ASSIM OU VAI OU RACHA – Robimagaiver
não tinha o que fazer, cansou de coçar o saco e foi remexer no monturo dumas
catrevagens. Depois de hora nessa ocupação, saiu ancho carregando uma caixa
velha de som, um microfone enferrujado e um molho de fios enrolados. Depois de
uma demorada dedicação no afã de fazê-los funcionar, num é que o cabra ajeitou
tudo, botou a caixa de som na calçada e começou: - Alô, som! Alô, som! Os passantes
às gaitadas. Aí ele pegou coragem e começar a bulir com um e com outro: - Olá,
seu Fabiano, vai voar com essa orelha de abano? Ei, seu Juvenal, faz que é
sério porque é um lapiau! Ei, seu Adalberto, está com o ganhador aberto! Ei,
Jardião, segura as pontas seu cornão! Ao findar o dia a coisa caiu na graça,
tanto que ele, logo de manhã começou acordando o povo na maior chacota! Ei,
Maria Biscoito, vem cá pra gente fazer o coito! Ei, Expedita, vem cá me dá tua
priquita! Aí nessa brincadeira ele pegou jeito de serviço de alto-falante,
vendendo recados, dedicatórias, intrigas, fofocas e rixas. – A Rádio Povão
informa: Dona Severina vai viajar e pede que o povo tome conta da casa dela! Seu
João da bodega avisa que chegou mortadela nova! Hoje haverá aula de dança no
Ginásio. Quem se inscreveu, vá buscar a ordem do médico do posto da Chã. Era o
dia todinho assim e prosperou. Comprou uma caixa de som e atrepou no poste da
esquina. Dois dias depois ele comprou mais três caixas e pôs nos postes da
vizinhança. Era a Difusora do Povão, colocando músicas populares com as
gaiatices e informações. Logo apareceram as coisas chatas, principalmente
quando fez anuncio de um defunto que enviveceu depois de uma reza forte de uma
certa mãe de santo. Piorou quando noticiou que o bolo de goma da Quitéria
estava dando dor de barriga. Ela deu parte na polícia e logo um agente civil
cochichou no seu ouvido: - Toma jeito, senão vai ser preso por vadiagem! Eita!
Quando ele anunciou o recado no microfone: - De Manhoso do Ferro pra Manhosa da
Gruta: deixa o corno do seu marido que eu estou esperando sexta no fuá! Pronto,
deu o creu. O que apareceu de corno ofendido tomando satisfações dele, dava
volta no quarteirão, tudo armado de pau, ferro, cacete e entortadores de todas
as formas e tamanhos pra empenar seu espinhaço. Foi um Deus nos acuda de não
ter fim. Quando a poeira baixou, apareceu Zé-Corninho cheio dos quequeos
mandando: - Anote aí, seu fidaputa: nessa cidade só tem cabra safado, é tudo
corno e ladrão. Vá, noticie. Eu pago! -, e insistia, sacudindo dinheiro na face
dele, a ponto de tomar o microfone e ele próprio anunciar aos gritos! Pronto,
estava armado o escarcéu. Logo veio o sargento da PM que lhe puxou pela beca e
disse: - Ou você dá jeito nessa geringonça, ou vai ver o sol quadrado, seu
porra! -, com um empurrão de findar sacudido sobre garrafas, ripas e arames
farpados do depósito vizinho. - A culpa é do Zé-Corninho! Nem quiseram saber. Daí
a pouco chegou o Oficial de Justiça com uma intimação para comparecer na manhã
seguinte no gabinete da promotora. Danou-se! – Agora que estou lascado em
bandas mesmo! Não demorou muito e um mau presságio brabo escureceu na sua
frente, era o fazendeiro Zé Grandão que acompanhado duns mal-encarados
capangas, arrodearam o distinto encostado na parede: - Acharam a calcinha de
quem, seu fidaputa? Quer bulir com a minha filha, quer? Pois vou tirar suas
medidas e marcar a missa de sétimo dia, seu viado safado! Oxe, ele levou um
acocho de quase nem poder falar, porém explicou direitinho o mal-entendido,
esclarecendo tratar-se de outra Quiterinha que não a filha dele, não escapando
duns empurrões, apertos e encarcadas bem aprumadas de só se ver as ronchas em
diversas partes do seu corpo. – Está sabendo, num tá? Tô, sim, senhor. Escapou
fedendo. Contudo, parecia que havia pisado em rastro de corno naquele dia, mal
havia se livrado, logo adentrou o vereador Bartô Gebão perguntando a ele quem
era o vereador Cocô de Cagão, quem? Pronto, estava em palpos de caranguejeira,
com cano de um revolver enfiado nas ventas, pronto pra engatilhar e estourar
seus miolos. – Quem é Cocô de Cagão, seu fresco, quem é? E ele no maior
ajeitado, tremendo mais que vara verde, dando volta no assunto e tentando
segurar o pipoco da bomba nas mãos, com meio mundo de disse e me disse que é
outro que não vosmicê, era o candidato Lerão Dedô que era um chato de galocha e
que por isso o trocadilho. – Quem é esse Lerão Dedô que nunca vi? Ah, é um lá
do distrito de Badaró das Trempes que quer se candidatar aqui! Aí, depois de
muita conversa, conseguiu convencer o abusado e foi tomar uns copos de garapa
mode acalmar os nervos do vexame. Aproveitou e tomou uma lapada de aguardente.
