, frutos, brebotes. Mas quando a viu se bandear
prum dos galalaus da cidade, deu um pinote e, com o coração saindo pela boca,
declarou-se disposto a desposá-la. Qual não foi a sua grande decepção na vida:
Sai pra lá, urubu! Deu um carreirão e abrigou-se entre os seios volumosos da
mãe noitedias, diasnoites. Sua derrocada só se aplacou quando a mãe deu-lhe um
novo rádio de pilha, dos grandes, que ele colocava no ombro para encantar suas
ouças entre a bicharada. Pra escola nunca mais voltou. Os dias se passaram e a
filantropa mãe bateu as botas. Desesperançado saiu errante a catar gravetos,
bitucas de cigarros, coisas imprestáveis e reunir tudo num cantinho do quintal,
até ser despejado de vez e jogado ao relento. Desde esse dia passou a guiar um
carro imaginário ruacimabaixo, como se fosse um sistema de som irradiando programação
radiofônica dantanho, comerciais de empresas que nem mais existiam, anunciando
músicas do tempo do ronca, noticiando eventos de décadas e, invariavelmente,
recolhendo tranqueiras achadas para levar para ninguém sabe onde. Um dia lá,
estava eu na esquina, quando ele se aproximou, alheio a tudo. Fitou-me,
entregou-me um saco de pedras e sorriu. Como vai, Ridu? Vi-lhe os olhos rasos d’água
e soluçante: Quero a minha mãe!... © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados.
DITOS & DESDITOS - A liberdade não é um atributo individual,
ela é uma realização social própria a sociedades marcadas pela igualdade e pela
indiferença social às diferenças antropológicas. Não há indivíduos livres em
uma sociedade não-livre... Contra um processo econômico de pauperização social
e concentração de riquezas, exigência de uma reinvenção democrática que nos
leve para além dos limites da democracia liberal... A democracia não conhece
meio-termo, seu igualitarismo deve ser absoluto... Pensamento do filósofo, professor,
escritor e músico chileno Vladimir Safatle, autor de livros como Um limite tenso (Unesp, 2003), O tempo, o objeto e o
avesso (Autêntica, 2004), Sobre arte e psicanálise (Escuta, 2006), A
Paixão do Negativo (Unesp, 2006), Ensaios sobre música e filosofia (Humanitas,
2007), O que resta da ditadura (Boitempo, 2010), entre outros.
ALGUÉM FALOU: Minhas crenças eram de que homens e mulheres
devem estar juntos nessa luta, e não podemos proteger nosso país apenas com uma
ala… Agora nossas mulheres são as líderes, não apenas líderes políticas, mas
também líderes que lideram em todas as frentes e fazem parte dos principais
líderes da revolução. E, portanto, você pode ver que os governantes têm medo
das mulheres... Fomos contra a opressão e então elevamos nossa luta para exigir
nossos direitos. Iremos contra todos os ditadores para que possamos espalhar a
paz... Pensamento da ativista e jornalista iemenita Tawakel Karman, prêmio Nobel da Paz de 2011.
MEU PAÍS É TEU – [...]
Se somos incomodados por posses, não podemos realmente
viver nem de fora nem de dentro; nós somos a posse de nossas posses. [...] Por que se apoderar de bens como ladrões, ou dividi-los como
socialistas, quando você pode ignorá-los como sábios: para que você pertença a
tudo e tudo seja seu, inclusive você mesmo. [...]. Trechos extraídos da obra My Country 'tis of Thee (ADAM, 1962), da
escritora e dramaturga estadunidense Natalie Clifford Barney (1876-1972).
