IARAVI, A FILHA DO FOGO (Imagem: ilustração de J. Lanzellotti) –
Um belo dia, ao singrar a mata nas proximidades do rio Gôio-Xopin, ouvi uma voz
maviosa solfejando uma cantiga que falava o meu nome. Uma suave e encantadora
voz de mulher. Ao me aproximar das margens das águas translúcidas e prateadas daquele
estuário, pude ver pela ramagem da encosta que era Iaravi, a formosa filha de
Minarã. Ah, era a mais bela das caingangues! Nunca que tivera visto beleza igual.
E eu nem podia me arvorar na aproximação, todos os que ousaram desposá-la,
foram queimados vivos pela ira do pai. Ali fiquei todas as manhãs por dias e
dias a ver aquela linda vestal ameríndia a se banhar, nadando e mergulhando
naquelas águas caudalosas. O pai dela era o único possuidor do fogo na Terra. E
ela inocente, tinha a incumbência de vigiar o fogo para que não fosse roubado
e, por sua vez, seu pai, às escondidas, vigiava todos os passos dela. Quem se
aproximasse, era surpreendido pela fúria paterna. Tive, então, que ter cuidado
e planejar como conquistar o coração da Iaravi e, ao mesmo tempo, pegar o fogo
para distribuir com todas as tribos. Não havia jeito, Minarã era
inexoravelmente implacável. Tive que usar da inventividade e transformei numa
gralha branca. Voei me lançando ao rio, deixando-me ser levado pela correnteza.
Fui acolhido pelas macias mãos de Iaravi. Meu plano havia dado certo. Ela me pegou
aos seios nus e me afagou como quem resgata um filho perdido. E me levou pra
sua cabana onde o fogo se escondia. E cuidou de mim como quem cuida de um
enfermo terminal. E se afeiçoou de mim solfejando a canção que ouvira e que melodiosamente
entoava meu nome. Ali fiquei entre seus braços e seios dias, tardes e noites,
mesmo sob o protesto de Minarã que com suas desconfianças sempre providenciava
para ela novos afazeres. Quando ela me pousava junto à lareira dos fulgores
deslumbrados das brasas acesas, indo pras exigências do pai, ele me fitava com
seu gênio rude e terrível, ronronando como quem jurava dar cabo de mim. E ao
retornar ela já me chamava na procura: - Xakxó! E ao me encontrar,
carinhosamente me abraçava cantarolando: - Ó Xakxó, Fiietó! Era o meu nome que
ela repetia sempre que cantava: - Fiietó, xakxó! Com isso, eu já estava
perdidamente apaixonado quando resolvi contar-lhe do meu amor. Mas eis que nessa
hora seu pai entra afobado, descarregando sua furiosa raiva com tudo e com
todos. Não foi dessa vez. Os dias se passaram, Minarã ali irredutível. Assim se
passaram os dias até que numa tarde em que ele saíra pra caçar, eu balbuciei
seu nome: - Iaravi! Ela se assustou, olhou em volta curiosa, e eu repeti: -
Iaravi! Ela me viu ainda xakxó e desconfiada se aproximou de mim: - Xakxó? E eu
lhe disse: - Sou eu, Fiietó! Ela tomada de susto na hora se afastou. Eu pude
então desfazer minhas formas e voltar a ser o que sempre fui. Ela me olhou com seus
olhos grandes: - Fiietó? Não lhe deixei repetir meu nome. Fui ao seu encontro e
a envolvi nos meus braços com um beijo amoroso, no qual revelou o meu ardente amor
por ela. Um beijo demorado de quem descobrira a maior de todas as paixões. E ela
correspondeu àquele beijo e se entregou por inteira e pudemos ser um pro outro
a partir daquele instante. Completamente embriagado pela sua expressão, pude,
mesmo assim, contar do que planejara. Ela ouviu atentamente, apanhou um graveto
em brasa e me tomou as mãos para sairmos fugidios pela mata. Léguas e léguas em
fuga, deparamos com uma toca pela qual adentramos para nos esconder. E ali
ficamos aos beijos, abraços e delírios de amor. Na boquinha da noite ouvimos o
ronronar encolerizado com as pisadas intrépidas de Minarã à nossa caça e
captura. Ele vasculhou a redondeza, explorou a toca e não nos viu. Sentimos o
bafo embravecido de sua sede assassina e logo saiu sem que nos tivesse visto. Ali
ficamos noites e dias até nos certificar de que ele estaria longe. E ela me
pegou pelas mãos e me levou pela floresta até darmos no planalto de Guarapuava,
seguindo pelos pinheiros de Ponta Grossa para descansarmos na ilha das Peças. Dali
fomos pra baía de Paranaguá até chegarmos às belas paragens da ilha do Mel e lá
nos envolvermos nos mais plenos beijos das querências, trocando juras de amor. Não
podíamos ali ficar, tínhamos que percorrer caminhos para fugir e confundir
Minarã pelo rio das Cinzas, atravessando Ribeira, Itararé, Cadeado, Itapirauã, Pardo,
Araiponga, Taquari até darmos no rio Iguaçu e nos entocarmos na caverna das
quedas d’água. Ali amamos além da conta até virar o dia e retomarmos a estrada
pelas serras do Maracaju, Dourados, Ortigueira, fazendo pouso na de Piquiri,
passeando pela de Chagu, Juquiá, Pitanga, Capanema, dos Cinco Irmãos pra Apucarana
e daí pra Laranjinhas e Caeté. E fizemos o trajeto de Ourinho pra Guaíra, daí
pra Foz do Iguaçu até Pato Branco, atravessando a serra Geral da Boa Esperança
e por toda sua extensão demos de cara com a Serra Negra, apontando a direção
pra Laranjeiras e Tagaçaba, até arrancharmos, enfim, na Serra do Mar. Ah, ela
era a capitania de Santana: tudo dela se parecia com o mar. E o seu beijo
antecipou os sonhos da noite e com o meu beijo amanhecido senti os tremores de
suas duas luas sedutoras a me dar o eflúvio da flor do seu corpo de fêmea milenarmenete
viva que arde perfumando os meus dias, curando minhas feridas e violando a
minha pele, lambendo o meu sangue e me restituindo a vida quase perdida. Foi na
sua lunação que pude sentir o seu gosto na minha língua e da sua pele nua de
terra roxa recolhi suas volúpias de águas densas para o êxtase do que me fora
dado por quinhão e posse. Ela ouviu meu coração e no seu a nudez de sua alma
trazia o eco das minhas palavras. E incendiamos juntos como o nosso gozo e
nosso fogo foi para todos da floresta, em festa queimando solidário pra
felicidade de todas as nações indígenas. Agora todos podiam ter o fogo ao seu
dispor, não mais exclusivo de Minarã. E na madrugada eu vi o seu olhar perdido
na insônia com a promessa de ser feliz e na descoberta da mulher que amo e que
é única aos meus olhos, do que fui e o que não sou quem sabe pra onde vou senão
ao seu coração onde sou seu e ela é toda minha. (Luiz Alberto Machado). Veja
mais aqui e aqui.
Imagem: a arte do pintor, desenhista,
escultor, professor e poeta Vicente do Rego Monteiro (1899-1970). Veja mais aqui e aqui.
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CRÔNICA
DE AMOR POR ELA