segunda-feira, julho 14, 2008

CORDEL DE PIRAUÁ, RABELAIS, CORRIE TEN BOOM, ADALZIRA BITTENCOURT & ROBERT DOISNEAU


 
A arte do fotógrafo Robert Doisneau (1912-1994).

VINTE ANOS DEPOIS – Vinte anos depois, o mesmo sol e a dor do abandono, o tamanho da solidão. As ruas são quase as mesmas, não fossem tantos desconhecidos. A vida é quase a mesma, não fosse eu tão estrangeiro. O rio quase some por trás dos destroços, muitas ruinas apesar dos ânimos e barulhada. As praças são outras, quase irreconhecíveis na minha memória. Até os meus não me reconhecem mais. Sou um intruso no meu próprio chão, uma paisagem invisível. Aceno a uns e outros, quase nenhuma empatia. Conheço a mão que se bate e a face que se tortura. Muitos escondem bem suas loucuras e carências. Ouço o tiro seco e um corpo se debate. Conheço as vozes, elas são minhas. Vinte anos depois e não perdi a esperança. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.


DITOS & DESDITOS - Perdoar é um ato da vontade, e a vontade pode funcionar independentemente da temperatura do coração. A preocupação não esvazia o amanhã de sua tristeza. Ele esvazia o hoje de sua força. A medida de uma vida, afinal, não é sua duração, mas sua doação. Pensamento da escritora neerlandesa Corrie ten Boom (1892-1983),

ALGUÉM FALOU: O Brasil é grande. O Brasil é nosso! É preciso que cada brasileiro plante durante a vida mil árvores, sendo uma diferente da outra, ou que fabrique um objeto, aperfeiçoando-o dia a dia, a fim de conseguir a suprema felicidade nesta e na outra vida. A mulher deve ser a musa inspiradora, a conselheira, a companheira, a amiga, a enfermeira, a amante e confidente do marido. (Dar-lhe o amor de mãe, pois todo homem sente falta dos carinhos de sua velha mãe; dar-lhe o amor que satisfaça o pequeno demônio travesso que lhe desperta a necessidade de ouvir loucuras de uma mulher espoletada, alegre e sensual...). Pensamento da escritora e advogada Adalzira Bittencourt (1904-1976). Veja mais aqui.

RABELAISEANASConheço muitos que não puderam quando deviam, porque não quiseram quando podiam. Amigo, perceberás que no mundo existem muito mais tolos do que homens, e lembra-te disso. É mais difícil esconder a ignorância do que adquirir conhecimentos. A ignorância é a mãe de todos os males. Ciência sem consciência não passa de ruína da alma. Seleção de axiomas do escritor francês François de Rabelais (1494-1553). Veja mais aqui.


HISTÓRIA DO CAPITÃO DO NAVIO

Silviano Pirauá de Lima

Vou narrar uma história
Do tempo da inocência
De um homem que sofreu
Uma horrenda inclemência
Sem se maldizer da sorte
Sem faltar-lhe paciência

Num dia de sexta-feira
Ouviu uma voz perguntar:
“Queres passar bem em moço
ou quando velho ficar?”
quando foi no outro dia
a voz tornou-lhe a falar.

Ele chamou a mulher
Pregou então a contar:
- Há três noites desta parte
ouço uma voz perguntar
se quero ser pobre em moço
ou quando velho ficar.

Então lhe disse a mulher:
- Tenho um conselho pra dar
queira padecer em moço
antes de velho ficar
você enquanto for moço
tem força pra trabalhar.

Quando foi no outro dia
A mesma voz lhe falou
Ele então respondeu
Como a mulher ensinou
No outro dia seguinte
A desgraça começou.

Animais que possuía
Morreram e se sumiram
Morreu a escravatura
Os que ficaram fugiram
Vendeu a propriedade
E os bens se consumiram.

Se acabou a riqueza
Ficou ele pobrezinho
Foi trabalhar de alugado
Para sustentar os filhinhos
Só não morreu na miséria
Por Jesus ser seu padrinho.

Ganhava no alugado
De conhecido ou estranho
A sua mulher no rio
Lavava roupa de ganho
As injurias para ela
Eram de todo tamanho.