EXPLICAÇÃO – I - Eu sei que minhas Deusas e sei que meus Monstros \ sempre te
parecerão sensuais e bárbaros \ Eu sei que você gostaria de ver reinar em
minhas mãos \ a medida imutável dos elos eternos.\ Você esquece que eu sou dos
trópicos, e de mais longe ainda\ você esquece tudo isso, que de mais longe
vindo\ se mistura ainda nas minhas veias,\ ao sangue queimado do Astro
equatorial,\ o orgulho bravio do Espanhol vencido \ raptando sua vitória ao
Mouro perdido de êxtase; \ – a aventura portuguesa temerário destino,\ Abdicando
do ouro o poder no braço de Moema\ – a arrogância holandesa, a inquietude
irlandesa, \ uma e outra submissas \ ao imperioso amor, que dispõe dos homens. II
- Eu sou o meio-dia pleno da noite tropical.\ Tudo é calma e esplendor, nenhuma
folha se move \ Nenhuma falha rompe a eternidade do dia,\ Um mesmo torpor,
angustiante e mudo, \ das cores do pássaro ao odor da flor\ tece o mesmo sonho.\
E o jaguar todo lânguido de doçura\ cede à embriaguez do sono\ Só o transe
efêmero de uma cigarra\ Corta a morna espessura do silêncio macio. III - De
repente o espaço é de chumbo. \ Palpitante e bravio desperta a floresta \ Num
arrepio de espera e uma onda de felicidade \ e de repente sobe um sopro de
loucura \ e eis o vento correndo em
ativa frenesia,\ o vento que canta e uiva,\ a grande canção de força e de
desejo,\ o vento que ruge e ralha, transbordante\ e desesperado grita \seu
monstruoso amor num tumulto ofegante.\ E durante longas horas as folhas \ e as
árvores se entregam\ se afastam e se entregam, se afastam e se entregam,\ até o
bom cansaço da união vivida…\ Então, tudo volta à tranquilidade primeira\ reengendrada
dolorosamente\ na conquista da plenitude \ E a vida, inocente saciada,\ a terra fresca descansa,\ a terra novamente Virgem
e misteriosa e fechada\ como aquela que a Vida não ousaria atormentar. Poema
da escultora, gravurista, pintora, escritora e musicista Maria Martins (1894-1973).
Veja mais aqui.
UM SONETO: A CAROLINA – Querida, ao pé do leito derradeiro \ Em que
descansas dessa longa vida, \ Aqui venho e virei, pobre querida, \ Trazer-te o
coração do companheiro. \ Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro \ Que, a despeito
de toda humana lida, \ Fez a nossa existência apetecida \ E num recanto pôs um
mundo inteiro. \ Trago-te flores, - restos arrancados \ Da terra que nos viu
passar unidos \ E ora mortos nos deixa separados. \ Que eu, se tenho nos olhos
malferidos \ Pensamentos de vida formulados, \ São pensamentos idos e vividos.
Poema extraído da obra Relíquias de Casa
Velha (1906), do escritor Machado de
Assis (1839-1908), dedicado à sua esposa Carolina Augusta Xavier de Novaes,
quando do seu falecimento, registrando o autor numa carta: "Foi-se a
melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo”. Veja mais aqui e aqui.
DEMÓCRITO DE ABDERA (430-370 Ac) - Demócrito era natural da cidade portuária de Abdera, na costa norte do mar Egeu. Embora sejam raros os registros sobre sua vida, é certo ter sido reconhecido como um dos pensadores mais cultos de seu tempo.
Existem registros que o jovem Demócrito costumava sair para o campo, dirigindo-se aos sepulcros, onde se demorava em suas meditações. Talvez a presença da morte lhe estimulasse o raciocínio sobre os problemas da vida, mas o certo é que os sepulcros construídos no campo eram, naquele tempo, lugares quase sempre aprazíveis, não raro apresentados edifícios acolhedores.
Demócrito, segundo informa Diógenes Laércio, teria vivido até aos cento e nove anos. Boa prova da validade da sua doutrina ética, ou pelo menos do seu bom humor.
O filósofo que vivia rindo das tolices humanas conservou-se jovem por muito tempo. E assim mesmo, quando a morte chegou, ainda lhe parece importuna. Sua grande experiência do mundo e da vida permitiu-lhe encontrar um jeito de hospedar a morte, o que fez por nada menos de três dias.
Demócrito, que apesar da velhice excessiva não devia ter perdido a agilidade mental, percebeu o que se passava e quis ajudar a irmã. Não acreditava nos deuses, ou pelo menos parecia não acreditar. Mas a morte conseguiu arrebata-lo da terra, para o mistério dos átomos de fogo, mais ou menos a 361 a.C.
Laércio acrescenta: "...terminou a sua vida sem nenhuma dor...". Belo final para uma vida de filósofo, que descobria o segredo da felicidade na paz interior! Conta-se ainda que o seu enterro foi custeado pelo povo.
Demócrito, partindo da generalidade física de Leucipo, restabelecia a importância do particular. Foi ele, sem dúvida, quem abriu caminho para a revolução particularista de Francis Bacon, e a oposição do método indutivo da ciência ao método dedutivo da filosofia aristotélica é uma espécie de refração, no tempo, da oposição histórica entre Platão e Demócrito, na era grega.
Foi um pensador brilhante e autor da teoria de que o Universo é formado por partículas indivisíveis: os átomos. Concordava com seus antecessores num ponto: as transformações que se podiam observar na natureza não significavam que algo realmente se transformava. Então, presumiu que todas as coisas eram constituídas por uma infinidade de pedrinhas, invisíveis, cada uma delas sendo eterna e imutável. A estas unidades mínimas Demócrito deu o nome de átomos. A palavra átomo significa indivisível, para ele era muito importante estabelecer que as unidades constituintes de todas as coisas não podiam ser divididas em unidades ainda menores. Porque se os átomos se desintegrassem e pudesse se dividir em unidades ainda menores, a natureza se diluiria totalmente. Além disso, as pedrinhas constituintes da natureza tinham que ser eternas, pois nada pode surgir do nada. Os átomos eram unidades firmes e sólidas, só não podiam ser iguais, pois se fossem, não haveria explicação para o fato deles se combinarem para formar várias coisas.
Demócrito achava que existia na natureza uma infinidade de átomos diferentes, e por isso é que eles podiam ser combinados para dar origem a corpos mais diversos. Ele não acreditava numa força ou numa inteligência que pudessem intervir nos processos naturais, só existia os átomos e o vácuo para ele e por acreditar no material o chama de materialista.
Demócrito acreditava que tudo que acontece tem uma causa natural, uma causa que é inerente à própria coisa. Para ele, a teoria atômica explicava também as percepções sensoriais, acreditava que alma era composta por alguns átomos particularmente arredondados e lisos, os "átomos da alma."
Por volta de 400 anos a.C. filósofo grego Demócrito sugeriu que a matéria não é contínua, isto é, ela é feita minúscula partículas indivisíveis, conforme já visto. Essas partículas foram chamadas de átomos e postulou que todas as variedades de matéria resultam da combinação de átomos de quatro elementos: terra, ar, fogo e água.
Demócrito baseou seu modelo na intuição e na lógica. No entanto foi rejeitado por um dos maiores lógicos de todos os tempos, o filósofo Aristóteles. Este reviveu e fortaleceu o modelo de matéria contínua, ou seja, a matéria como "um inteiro". Os argumentos de Aristóteles permaneceram até a renascença.
A verdade é que Demócrito, esquecido, subestimado, negligenciado ao longo dos séculos, foi considerado na antiguidade o êmulo de Platão. Essa situação se torna clara quando verifica-se que Demócrito é o físico por excelência, o continuador dos antigos fisiocratas, enquanto Platão é o moralista socrático.