E outra, mais outra e mais. Mandou buscar uma meiota na bodega, virou,
esquentou as orelhas, clareou as ideias, pingou a do santo, benzeu-se e disse:
- Vôte! Quase que dessa não passo! E tomando umas e outras, começou a bulir com
os passantes, até que às alturas da cachaçada, começou a discursar que o
delegado era pirobo, o juiz era gigolô, a promotora era puta, o padre era
ladrão, o prefeito era um safado que roubou na prefeitura, que o vereador era o
Cocô de Cagão mesmo, que acharam a caçola da Quiterinha no matagal atrás da
escolinha, isso mesmo a caçola da filha do Zé Grandão, isso mesmo, e reiterou
desavenças, remexeu podres e intimidades, botou pra fora o que sabia e o que
não sabia dito na hora por linguarudos que queriam ver o circo pegar fogo pra
banda dele, e foi juntando gente na maior molecada, até que a polícia chegou,
deu-lhe uns empurrões dele cair desacordado atrás da porta de casa, e confiscou
o sistema de som, arrancando uma a uma das caixas penduradas nos postes.
Silêncio. Foram averiguar e ele roncava bêbado, deixaram pra lá, só encostaram
a porta, foram embora. No outro dia, quem passava via a porta aberta da casa
dele, gente que entrava e saía, cadê-lo? Será que está preso? Não, está não. No
hospital? Não. No gabinete da promotora? Não, que o oficial de justiça está
aqui pra levá-lo na marra que ele não foi. Oxe! Pronde ele foi? Sumiu. Uma dia
mais, nada de notícia dele. Uma semana depois, deram conta que ele havia pegado
o corujão. Será? O prefeito mandou cortar a luz, meio mundo de gente que havia
comprado o silêncio dele agora reclamava de volta sua grana, outros incomodados
com a doidice dele estavam prontos de pegá-lo pelo pescoço, ora, um e outro
mais uns em roda confidenciavam que ele devia era estar com a boca cheia de
formiga e muita bala no espinhaço. Será? Oxe! Com gente graúda não se brinca! É
mesmo, quem é doido de desafiar? Pois é, ou faz o que os homens querem ou finda
nisso, sumido ou morto, ninguém sabe. Pois é. Se ficar calado tem bufunfa no
bolso, se falar só tem vela acesa. Assim, ou vai ou racha. Tem que saber dosar
com jogo de cintura, senão, senão. Pois é. © Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.
A DANAÇÃO DE ANTONIO CALLADO
[...] Mas
danação era outra coisa muito diferente danação era raiva de cão danado na alma
da gente danação era ódio de Deus vontade de morder e de estraçalhar Deus como
se fosse possível era enterrar as unhas e rasgar de ponta a ponta o céu de modo
que à noite se pudesse ver o listrão de sangue latejando entre as estrelas e de
dia a ferida se abrisse ao sol para que o danado tentasse entrar para
estraçalhar deus um verdadeiro horror. Não danação era o pecado que não parecia
em estampas porque morre em si mesmo e não agüentaria seu reflexo em espelhos
em espelhos ou santinho não agüentaria cópia de si mesmo porque mesmo sua
sombra arde escarlate onde pousa [...].
Trecho da obra Assunção de Salviano (José Olympio, 1954), do jornalista,
romancista, biógrafo e dramaturgo Antonio
Callado (1917-1997), contando a história de um personagem mártir e místico
que nega a Deus para aceitá-lo, irreverente com o poder e as convenções,
representando as contradições políticas e filosóficas da sociedade brasileira.
Veja mais aqui e aqui.
Veja
mais sobre:
Lugome,
sua familia, seu infortúnio, Poesia erótica de José Paulo Paes, Fundamentos
de história do direito, O combate à
corrupção nas prefeituras do Brasil, Aracaju,
a música de Gina Biver, a
pintura de Sofan Chan, a arte de Eiko Ojala & Rudson Costa aqui.
E mais:
Brincarte
do Nitolino, A condição humana de Norbert Elias, O homem de outrora de
Alexander Pushkin, O lugar do outro de Jean-Luc Lagarce, a música de
Eduardo Camenietzki, a pintura de Paul
Gauguin, o desenho de Luis Fernando Veríssimo & a arte de Flávia Alessandra
aqui.