Foi um dia pro serviço
Cumprir assim seu mister
Às noves horas do mesmo
Saiu de casa a mulher
Para o rio lavar roupa
Lá em um porto qualquer.

Nessa mesma ocasião
Chegou um navio no porto
O capitão do navio
Viu a mulher, ficou morto
Fez logo um mau juízo
Para fazer mal ao outro.

Chamou logo os empregados
Botaram n´água o escaler
O capitão do navio
Saltou na barra de pé
Mandou uma meretriz
Para iludir a mulher.

A meretriz chamou ela:
- Mulher, conversa comigo
é tua felicidade
se fizeres o que eu te digo
que de agora em diante
eu terei gosto contigo.

Então a mulher lhe disse:
- Pois diz para eu ouvir
a meretriz respondeu:
- O que me traz por aqui
é só trazer um recado
de muito bom para ti.

- O capitão do navio
é um homem de posição
ficou muito apaixonado
por tua linda feição
e te manda oferecer
alma, vida e coração.

Aí a mulher zangou-se
Tratou de a repelir:
- Mudemos esta conversa
pois eu não a quero ouvir
tu sabes que sou casada
para que vem me iludir?

- Não sejas tola, mulher
eu iludo para o bem
porque teu marido é pobre
não possui um só vintém
o capitão do navio
nada falta, tudo tem.

- Mulher saia-se daqui
não quero conselho teu
meu marido já foi rico
tudo que tinha perdeu
hoje me vejo em pobreza;
louvado seja, meu Deus.

- Você com o capitão
vive limpa e asseada
anda de meia e sapato
de ouro e pedra esmeralda
pra lhe servir toda vida
nunca lhe falta criada.

- Vaidosa iludideira
tudo isso eu tenho tido
hoje me acho em pobreza
que só possuo um vestido
honrarei até a morte
a barba do meu marido.

O que fez a meretriz
Iludindo a pobrezinha:
- Eu não estou iludindo
isto é caçoada minha
se fosse para iludi-la
por dinheiro eu cá não vinha.

Depois disse a meretriz:
- Mulher, me faça um favor
meu marido neste instante
lá de dentro me chamou
você vai junto comigo
que eu sozinho não vou.

A mulher lhe perguntou:
- Você também é casada?
Disse a meretriz: - Eu sou...
A outra ficou calada
Até que se levantou
E seguiu a camarada.

A meretriz conversava
Com respeito e educação
A fim de botar a outra
Na vala da perdição
Até que pôde chegar
Na porta da embarcação.

A meretriz entrou logo
E a outra ficou fora
Disse ela à traiçoeira:
- Tarde pouco, vamos embora;
diz baixinho a meretriz:
- Seu capitão, é agora.

A meretriz chamou ela
Com muita delicadeza:
- Senhora, entre sem medo
venha ver que boniteza!
Afinal tanto iludiu
Que pôde deixá-la presa.

Aí veio o capitão
Fazendo muita gracinha:
- Venha a meus braços, mimosa
quero dar-te uma buquinha
meu coração, minha vida
agora és toda minha.

A mulher triste chorosa
Lhe respondeu com franqueza:
- Seu capitão do navio
reconheço que estou presa
porém guardo até a morte
ao meu marido, firmeza.

- Reconheço que estou presa
nas ondas do mar, perdida
já hoje me considero
uma infeliz desvalida
a barba do meu marido
hei de honra toda vida.

Vamos tratar sobre o homem
Quando da roça voltou
Diziam os filhos chorando:
- Mamãe ainda não chegou!...
podem bem imaginar
como esse homem ficou.

Assim que ele foi chegando
Estavam os filhos dando ai
Disse: - Quede a tua mãe?
- Nós não sabemos, papai
foi ao rio lavar roupa
até aqui não voltou mais.

Saiu ele à procura
Vagando como judeu
Perguntava a todo mundo
Ninguém noticia lhe deu:
- Ninguém sabe ninguém viu
aqui não apareceu.

Voltou o homem tristonho
Sem ter nenhuma demora
Percorreu a vizinhança
No espaço duma hora
Botou os filhos na frente
Seguiu por ali afora.

Com dois dias de viagem
Encontrou um rio de nado
Pegou o filho mais velho
Foi botar do outro lado
Deixando o outro mais novo
Em um cantinho sentado.

Chegou sentou o filho
Voltou de cabeça baixa
Chegando não o outro?
Para o outro lado marcha
Chegou lá do outro lado
Procura o outro não acha.

Aí disse o pobre homem:
- Ai, meu Deus, fiquei sozinho
já fiquei sem a mulher
agora sem os meus filhinhos!
Só quero que Deus me seja
Protetor, pai e padrinho.

Saiu por ali afora
Em um reinado chegou
Ai falou com o rei
Pra ser seu trabalhador
Ficou o homem tratando
De uma horta de flor.

Estando ele há quatro anos
Neste serviço grosseiro
Como era muito sabido
Certo, fiel, verdadeiro
Foi tirado pelo rei
Para ser seu conselheiro.

Passando mais quatro anos
Esse rei caiu doente
Por não ter uma pessoa
Nem no reino um parente
Chamou esse cujo homem
Da coroa fez presente.

- Senhor, me acho doente
não acho quem se condoa
passo-lhe um testamento
dou de presente a coroa
tome conta do reinado
para não ficar à toa.

Passou-lhe um testamento
Pegou a coroa e lhe deu
Esse rei quando fez isso
No outro dia morrei
Ficou ele como dono
E o reinado como seu.

Quando foi no outro dia
Viu dois rapazes chegar
Pedindo pra sentar praça
Na guarda nacional:
Chegando um navio no porto
Fez ponto na beira-mar.

O capitão do navio
Pediu ao rei dois soldados
Pra guarnecer o navio
Com medo de ser roubado
Foram os dois soldados novos
Que tinham praça sentado.

Um soldado disse ao outro:
- Homem, não sei o que faça
vivo no mundo sozinho
chorando minha desgraça
se eu tivesse pai e mãe
não tinha sentado praça!

Quando ele disse isto
O outro disse entre ais:
- Então você é como eu
que também perdi meus pais
os tormentos meus são tantos
que quase não falo mais.

- Meu pai era um homem rico
e depois empobreceu
animais, terra e gado
tudo que tinha perdeu
ficou com minha mãe
comigo e um irmão meu.

- Foi um dia pro serviço
o seu dinheiro ganhar
minha mãe foi lavar roupa
em um porto à beira-mar
deu à tarde, o sol se pôs
e nada dela chegar.

- Meu pai saiu à procura
mamãe não apareceu
ele a todos perguntava
ninguém noticia lhe deu
talvez ela caiu n´água
e o peixe grande comeu.

- Voltou meu pai pra casa
consigo mesmo dizia:
- Não posso mais suportar
essa horrenda tirania!...
ele com esse desgosto
mudou-se da freguesia.

Com dois dias de viagem
Encontrou um rio de nado
Me deixou em uma margem
Em um cantinho sentado
Pegou meu irmão mais velho
Foi deixar no outro lado.

- Esperei muito por ele
até que não pude mais
nada dele vir me ver
eu só, fiquei dando ai
sem parente, nem aderente
sem irmão, sem lar, sem pai.

A mulher de dentro ouvindo
Quando a história acabou-se
Veio olhar para os soldados
Rindo com maneira doce
Aí eles imaginaram
Que com maus sentido fosse.

A mulher voltou ligeira
Falou para o capitão:
- Doze anos dessa parte
que vivo nesta prisão
se me levas ao palácio
te darei meu coração.

Respondeu o capitão:
- Eu pra lograr teus carinhos
te levo em qualquer lugar
meu coração, meu benzinho
só não te levo ao céu
porque não sei o caminho.

A mulher seguiu pensando
O que tinha no sentido
O capitão do navio
Foi muito bem recebido
Quando a mulher foi chegando
Foi conhecendo marido.

Antes dela se sentar
Disse para o rei primeiro
Mande chamar os soldados
Que o navio guarneceram
Para contar uma história
Perante seus conselheiros.

Levantou-se o capitão
Falando de um certo jeito:
- Soldado não vem à Corte
porque nem um tem respeito
não é possível, senhora
o seu perdido ser feito.

Aí respondeu a mulher:
- Senhor capitão, eu sei
soldado não tem respeito
falo em presença do rei
se não houvesse soldado
também não havia rei.

Disseram os conselheiros:
- Está muito bem apoiado;
mandaram um portador
para chamar os soldados
o capitão ficou logo
um pouco desconfiado.

Quando os soldados chegaram
Ficaram ambos defronte
Foi a mulher e lhes disse:
- Soldados, quero que contem
aquela história passada
que vocês contaram ontem

- Senhora, nós conversamos
relativo à criação
até que depois soubemos
que nós dois somos irmãos
foi essa conversa
outra não contamos não.

Lhes respondeu a mulher:
- Foi essa que eu bem sei
eu quero ela contada
é na presença do rei
para ele escutá-la
pelo artigo da lei.

Um soldado disse ao outro:
- Sei que estamos enrascados
só relato esse segredo
porque me vejo obrigado
ele aí contou o caso
do jeito que foi passado.

- Meu pai era um homem rico
e depois empobreceu
animais, terra e gado
tudo que tinha perdeu
ficou com a minha mãe
comigo e um irmão meu.

- Um dia foi pro serviço
o seu dinheiro ganhar
minha mãe foi lavar roupa
em um porto à beira-mar
deu à tarde, o sol se pôs
e nada dela volta.

- Meu pai saiu à procura
mamãe não apareceu
ele a todos perguntava
ninguém noticia lhe deu
talvez ela caiu n´água
e o peixe grande comeu.

- Voltou meu pai pra casa
comigo mesmo dizia:
- Não posso mais suportar
esta horrenda tirania;
ele com esse desgosto
mudou-se de freguesia.

- Com dois dias de viagem
encontrou um rio de nado
me deixou em uma margem
em um cantinho sentado
pegou meu irmão mais velho
foi botá-lo no outro lado.

- Esperei muito por ele
até que não pude mais
nada dele vir me ver
fiquei sozinho dando ai
sem parente nem aderente
sem irmão, sem lar, sem pai

O rei conheceu os filhos
Pegou eles pela mão
Mandou trajá-los de príncipes
Na mesma ocasião
A mulher sempre com medo
Que não tivesse o perdão.

A mulher triste e chorosa
Dando suspiro e gemido
Contou logo ao esposo
Tudo que tinha sofrido
Por todos foi apoiada
Teve perdão do marido.

Disso o rei ao capitão:
- Com toda força que tinha
consigo eu logo converso
esta mulher é minha;
deu-lhe honra competente
trajou-a como rainha.

- Doze anos que andaste
dentro do mar degredada
levando descomposturas
sendo muito maltratada
sem ser falsa a seu marido
merece ser perdoada.

Os filhos foram exaltados
Foi perdoada a mulher
O capitão morreu logo
Tentado por Lúcifer/
Fiquem todos na certeza
Deus protege a quem quer.

Pegaram o capitão
Não o quiseram matar
Fizeram uma fogueira
Vivo mandaram queimar
Pegaram a cinza dele
Voaram dentro do mar.

Hoje os filhos são príncipes
Ele é o rei majestade
Sua mulher é rainha
De alta dignidade;
Deus dê a quem contou esta
Saúde e felicidade.

SILVIANO PIRAUÁ DE LIMA – O poeta cantador paraibano Silviano Pirauá de Lima (1848-1913), é considerado como o iniciador do cordel no Brasil, segundo Câmara Cascudo, sendo ele o primeiro a escrever romances em verso. Registra Carlos Alberto de Assis Cavalcanti, com base no mestre Cascudo, que foi ele “(...) autor do romance Zezinho e Mariquinha ou a Vingança do Sultão, publicado em fins do século XIX”.

FONTES:
CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1984.
______. Vaqueiros e cantadores. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1984.
CAVALCANTI, Carlos Alberto de Assis. A atualidade da literatura de cordel. Recife: UFPE, 2007.
COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J. Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. São Paulo: Global; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Academia Brasileira de Letras, 2001.
MEYER, Marlyse. Autores de cordel. São Paulo: Abril, 1980.
MOTA, Leonardo. Cantadores: poesia e linguagem do sertão cearense. Rio de Janeiro: Cátedra, 1978.

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