De suas numerosas obras, só restam fragmentos. Entre os séculos III e V da era atual, provavelmente, os seus livros desapareceram. Mais tarde, surgiram escritos que lhe foram atribuídos, como a correspondência apócrifa entre ele e Hipócrates, rejeitados pela análise crítica. As primeiras duas tetralogias são de ordem moral, começando por um livro sobre Pitágoras, o que faz pensar na existência não só de oposição, mas também de semelhança entre o filósofo atômico e seu rival Platão. Somente depois de oito obras morais, entre as quais se vê uma sobre a bondade e a virtude, e um possível tratado Da Alma, que lhe daria precedência sobre Aristóteles, no assunto, é que Trasilo enfileira as suas obras físicas. Estas começam por um titulo de tratado geral do Universo, o Grande Diacosmos, ou Grande Sistema Cósmico, que Teofrasto entende ser de Leucipo. A seguir, vem o Pequeno Diacosmos, ou Pequeno Sistema Cósmico, hoje reconhecido como de autenticidade inegável. Depois, uma Cosmografia, um livro sobre Os Planêtas e outro que se intitula Da Natureza. Entre os livros morais encontra-se uma Tritogenia, que, como indica o titulo, é uma reafirmação pitagórica do poder genésico do numero três, pois, segundo informa Laércio, é toda uma doutrina tríptica sobre a origem das "coisas humanas". Entre os de matemática, encontra-se um sobre Os Números, e entre os de música, um sobre O Ritmo e a Harmonia, ambos lembrando ainda o Pitagorismo. Laércio lhe atribuiu também um livro Sobre as Letras Santas na Babilônia, e outro sobre a língua caldéia e frigia, o que viria confirmar as notícias de suas viagens pela Mesopotâmia. Um livro intitulado Da Tranqüilidade da Alma parece antecipar a doutrina estóica.
O Demócrito-escritor invade todos os terrenos da indagação humana do seu tempo. Suas obras abrangem todo o conhecimento de então, indo da Filosofia aos problemas da Medicina e Matemática, da Arte aos estudos lingüísticos, da Física à Religião e da Metafísica à Psicologia. Aristóteles abeberou-se fartamente nas fontes de Demócrito, para elaborar suas obras de Ciência Natural. Escrevendo em jônico, o abderita revelava um estilo cantante e límpido, em que os antigos admiravam, como diz Windelband: "a clareza da exposição e o vigor sugestivo de sua vibrante linguagem".
Curiosa a semelhança da posição de Demócrito em relação a Leucipo, com a de Platão em relação a Sócrates. Ao que parece, Leucipo não escreveu obra alguma. Deve ter sido um filósofo de tipo socrático, que se limitava a meditar e expor verbalmente a sua doutrina. O Grande Diacosmos, que Teofrasto se lembrou de atribuir a Leucipo, deve ser a exposição do pensamento do mestre, feita pelo discípulo. Equivale, assim, às exposições da doutrina de Sócrates por Platão. E o Pequeno Diacosmos seria, no caso, a primeira tentativa de exposição doutrinária do próprio Demócrito, já se libertando de Leucipo, para construir a sua doutrina autônoma. Assim, o pai da ilustração grega perfilha ao mesmo tempo a linha socrática e a democrática, marcando-as fortemente com o seu relativismo, que em Platão conduz ao abstrato, e em Demócrito, ao concreto.
As características do pensamento de Demócrito: Gosto pela ciência. Aitíai. Viagens. Clareza. Aversão ao bizarro. Simplicidade do método. Arrojo poético (poesia do atomismo). Sentimento de um progresso poderoso. Fé absoluta em seu sistema. O mal excluído de seu sistema. Paz de espírito, resultado do estudo cientifico. Pitágoras. Inquietações míticas. Racionalismo. Inquietações morais. Ascetismo.
Duas vias, portanto, segue o pensamento grego, a partir da teoria protagórica da percepção: a de Platão, que através do conceito socrático volta ao subjetivo, relegando a um plano secundário o mundo das coisas ou dos objetos; e a de Demócrito, que através do átomo de Leucipo leva ao objetivo, procurando resolver no plano físico a velha contradição entre o ser e o não-ser, o ente e a coisa, o on e a physis. E a de Demócrito, que "atomiza" o mundo e lhe confere a mobilidade extrema do fogo heraclitiano. Esse deus é o próprio Demócrito. Um deus sorridente, afável, irônico, que vive rindo da tolice humana, e de quem a tolice se vingará, por muito tempo, relegando-o ao esquecimento. Demócrito pertence a uma época de renovação, a época do iluminismo grego. Vê-se, pois, que Demócrito é como um Voltaire grego, menos ferino, talvez, e mais compreensivo. Seu saber é tão vasto que, em toda a Antiguidade, só poderá ser comparado ao de Aristóteles. Pode, pois, jogar livremente com os dados da sabedoria do seu tempo, para realizar a sua obra. E é por isso que de suas mãos poderosas, que esmagaram a realidade, pulverizaram o mundo, atomizaram a homogeneidade eleática do Ser, um novo cosmos vai surgir. Como um demiurgo alegre, Demócrito vai tomar a matéria cósmica e plasmar com ela um novo Universo.
Observa-se também que com Leucipo, aprendera Demócrito a instabilidade das coisas e dos seres, cuja aparência estável se reduz, na realidade, a um jogo de pequeninas partículas no vácuo. Heráclito e os eleatas confirmavam essa visão instável. Mas Protágoras lhe ensinara que a percepção das coisas se faz através do movimento. Aquilo que Leucipo e os eleatas não podiam explicar, Demócrito explicará, com a teoria de Protágoras. As coisas, formadas de átomos em movimento, adquirem qualidades diversas, que não pertencem a elas mesmas, mas resultam do processo de perceber. A construção atômica do mundo, como se vê, é tipicamente mecânica. Nada acontece, nem existe, sem o entrechoque dos átomos. Entretanto, estes não se movem pela vontade dos deuses, mas por uma determinação intrínseca, de sua própria natureza. Move-se por necessidade. Porque não podem deixar de mover-se sem deixar de existir, uma vez que o movimento é a sua própria existência. Este um momento materialista do pensamento grego. O Ser atomizado transformou-se em matéria, e esta não tem mais vontade, só tem necessidade. Excluída a vontade de ordem universal, exilados os deuses, resta apenas um universo mecânico. Esse é o universo que surge da análise de Demócrito. Um frio e imenso universo atômico, onde só existe uma lei, que é a necessidade. À maneira dos anatomistas modernos, que depois de dissecarem um cadáver se admiram de não terem encontrado a alma, Demócrito, depois de reduzir o universo a uma poeira atômica, também se espanta com o vazio cósmico. Os átomos, que variam de tamanho e de forma, ajustam-se de acordo com essas variedades. Os mais grosseiros se reúnem no centro da massa, movendo-se com mais lentidão e formando o núcleo pesado da matéria. Os mais finos e sutis se reúnem ao redor, formando uma capa, uma espécie de polpa. Esse conjunto se mantém em movimento, e da sua rotação constante surge na periferia uma espécie de casca.
A teoria dialética da modificação das coisas pela reação dos sentidos enfraquece o materialismo de Demócrito. O subjetivismo impõe-se de maneira decisiva na sua concepção do mundo. Por outro lado, o filósofo admitia um conhecimento da realidade absoluta, por meio da intelecção, refutando assim o relativismo cético de Protágoras. Pela sensação, o Homem obtinha o conhecimento relativo da realidade, sempre imperfeito e muitas vezes pessoal; mas, pela intelecção, e portanto pelo pensamento, podia obter o conhecimento completo e perfeito.
No conhecimento relativo, tem-se apenas os fantasmas das coisas, ou a aparência dos torvelinhos atômicos; no conhecimento absoluto, tem-se a realidade espacial e atômica, a visão perfeita do espaço cruzado pelo átomo, e das aglomerações destes. Basta dizer que enquanto Protágoras sustentava a impossibilidade do conhecimento absoluto, reduzindo o conhecimento humano aos limites sensoriais, Demócrito admitia aquilo que hoje é chamado, em parapsicologia, de percepção extra-sensória. Com isso, parece lícito dizer que Demócrito foi antes racionalista que materialista, antecipado historicamente a posição cartesiana, na procura da verdade através do cogito. Sua teoria da percepção, ou melhor, sua gnosiologia, pois na realidade se trata de todo o mecanismo do conhecimento, não deixa dúvidas a respeito dessa posição. Basta analisar o problema dos fantasmas, no processo da percepção, para compreender que Demócrito superou o materialismo de Protágoras, abrindo perspectivas para uma compreensão mais ampla do mundo e da vida. Os fantasmas são apenas as imagens das coisas, as aparências apreendidas pela percepção. Essas imagens, como já visto, são produzidas pelos movimentos atômicos, e por sua vez modificadas pelas reações dos sentidos, que nada mais são, também, do que movimentos atômicos. Mas, para Demócrito, tudo se constitui de átomos, de maneira que o próprio pensamento não é outra coisa senão movimento atômico. Daí a firmeza com que os materialistas modernos o classificam na sua grei. Entretanto, há mais complexidade do que lhes parece, na proposição de Demócrito. Acontece, porém, que os fantasmas da intelecção constituem-se de átomos sutis, os chamados átomos de fogo, que estão na essência e na origem das coisas. São átomos que os sentidos físicos, demasiados grosseiro, não podem captar. Átomos e fantasmas, portanto, que escapam a percepção sensorial, mas que são captados pela intelecção, de maneira extra-sensória. Curioso que nos dias atuais, ao mesmo tempo em que a doutrina atômica de Demócrito se confirma pelas experiências físicas, sua teoria da percepção extra-sensorial é também confirmada pelas experiências parapsicológicas, realizadas com todo o rigor cientifico. E esclarece: "Ora, se Demócrito considerava que o pensamento é o movimento mais sutil dos átomos de fogo, compreende-se que necessariamente considerava também que os fantasmas que o provocam são mais sutis, ou seja, aqueles em que se reproduz a verdadeira configuração atômica das coisas. O pensamento é, pois, a intuição direta da mais primorosa estruturação da realidade: a teoria atômica. Na grande massa dos homens, esses sutilíssimos fantasmas passam inadvertidos, em virtude das rudes e violentas impressões que se produzem nos órgãos sensoriais; mas o sábio é sensível a eles, embora necessita, para apreende-los, afastar a sua atenção dos sentidos".
O materialismo de Demócrito é bastante diferente das teorias estreitas que sufocam o pensamento nos lindes da matéria grosseira. Esta estrutura lógica é possível pela teoria da graduação atômica. Desde que os átomos se dividem em graus, e seus movimentos se processam na razão direta de sua configuração e densidade, é claro que a estrutura do Universo apresenta faces diferentes, que vão desde a impossibilidade de percepção sensorial até a mais plena e grosseira percepção física. Mas a graduação não invalida a unidade atômica do universo, apenas lhe permite variações na unidade. É por isso que Demócrito não aceita somente os fantasmas da percepção sensitiva ou intelectiva, como processos comuns de contato com as pessoas conhecidas do exterior, mas admite também a percepção de fantasmas de verdade, ou seja, de entidades metafísicas. Não é pois de admirar que o atomismo de Demócrito, em vez de apresentar-se rigidamente materialista, obra perspectivas espirituais em sua filosofia. Se tudo lhe parece reduzir-se a movimentos atômicos no vácuo, nem por isso é necessário negar a existência da alma. A alma, como o corpo, é um conglomerado de átomos, mas de átomos de fogo, mais sutis que os da matéria grosseira.
A felicidade, para Demócrito, dependia do equilíbrio atômico da alma. Para conseguir-se, entretanto, esse equilíbrio, era necessário o saber, o conhecimento, pois os átomos sutis se movimentam no plano mental, e só eles mantêm o espírito em estado de serenidade. Os átomos grosseiros, pelo contrario, originam torvelinhos tumultuosos, que perturbam a alma.
A ética de Demócrito identifica-se a de Sócrates quanto aos resultados, embora fundamentalmente diversa quanto à construção. Sócrates joga com os conceitos, para levar o Homem a felicidade, através do saber. Demócrito joga com os átomos, para o mesmo fim. Para um, como para o outro, a felicidade não está no exterior, mas no interior do Homem. Felicidade e infortúnio são coisas da alma. A felicidade não está nos rebanhos, nem no ouro. É a alma a morada da fortuna. O que torna mais admirável essa concepção é a sua ligação direta com o todo universal, através da teoria atômica.
O homem de Demócrito apresenta-se perfeitamente entrosado na estrutura cósmica, e para esse entrosamento não foi necessário o recurso pitagórico da metempsicose. Tudo se faz com naturalidade e dentro de um perfeito esquema lógico, pela descoberta da essência atômica do Universo. Para Demócrito, o Cosmos era uma espécie de esfera atômica, suspensa no vácuo, em meio do infinito. Seu envoltório constituía-se de uma capa de átomos firmemente ligados. O interior da esfera estava cheio de ar, mas no centro da mesma repousava a terra, em forma de imenso disco, e na parte inferior se distribuíam os elementos sólidos e líquidos. Os astros eram corpos semelhantes a terra, mas bem menores que esta, e o sol e a lua tinham maiores dimensões. Contrabalançando a pobreza dessa visão do Universo, existe a sua afirmação de que "há inumeráveis mundos, sujeitos à geração e a corrupção". Isso faz o Universo esférico por ele descrito não era propriamente o todo, mas apenas o sistema solar. O "erro" é inteiramente de Epicuro, pois Demócrito se referia ao movimento dos átomos em liberdade no espaço, sem considerar nenhuma espécie de queda, num sentido de movimento para baixo. Embora, na visão esférica que nos deu do nosso mundo, fosse possível a concepção de um movimento atômico dessa espécie, as pesquisas de Brieger mostraram que não tem procedência a atribuição desse pensamento a Demócrito. Assim, mais uma vez se salva a grandeza da sua visão cósmica.
Demócrito ensinava que os átomos psíquicos se distribuíam por todo o corpo, adquirindo funções diferentes nos diferentes órgãos. Segundo Lucrécio, cada átomo de fogo estaria "como embutido entre dois átomos do corpo". Assim, com a morte, também a alma dispersaria, não havendo sobrevivência. Veja mais aqui e aqui.
FONTES:
ARANHA, Maria Lucia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1994.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Atica, 2002.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luis. Historia da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1978.
PESSANHA, José Américo Motta (Org). Os pré-socraticos. São Paulo: Abril, 1978.
REALI, Giovani e ANTESERI, Dário. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990.
SOUZA, José Cavalcante. Os pré-socrático. São Paulo: Abril, 1978.
WEATE, Jeremy. Filosofia para jovens. São Paulo - Callis, 1999.
Veja
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A mulher nos primórdios da humanidade,
Virginia Woolf,
Friedrich Engels, Edith Wharton, Maria Polydouri, Sainkho Namtchylak, Paula
Picarelli, Inês Pedrosa, Jean-Léon Gérôme, Hanna Cantora & Tudo no Brasil é
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Daltro & Todo dia é dia da mulher
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Sobre a morte e o morrer, Direito
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Freud, Alan Watts, Erich Fromm, Roland
Gori & Eduardo Giannetti aqui.
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do Brasil: Al-Chaer, Marisa Queiroz, José Terra Correia, Vanice Zimerman &
Simone Lessa aqui.
A croniqueta de antemão aqui.
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CRÔNICA DE AMOR POR ELA
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CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na
Terra:
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Musical Tataritaritatá - Fanpage.