AS
FLORES MAIO – Ainda
ontem eu era um menino que fabricava sonhos no quintal. O amigo invisível não
era um só, muitos. E se escondiam nos pés de plantas, nos galhos das árvores,
ou saíam das figuras do gibi para meus temores inexplicáveis além do lodaçal do
quase muro destroçado no charco intransponível. Afora o medo do coração de
Jesus aceso no alto da sala de estar, pra me esconder no cós da saia da mãe de
não mais largar. Bastava uma brecha na porta e eu me esgueirava portão afora
pro mundo das lêmures do Una, por onde uma gente de olhos sem honra se apinhava
molestando incautos que falavam alto, às gargalhadas, a fazer do nariz seu
umbigo e a se meter onde bem entendesse, levantando uma lebre do passado
irrevogável de todos. Não havia graça nenhuma nas suas risadagens, eu só me
assustava ao sabê-los familiares tão íntimos entre si e que só sabiam espernear
ou ofender, não sabendo seu lugar, seu papel, nem de si, nem de ninguém.
Supunham de coisas de antanho jamais devassáveis, enquanto eu me via comprazido
sobrevivente do alçapão dos imprevistos, do encarceramento das calamidades para
só entreter e me perder do caminho, enquanto bajulavam dos outros a atração do
ouro, dos diamantes, das pepitas que vidravam e mexiam com o juízo no egoísmo
dos desafetos. Os ódios iam e vinham e eu não sabia distinguir de bem ou de
mal, passavam como diziam das boas intenções que sobrecarregavam o inferno,
acaso existisse um inferno que não fosse esse aqui. Isso tudo é bobagem, viver
é outra coisa. A infância não se acaba, mesmo que a gente envelheça. Mesmo que
a gente se gaste, passe do ponto, permanece menino de não se perder.
Menino-grande, menino passarinho. Um menino crescido feito e teimei em crescer
enquanto todos ao meu redor teimavam em ficar rico e nada mais valesse a pena para
tanto desvalor. Ledo engano, não há valia pra ardilosa vaidade dum trono de
poder carregado de falsidade ideológica, formação de quadrilha, fraude,
peculato, farsas de ontem e de sempre. Enquanto eu ia, os dias vinham e
passavam, e os pensamentos me seguiam e me seguem a contar dos ventos da
ventania, as correntes dos rios, as ondas do mar. Alheio a tudo e todos, pelejei
demais, demasiadamente, no varejo e no atacado. E percebi o aroma do hálito de
todas as coisas na vitalidade da noite imensa atravessando as estrelas. Aprendi
que só se está completo despido e se não tenho outra sabença, não haveria de
ter. Basta o que sou e sei. Não preciso saber nada. O que fui já não sou e nada
será. Amanhã é nunca e só se vive o hoje, nada mais. O que me serve agora é ser
menino e ter Iaravi menina-cunhã no giro do céu que se insinua chegar perto,
bem perto com sua infantil maneira de ser, mordiscando um dos lábios, piscando
um dos olhos e me ssorindo como quem ama com urgência e não pode deixar pra
amanhã. Ou quando ela no crepúsculo se torna Freya ousada mais que deusa fêmea poderosa,
a me ensinar dos segredos ocultos nas sombras de todas as noites. E assim incandesce
na nossa meninice a me chega com as palavras no papel que crepitam como a lenha
na lareira e se fazem vagalumes que voam com os meus quentes beijos de
chocolate pra invadir pela cortina entreaberta da janela de sua solidão na
réstia de céu e palidez da lua de outono pra deixar tudo diferente na minha, na
sua e na vida que povoa a noite de todos os nossos sonhos e desejos. É na
entrega de sua verve de poeta prodigiosa com suas mãos de fogo que me faz pro
seu gole na lembrança que sou de noz moscada, para que seu riso seja largo e
com um profundo suspiro, a dar de ombros, pronta pro meu abraço na fria noite
de maio que logo amanhecerá com seu sorriso de Sol pra alegria de todas as
flores que irradiam no jardim do meu coração. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais
aqui.
Imagem:
Three Women (Le Grand déjeuner,
1921 - Oil on canvas), do pintor, desenhista e litógrafo cubista francês Fernand
Léger (1881-1955).
Curtindo o álbum 4 Loas (Tratore, 2010), do cantor, compositor e percussionista Marku Ribas (1947-2013).
PESQUISA
Neurociências ilustrada (Artmed, 2013), de
Claudia Krebs, Joanne Weinberg e Elizabeth Akesson, tratando desde o Sistema
Nervoso à Neufisiologia básica. Veja mais aqui.
LEITURA
Os
cantos (Nova Fronteira, 1986), do poeta, músico e crítico literário
estadunidense Ezra Pound (1885-1972).
Veja mais aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA:
[...] O
que é mágico existe sozinho. Solta-se a palavra e ela se inventa. Nada pode
embaciá-la. É como se enfia a cara na lua. Ou na luz. E a luz é tão inocente
como o lugar onde troveja. Por ser mágico e inóspito. Inventa-se o que não se
conhece. E o que se inventa não carece nem de nome, mas de verdade. [...] A imaginação não tem meio-termo. Imaginar
não é para enlouquecer, é ver melhor. [...] O que inventa está voltando ao sopro da semente; depois ao barulho que
as coisas têm quando estão em flor. O ruído de Deus. [...] Acende uma palavra e a alma se queima. [...]
Trecho extraído da obra O poço dos milagres (Bertrand Brasil, 2005), do poeta, ficcionista,
tradutor e crítico literário Carlos
Nejar.
IMAGEM DO DIA
Imagem: Lua, arte da poeta e artista visual Luciah Lopez. Veja mais aqui.
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CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Imagem: Mulher nua, do fotógrafo polaco Waclaw Wantuch.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital
Musical Tataritaritatá