Espera, Iniciação
filosófica de Karl Jaspers, A crise das
ciências humanas de Hilton Japiassu, Memórias de um rato hotel de João do Rio, Manipulação da crise da arte de Dario
Fo, Os contos proibidos de Marquês de Sade, a música de Regina Schlochauer, a
escultura de Diogo de Macedo, a pintura
de Ghada Amer, a arte de Anthea Rocker & Aaron Czerny, Kate
Winslet, Jazz & Cia Grupo de Dança, a
entrevista de Braulio Tavares, a fotografia de Herbert Matter, Dicionário Tataritaritatá, O que sou de praça na graça
que é dela & O brasileiro é só um CPF Fabo arrodeado de golpes por todos os
lados aqui.
De golpe
em golpe a gente vai aprendendo, O coração humano de Goethe, Iniciações tibetanas de Alexandra
David-Néel, Adeus ao proletariado de André Gorz, Sistematização
da prática e da teoria de José Paulo Netto, a música de Franz Schubert & Mitsuko
Uchida, a pintura de Lygia Clark & John Currin, a
escultura de Horatio Greenough, a arte de Marina Abramović & Simone
Spoladore, a fotografia de Carl Warner, a coreografia de Anna Halprin, entrevista
de Tchello d’Barros, Oficina de Cordel, Laura Barbosa, O
vexame da maior presepada & Do jeito que esse mundão vai só Deus na causa aqui.
Tantas
fazem & a gente é quem paga o pato, Nietzsche & a
psicologia, A condição pós-moderna de Jean-François Lyotard, Nova história de Georges
Duby, a literatura de George Orwell & Alfredo Flores, a pintura de Balthus, a fotografia de Marta
Maria Pérez Bravo & Richard Murrian, A dona história de João Falcão,
a escultura de Marco Cochrane, a música de PJ
Harvey, a entrevista de Virna Teixeira,
O infortúnio da prima da Vera & Quando a bronca dá na canela, o
melhor é respirar fundo à flor d’água pra não morrer afogado aqui.
Pra tudo
tem jeito, menos pro que não pode ou não quer, Neuroeducação
no processo de ensino-aprendizagem, a consciência fragmentada de Renato Ortiz, Procedimento histórico de Adalberto Marson, O
caldeirão do diabo de Baldomero Lillo, a coreografia de Eugenio Scigliano, O
narrador de Rubens Rewald, o cinema de Wayne Wang & Gong Li, Baghavad Gita,
a escultura de Émile Antoine Bourdelle,
a pintura de Katia Almeida & Lisa
Yuskavage, a música de Paula Morelembaum, a fotoforma de Geraldo de
Barros, a entrevista de Ulisses Tavares, a arte de Wanda
Pepi, Zé Corninho & Quem sabe, sabe; quem não sabe tapia na
gambiarra ou leva na marra pra engalobar os bestas aqui.
Tudo tem
seu lado bom & ruim & vice-versa, A criança, Vygotsky e o
Teatro, Brincar para Aprender, a filosofia de Hermes Trismegistos de Jean D’Espagnet, Linguuagem & vida de Ludwig
Wittgenstein, O homem criador e sensato de Alan Watts, a música de Mozart & Alicia De Larrocha, Treva alvorada de Mariana
Ianelli, a coreografia de Merce Cunningham, a escultura de Aristide Maillol, a pintura de Johfra
Bosschart & Sharon Sieben, a fotografia de Luiz Cunha, a arte de Ana
Starling & Rodrigo Branco, o teatro de Maria Adelaide Amaral & Marília
Pêra, o cinema de Don Ross & Christina Ricci, a entrevista de Valquiria
Lins, O evangelho segundo Padre Bidião & Jesus voltou aqui.
&
ESCULTURA DA MULHER AUSENTE DE ADALGISA NERY
Eu já te amava pelas fotografias.
Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,
Pelo teu olhar vago e incerto
Como o dos que não pararam no riso e na alegria.
Te amava por todos os teus complexos de derrota,
Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas
E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.
Te falei um dia fora da fotografia
Te amei com a mesma ternura
Que há num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste quantas vezes
Minhas mãos usaram meu pensamento,
Afagando teus cabelos num êxtase imenso.
E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia
Que a verdade da vida sempre pede
E que interminavelmente tens que dar!...
Pelo teu olhar vago e incerto
Como o dos que não pararam no riso e na alegria.
Te amava por todos os teus complexos de derrota,
Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas
E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.
Te falei um dia fora da fotografia
Te amei com a mesma ternura
Que há num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste quantas vezes
Minhas mãos usaram meu pensamento,
Afagando teus cabelos num êxtase imenso.
E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia
Que a verdade da vida sempre pede
E que interminavelmente tens que dar!...
Escultura, poema extraído da obra Mulher ausente
(José Olympio, 1940), da poeta e jornalista do Modernismo
brasileiro, Adalgisa Nery (1905-1980). Veja mais aqui e aqui.
PROGRAMA TATARITARITATÁ
Paz na Terra: