quarta-feira, março 02, 2016

BOCA NO TROMBONE



BOCA NO TROMBONE

Luiz Alberto Machado

Anaxímenes estivera puto naquela manhã, por causa de um cabeludo arranca-rabo com as corriolas familiares. Aliás, tudo no costume, vez que sempre se desentendia com os seus pelo simples fato muito costumeiro de, logo nas primeiras horas da manhã, quando descia de sua residência para receber a bênção dos pais, mode ter melhor desempenho nos seus afazeres profissionais, encarava logo quanta aversão comum entre uns aos outros, num disse-me-disse cheio de insinuações para a sua banda, pondo em dúvida todo seu procedimento na vida.

Era sempre assim. Mal dava o sol os seus primeiros raios matinais e já havia naquele ambiente inamistoso um habitual arrazoado por assuntos irrelevantes, matéria de pouca monta, repúdio mútuo, mas que findava nos maiores impropérios geradores de mexericos até desavenças agudas, entre eles. Eita lasqueira!

Logo cedinho o rádio estridulava no quintal e no último volume, agourando notícias sanguinolentas que eram anunciadas por um locutor que se esgoelava pelas alturas, fazendo pano de fundo naquele cenário tão hostil. Isso tudo misturado com a barulheira de zis animais criados no recinto, pancadas, estalido de talheres, papoco de frigideira, zoada de panela de pressão, arrotos, peidos, escarros, cagadas, descarga sanitária, resmungos, arrastados de chinelos, choramingado, piadas insolentes, rangido de cama, coisas estralando, maluquices e intrigas.

Sabia todo residente de Alagoinhanduba que a arenga era do sangue da estirpe dos da Silva, da casa 45, da Rua Tenente Jacobino Ferreiral. Mais ainda: um bate boca já se encontrava embrenhado na personalidade deles, os do contra sempre, bem como o poder da disputa pela razão, pela certeza, pela vitória de virtudes, pela honradez, pelo dom de pisar os outros abaixo de suas qualidades superestimadas, pelo poder de corrigir o outro à força de esporros, reclamações esdrúxulas, repúdios por causas inúteis, os únicos de conduta ilibada e senso imaculado por ali, exclusividade, para eles próprios, dos mais ferrenhos linguarudos e abelhudos da comunidade. Também, pudera, um detalhe ilustrador da zona era, pois que Anaxímenes não era filho único, uma penca de irmãos, todos do sexo masculino, enchendo de macharia todos os recantos da casa malabanhada e com aquele indiscreto odor pronunciado de ensebados no recinto. O problema maior era decorar o nome deles, muitos e estranhos.

Dizem, sob confirmação de Dona Eleutéria, mãe dos incautos arengueiros, que o seu Davino Valdevino Japaranduba Silva, depois que se amigou com ela, havia pulado a cerca e tido uma outra emancebação com uma professora do Ginásio Eucarístico, uma tal que atendia por Dermevalda, professora de História, que iludiu o coitado num idílio quase sem fim. Em detalhes mais amiudados soubera que seu Davino fazendo o artigo 99, condição de estudo para adquirir, através do supletivo madureza, uma educação que pudesse dar-lhe algum diploma, conhecendo, entre os ensinamentos, o amor e a tal Dermevalda que era tarada por História Geral, principalmente pela Grécia. Segundo relato dele próprio, ela discorria por horas sobre a beleza da Grécia antiga, do século VI ªC., sobre a cultura helenística e a convergência de fatores que proporcionaram o milagre grego.

Seu Davino, à época desta perfídia, já possuía três ou quatro dos tantos filhos que teria depois, todos ainda não devidamente registrados em cartório civil e que eram tratados apenas por apelidos, alguns até obscenos. Além do mais, ele também não havia ainda contraído matrimônio civil com dona Eleutéria, segredando que a Dermevalda fora uma paixão proibida, jamais logrando êxito e, com o abandono dela ao seu coração arrebatado, Davino resolvera definitivamente, após o desenlace com a docente, regularizar sua vida conjugal, assumindo juridicamente através de instrumento público lavrado em tombo cartorário e devidamente reconhecido a firma em ofício de fé dum tabelionato local, dando fim à clandestinidade esponsal deles. Foi aí que se casou civil e religiosamente sob a pompa da austeridade com a resignada Eleutéria, ambos devidamente paramentados como convém àquela ocasião e sob a proteção de damas de honras, padrinhos, porta alianças e um violento festival de arroz para felicitar os véus e grinaldas ocultas do casal. Depois do juramento, apôs em documento de registro de nascimento dos menores, os respectivos nomes, acabando de vez com a chacota sobre os apelidados.

- Os meninos mais pareciam bichos, nem nome tinham! –, reclamava a mãe.

E vieram os rebentos, ano após ano, numa prole quase interminável: primeiro veio Tales, depois Anaximandro e tome bruguelada: Pitágoras, Anaxímenes, Xenófanes, Heráclito, Parmênides, Zenão, Melisso, Empédocles, Arquitas, Anáxagoras, Leucipo e Demócrito.

Devido, claro, certas dificuldades em pronunciá-los, não se salvaram dos horrorosos alcunhas que mais pareciam pulhas ao léu: Táli, Xima, Pita, Xeno, Heca, Paro, Zeno, Milinho, Doca, Quito, Xano, Cipo, Dema e Xime. Eis o rol das catorze trepeças que, logo cedo, deram pro que deram, desmantelando o projeto paterno de formar doutores respeitáveis na edilidade, ambicionando uma dinastia forte e duradoura no futuro que lhe garantisse uma vida acomodada e confortável. Contudo, não seria dessa vez que os sonhos paternos se realizariam por causa de uma tuia de revertérios deram cabo dos sonhos pros pesadelos.

Xeno mesmo foi o primeiro deles que arribou logo cedo, dando notícias quase quinze anos depois, sabendo-se hoje ser garçom na cidade de São Paulo. E quando visita a família bebe de ficar entupido, alimentando o zoadeiro dos outros treze irmãos. Sabe-se tratar de figura imprestável, pinguço de marca maior, pior que zero à esquerda, um destroço mesmo, uma calamidade familiar.

Do Heca pouco se sabe. Apenas que é arrogante, também dado a bebedeiras homéricas, possuindo o vício feio de quando sob efeito etílico sair soltando uns peidinhos fedorentos de presente a todos os que o rodeiam. Se tal vício era por força altruística, coisa inclusive bastante duvidável, levava seus irmãos a inquirir o porquê dele não dar o cu dele pros outros, ora, mania de peidar nas coisas, é só dá o cu, pronto, resolvido. Assim, pelo visto, esse era outra desgraça sem serventia nem para troco, diziam. Mas a reprovação dos irmãos não podia ter fim, afinal eles mesmos já condicionaram: - Na minha famía num tem viado! Se aparicê fresco, a gente mata!

Já o Zeno era possuidor de uma esclerótica raiada de vermelho e já diziam ser sinal de gente ruim. Como era, todo metido às pregas, era um "juiz" metendo o bedelho em tudo, dono absoluto da razão fosse no que fosse, opinando com a maior cara de pau, - vai botar a venta assim no furico da madrinha, porra! –, reclamavam todos, fossem familiares ou não. Para não ficar assim sem mais nem menos, Zeno ainda hoje está preso no São Leonardo, em Alagoas, por uns crimezinhos fajutos cometidos em nome da rispidez dele. É um réu temido na prisão já que traz uma pinta de sangue no olho e, segundo os maldizentes comentários, por isso é tratado como de alta periculosidade.

O Milinho, outro dos semideuses, vivia como despachante trambiqueiro, também polemista que não gozava da simpatia de ninguém. Esse, insistiam todos unanimemente, não valia um tostão furado que prestasse. Aliás, dizem as más línguas, que nenhum deles gozava de boa reputação perante a comunidade, devido ares galhofeiros que os revestiam em todas as ocasiões polêmicas ou não. Para se ter uma ideia, mesmo se não houvesse motivo para discussão, estavam eles implicando com tudo, corrigindo o que fosse, se atrevendo a pontapés em qualquer insinuação.

Outo deles, o Doca, depois que alcançou a maioridade, ficou tão revoltado com o pedantismo da família que se suicidou com a fralda do mais novo, com um detalhe: melada de cocô. A vergonha dele era tanta que já andava com uma cápsula de cianureto de potássio no bolso premeditando suicídio. E mais: era tão pretensioso que achava feio a arrogância dos outros Silvas da família, não vivendo o suficiente para melar o resto da humanidade. Ai, né? Deu no que deu. Menos um para dar trabalho à humanidade.

Enquanto isso, o Quita de nariz chato e arrebitado, tornou-se mecânico e, por causa dos ocasionais bons serviços realizados em sua oficina, granjeou simpatias e ainda hoje é reeleito vereador cativo da situação, pau-mandado do prefeito, baba-ovo do presidente da câmara, perspicaz em acusações e alcaguete mais afamado e odiado entre os funcionários da prefeitura e de outros órgãos públicos.

Continuando com o Xano, esse, também, ninguém nunca mais viu, devido ter sido imputado à sua pessoa uma pena judicial de oito anos de reclusão devido tráfico e uso de drogas. Só aparece em casa às escondidas, causando maior dor de cabeça aos genitores. Isso porque além de fugir da polícia, também foge dos comparsas visto ter sido flagrado em atitude delatora, dando paradeiro mínimo de toda tropa delinquente a qual ele estava envolvido. Foi o maior desmanche na quadrilha. E isso lhe valeu a alcunha de caboeta safado. Claro, essa turma não perdoa, nem dá descanso.

O Demo é o que menos participava das quizílias arrochadas. Mas isso por sua profissão de motorista e, não tendo paradeiro, morava na boleia de um caminhão trucado pelas estradas afora desse Brasilzão véio, arrevirado e de porteira escancarada. A ausência dele é a mais atrevida, visto que causa ciumeira e deixa danos horrorosos na moral dos outros. E, por isso, chamam o sumido de caga-pau, o farrapeiro.

O resto, não, tudo ali amontoado dentro de casa, sem ter o que fazer, coçando o saco e enchendo o dos outros, uns aos outros antipatizados e dando trabalho aos pais. Umas pragas. Salva-se, pelo que dizem, o Anaxímenes. 


Tratado pelo apelido de Xime para os íntimos e pariceiros, além de ser taxado por chato de galocha preta pelos conhecidos e antipatizados outros, conseguira a custa de muito esforço, participar de um concurso público, pois fora o único que concluíra o curso de contabilidade no Colégio Santo Coração Eucarístico, e trabalhava na companhia telefônica. Em virtude disso amealhara, com suas economias, uma independência financeira e se casara engalanado num domingo de setembro com a comerciária da Casa dos Tecidos, Maria Pomposa. Como nenhum de seus irmãos conseguira mulher decente para contrair núpcias, reduzindo-se, todos, apenas, a amancebamentos efêmeros, a ciumeira recaíra sobre a prosperidade de Xime e da sua nega metida a besta que mal pisava no chão. A mulher dele já prevendo a animosidade de todos, fez com que ele abandonasse os irmãos, não mais deitasse quantia alguma de ajuda aos pais, afastando-o por definitivo do convívio deles, cabrestando-o, ou seja, a atenção dele somente para com ela, nada mais.

- Deixe aquele covil para lá, ouviu? -, era o conselho dela pra ele se referindo à família dele.

Amigos, não, amigos ele nunca tivera. No máximo alguns que dispensando sua chatice, trocavam algumas palavras no horário de trabalho ou compulsoriamente algum cliente tendo que ser atendido. Mesmo assim, com um bate-boca a mais, uma reclamação de menos, pois alguns de seus irmãos se intrigaram a ferro e fogo dele, todavia, todo dia descia de sua residência levando a mulher para o trabalho e de lá dava uma escapulida até a casa dos familiares para receber a bênção e trabalhar tranquilo o restante do dia. Claro, verdadeiro trabalho perdido, pois deixava aquela morada, totalmente morto de vergonha e enxovalhado de críticas por ser dominado por uma vagabunda de uma comerciaria que regia sua conduta em tudo. Era um ataque desenfreado e simultâneo, deixando o sujeito murcho o resto do turno e todos os dias vindouros.

- Pelos sete sábios da Grécia, deixem-me viver! -, suplicava Xime.

A coisa piorava quando ocorria alguma festa que motivasse a reunião da família. Isso porque ninguém se aproximava de Pomposa. Ela ficava muda, sozinha num canto, remoendo suas queixas e, apenas, bajulada pelo marido. O resto do povo daquela casa virava a cara e como Xime não possuía irmãs, a situação dela era realmente feia, nem a sogra lhe dispensava um olhar que não fosse de soslaio. Discriminação aguda de deixar-lhe com os olhos rasos d’água, tadinha. Destá.

Mas janeiro vai, janeiro vem, pacutia pra lá, rixa pra cá e Pomposa é demitida da Casa dos Tecidos numa situação nebulosa jamais esclarecida. Xime ainda tentou reconduzi-la ao cargo na loja, exigindo que lhe fosse prestadas maiores explicações sobre a dispensa, recebendo uma desculpa esfarrapada qualquer de redução no quadro de pessoal da empresa para contenção de despesas, motivo de não mais comportar os serviços dela ali. Ôxe, ele ainda ficou mais puto quando verificou que dois dias depois já se encontrava outra beldade aboletada no birô antes propriedade dela. Foi aí que ele arretou-se, foi lá, baixou o calão e emitiu a maior discurseira de indignação pela atitude de Judas do gerente da loja, demitindo funcionária competente como a esposa dele, admitindo uma funcionariazinha pé rapado daquelas que nem chegava perto do chulé da Pomposa. Foi danado.


Alguns dias após o relaxamento como dona de casa, gozando umas férias compulsórias, Pomposa queixou-se de umas dores nas partes do baixo ventre, necessitando ir a um médico. Xime aperreou-se, botou as mãos na cabeça. Agora sim, era só o que faltava. Mas como gosta de arrego, lembrou-se que havia recentemente instalado um aparelho telefônico para o doutor Desidério, quando fez questão de ligar logo de noite mesmo para ele, acertando para a manhã seguinte encaminhá-la para o seu consultório, o que o médico simpaticamente acatou com ar de preocupado pelo estado dela, esposa do agora amigo, estreitando, portanto, um tênue laço de amizade.

- Esse médico é gente boa, sangue bom mesmo! -, alegrava-se ele.

Dia seguinte não deu outra, o médico consultara a doente prescrevendo alguns medicamentos e requisitando uns exames para análise mais aprofundada sobre o que causava indisposição na digníssima esposa dele.

- Não se preocupe, Anaxímenes, o medicamento que eu passei vai aliviar as dores, mas precisará fazer uns exames para um diagnóstico mais apropriado. Alguns deles você deve levar para o laboratório que lhe convier, outros três eu mesmo farei aqui sem ônus para você.

Ôxe, piranga que só ele, de graça, pronto, o de branco ganhara sua simpatia na vera. O médico analisara mesmo a compleição corporal da dita cuja, de uma certa forma fenomenal, rabuda, coxuda, bem talhada, bocetuda e toda dengosa para um carinho a mais fora da cama do marido. Era feiosa, mas dava pro trato: uma verdadeira tanajaura Raimunda. Na consulta, o clínico alisara a púbis que ela expunha descaradamente toda arreganhada, apontando ser ali onde estava o seu problema e alegando cinicamente estar enjoada da maneira rude com que o marido lhe tratava nas horas de penetração. Não teve parcimônia e solicitou, assim, na maior, que doutor ensinasse ao cavalo batizado do seu marido a maneira adequada em fazer uma mulher feliz. Mediante isso, Desidério logo percebeu que aquela seria moleza. E além de se engalfinhar na rabuda, ainda fez a cabeça do marido que, agradecido feito um bobo da corte, exultou pelas recomendações do ginecologista. Mas ficou deveras ruborizado quando o homem teceu orientações no trato sexual, ficando assim meio lá, meio cá, com um misto entre satisfeito e contrafeito, mas resignado pelo menos na conta do barato principalmente pela gratuidade dos três exames que o doutor faria, economizando algumas moedas para a aquisição da bandeira imensa do Flamengo que ele encomendara na Loja dos Esportes, da rua principal. Mão de figa como ele, já viu, a cavalo dado não se abre a boca. Ruim mesmo de fazer careta por dias foram os preços dos exames que o laboratório cobrou: um parasitológico de fezes, um hemograma e um sumário de urina. Reclamou na hora, em cima da bucha:

- Nunca vi bosta, mijo e sangue valer tanto assim! Vôte, será a rainha da Inglaterra, é?

Papelada na mão, três dias depois, o devoto largou a mulher no consultório médico. Duas consultas depois, confiança mais que avalizada, já nem acompanhava mais as idas dela para o clínico geral. A coisa ia, mas como os irmãos dele que não são flores que se possam ver nem muito menos cheirar, já falavam os farrapos, arriando o pau nas costas dele porque ainda dividia convivência com uma mulher daquelas, nojenta, que vivia fodendo com o subgerente da Loja dos Tecidos, razão porque fora demitida. Quando soube disso, foi um deus nos acuda. Não teve dúvidas e foi até a loja e constatou que o subgerente não trabalhava mais lá e foi até o gerente com o fito de saber a verdadeira razão da demissão dela, passando tudo preto no branco. O gerente, sujeito calejado para não botar mão em cumbuca de vespeiro, foi muito amável, explicando-o detalhadamente que fora, na verdade, por motivo de contenção de despesa, negando-se, portanto, a informar-lhe a veracidade dos fatos.

- Esse cara é bom de papo, gostei! -, acalmou-se Xime.

De fato, a conversa do gerente fora tão estimuladora que demoveu toda e qualquer desconfiança com relação a sua mulher em sua cabecinha tola, deixando que os irmãos falassem sozinho, tido por ele tudo como uns invejosos, carniceiros e com olho grande no amor dele.

- Vão pra China que o carregue, seus porras! Tem mulher boa quem pode, cambada de invejoso!

Mesmo com as relações estremecidas entre a parentalha, duas vezes por semana Pomposa se queixava de dores e era obrigada a retornar aos cuidados médicos, agora bem mais frequentes, até com atendimento em domicílio, inaugurando, assim, para as más línguas cavernosas, uma pronta-entrega sexual, ora.

- Isso é praga da sua família que vive me agourando o tempo todo! Por isso que vivo doente do olho gordo deles! -, reclamava Pomposa.

O zunzunzum cabeludo já aflorava nas conversas de que ela andava se esfregando com o tal doutor. Mas Xime aí, nem se aperreava, pois o tal doutor era portador de um jeitinho meio efeminado, carregando as ferramentas indubitáveis da pederastia, cheio de requebros, meneios, ui! Desmunhecando com os olhos a revirar, ui! muita pirobagem para o gosto dele. No entanto, o burburinho era grande.

- O doutor tá cumendo a tua mulher!

- Tá nada, ele é fresco!

- Já comesse a bunda dele?

- Claro que não, que não gosto de viado.

- Já soubesse que alguém butou no furico dele?

- Que é isso? Nunca vi não! Além do mai o furico é dele, dá a quem quisé!

- Já ouviu dizer que ele anda acendendo a florescente ?

- De forma alguma, mas que tem jeito tem.

- Pois é, anda todo se rebolando, meu amigo, mas ninguém nunca soube que ele deu o caneco por ai, certo ?

- Sei não. Sei que ele tem jeitinho, mas é até casado, com uma mulher que é funcionária da Rede Ferroviária Federal. Como, não sei!

- Pois bem, desconfiá num é nada, abre o olho jacaré, a cheufra deve tá cumendo no centro. Quem amolega a cheba dela não sou eu.

A orelha do Xime estava esquentando, andando na frente da pulga. Por isso deu uma reviravolta nas ideias e foi pesquisar a vida do doutor. Gente, o cara ficou arrepiado com o relatório. Verdade. Soube que ele andara amigado com a secretária dele, menos mal, né? Soube mais que a mulher do tal bambiloso deu maior flagra nele comendo uma cliente no próprio consultório.

- Êpa! Ele tem jeito de viado mas é o maior fudedor da região!

Eita! E teve mais: que descabaçou quatro donzelas em Campina Grande e correndo de lá porque os pais iam dar cabo da vida dele; foi por causa disso que arribou praquele lugar são e salvo, senão pólvora enterrava o fodedor logo, logo.

Surpreso com os depoimentos, não teve dúvidas, de posse de tais informações foi ter com o médico, checar olho no olho.

- Doutô, como vai o seu aparelho telefônico?

- Está ótimo! Com um profissional como você, uma linha telefônica não pode apresentar defeitos regulares.

O abestalhado foi pras nuvens e ficou lisonjeado com o elogio. Foi logo desarmado e já na intimidade, papo vai, papo vem, o de branco convidou-o para jantar naquela noite em sua residência. Pronto, quase cai no chão por ter a honra de ir jantar com um médico em sua casa, um homem como aquele, ocupado, importante, Deus no céu ele na terra, Virgem Maria!

- E que leve a esposa, preciso melhor acompanhá-la, pois está com uns sintomas suspeitos os quais já exigi novos exames, mas creio que não deva ser nada sério. Não se preocupe porque os exames eu coloquei pelo instituto, não vai gastar nada. Mas, olhe, você precisa cuidar melhor dela.

Na conversa ele cuidou de investigar direitinho e constatou mesmo a leveza daquele pirobo da medicina, o seu jeitinho todo gay, a forma de abraçá-lo, todo cheio de mimo, alisando o seu braço, mãos nas coxas, todo escandaloso, ixe! Ui! Bicha! Com essa apreciação Xime foi retirando todas as dúvidas que pairavam na sua cabeça sobre a virilidade dele. Ui! Sem desconfiança nem drama de consciência, Xime aprontou-se impecável e lá pelas vinte em ponto, aportou na residência dele. Chegou e ficou atarantado com o patrimônio e o aparato exposto a olhos vistos, na constatação de toda suntuosidade daquela casa, devidamente acompanhado da mulher, adentrando com os olhos para todos os lados e espantado com a demasia de utensílios ali acomodados.

- Olhe, Xime, que telefone lindo!

- Mesmo, que televisão grandona, Pomposa.

- Quanto luxo, Xime, ah! Eu daria tudo para morar numa casa dessas.

- Tire o olho gordo das coisas dos outros, invejosa!

- Invejosa, não, bem que eu mereço um conforto melhor.

- Vamos ver, quando chegar em casa a gente combina.

Conversa jogada fora, uma hora depois estava ele aboletado à mesa de jantar requintada, degustando de iguarias só tocadas ao paladar numa das festas do ano e olhe lá. Sem o menor pudor foi provando ardorosamente o risoto, o rosbife, o camarão, a lagosta, o vinho, a champanhe, o sangue quente, a emoção brotando, Pomposa já ajeitando o decote, falando alto, risadas frouxas, talheres escapulindo da mão, suor desajeitando a maquiagem, maior descontração, fulaninha pra cá, beltraninho pra lá, intimidades de anos corridos. E lá se vão horas passando, conversa boa, soluço, aos tombos, voz enrolada, Xime não se conteve e com ar de confidência narrou ao anfitrião, agora seu amigo íntimo, das maledicências que repousavam na sua reputação pelos linguarudos.

- Escute não, preclaro amigo, é a inveja dessa gente que não tem o que fazer. Enciúmam-se do meu casamento, forte! Invejam minha posição e não sabem que para ter o que tenho trabalho dobrado, suando a camisa, doando meu sangue nas enfermarias, nas UTIs, ralando duro; não acreditam que possa haver amizade entre duas pessoas sinceras, sem interesse, sem envolvimentos carnais. Por exemplo, você é um homem de bem, trabalhador, ralador, dá seu sangue no seu profissionalismo, também falam mal de você, de sua família, de seus irmãos. Eu sei, ouço e não ligo, você é meu amigo, uma pessoa de bem, isso basta.

Ouvindo aquilo seu coração ficou chocado. O que? Eita, por um instante o sangue ferveu na cabeça de Xime e quando o médico disse que ele também estava na berlinda das más línguas, suou frio, revoltou-se, odiou tudo e todo mundo, quase fazia uma merda.

- Só quem tem honra para essa gente, Anaxímenes, é rico; só quem tem família da boa, é quem é dono de muitas terras, de usina, ricaço. Pobre para eles só tem manha. O cara pode ser um pé rapado, mas se ficou rico do dia para a noite, torna-se um mito respeitado, com todo mundo no bolso, só com a lábia e o dinheiro, rendem-lhe culto, buscam seus favores! Eu mesmo sou um médico, vivo do meu trabalho, foram cinco anos de faculdade e olho aberto dia e noite, a custa do meu suor, tenho umas besteiras de bens e já me invejam. Agora, se eu fosse rico feito o doutor João Maria Aquilado, aí sim, eu seria um médico exemplar, fizesse o que fizesse. Mas sou pobre, Anaxímenes, tão pobre que a minha mulher tem que trabalhar para ajudar nas despesas do casal. Não é Terência?

A doutora Terência confirmara tudo o que o marido dissera. Xime completamente atordoado com aquilo tudo não notara o fingimento da esposa dele já desconfiada das arteirices com Pomposa, afinal, era a esposa de um médico, uma advogada da Rede Ferroviária Federal. Onde já se viu duvidar de gente tão distinta? Ainda mais com aqueles meneios de fresco, tanto refinamento assim, ora, quem duvidaria disso?


Dias depois Xime levou a mulher ao consultório, deixou lá como quem larga oferta de bem para ladrão. Também, estava nem aí para as conspirações dos amolestados candinhas.

- Deixe, a mulher é minha e o amigo é meu, vão se ocupar sentando num balaio de rola, seus gangrenados. Destá.

Na volta, quando ia apanhá-la, uma outra coisa que ele sempre ficava de coração cheio: era presente do médico para ele ou para Pomposa. Nossa! E ele retribuía com um peru gordo, camarão, uísque, caixas de cerveja, lembranças, quinquilharias, bijuterias. Era uma rasgação de seda desbragada.

- Tome, é seu.

- Nossa!

- E esse é para você.

- Ah! quanta coisa boa!

No final de semana, sempre se encontravam na praia da Água Azeda, numa amizade estreita. Onde um estivesse o outro ali se fazia presente, encangados. E Xime pronto para fazer qualquer coisa, ajeitando uma lâmpada que não acendia, uma pia que vazava, já quase um serviçal da casa. Já se acostumavam até a perguntar por um ao outro. O médico como era muito jeitoso até já construíra a casa com uma dependência para o casal.

- Cadê os filhos, Xime?

- Que é isso, doutô, a vida tá cara, a gente não pode agora ter filhos, justo ela que está desempregada, a vida custando os olhos da cara, carestia, não, doutor, agora não!

- Tá na hora, rapaz.

Brincavam um com o outro, amizade firme, solidária. Agora nem mais podia faltar nada na casa de um deles que o outro providenciava na hora a necessidade de uma das mulheres. A doutora Terência mesmo já tratava o Xime como um lacaio da casa, pois quando faltava gás, por exemplo, ligava pra ele providenciar um botijão. Ôxe, quando a Pomposa menstruava pedia para o doutor Desidério providenciar absorvente menos doloroso. E assim era: o gato subiu no fio de alta tensão e lá tava Xime a levar choque até na alma para recuperar o bichano já eletrocutado. Era Pomposa para lá, Terência para cá, Desidério puxa aqui, Anaxímenes arregaça ali e a família do Xime inexorável: todo dia arreavam o pau narrando logo de manhãzinha cedo novas esculhambações do povo com relação ao médico e a sua amizade com um enrolão daqueles. Foi aí que o pai se metera na ingresia e persuadira ao filho que se afastasse daquilo, amizade nojenta, um bicha gilete que se enrola com homem e come mulher, não sei, não, vez que, argumentou o velho, ia terminar ele também sendo homossexual naquela história...

- Êpa! Aí não!

Mexeu nos brios dele com uma facada no seu orgulho masculino, peraí, considerava que não dava o cu pequeno por uma bolacha, não seria uma padariazinha bichona como aquela que iria fazer com que ele esquecesse o teste da goma e desprezasse as pregas assim tão futilmente sem ao menos ter encostado a bunda em qualquer protuberância que o dispensasse assim da homência, certa para os trimiliques descontraídos de um frango em pé de desintoxicação. Virge! Chô pra lá, boca de praga! Se avie. A bem da paz e da calma, Xime afastou-se daquela amizade comprometedora. Pomposa, não, ficou logo enfezada com tal atitude esdrúxula, discriminando gente grã-fina, decente, elegante, por causa de uns trogloditas irracionais que tem uma língua maior que o próprio tamanho, gente baixa, ralé amundiçada que não dispunham de amizades honestas, puras e sensatas. Pudera, tanto reclamo porque ela só ia agora ao médico uma vez a cada quinze dias e olhe lá.

O tempo passava e chegou a denúncia de que a mulher dele fora vista com o doutorzinho abicharado saindo de um motel da cidade. Não deu outra: ele ficou puto, enfureceu-se cegamente, mandou tudo para a puta que o pariu.

- A gente soube que tua mulé liga o dia todo pro consultório dele.

- O quê? Vá agourar outra, vá, seus boateiros duma figa!

Com isso, Xime teve um estalo. Como é? É mesmo! O quê? É, porra! Sigilosamente preparou um ardil: grampeou o telefone de casa e botou um gravadorzão dos grandes para checar as ligações dela ao tempo em que ele estivesse fora de casa. Ao cabo de cinco dias, Xime se apoderou do gravador e foi ouvir o que estava ali gravado. Sabia, de antemão, que nada macularia o seu casamento, nada mesmo poria de água a baixo um relacionamento tão adulto e puro como o dele com a Pomposa, verdadeira dona de casa, exemplar, assídua nos afazeres caseiros, responsável pela sua felicidade, nos conformes do juramento até que a morte os separasse.

Nos primeiros centímetros da fita das gravações não acreditava no que estava ouvindo. Um verdadeiro sacrilégio, não se conformando com o que traduzia aqueles cassetes que certificavam seu absentismo conjugal. Duvidara. Não, aquela não era a voz dela; a dele, era sim; mas isso é linha cruzada, tenho certeza! Grampeou mais três dias e no fim ouviu as cinco fitas gravadas, direto, uma atrás da outra. Estava com saco para ver tudo e passar tudo a limpo. Viesse o que viesse, ia conferir em cima da bucha! Manda ver! E mandou brasa! Ai, só se via seu cabelo em pé, tremedeira braba, coçada de quengo, aperto de queixo, inquietação, dúvida, pesada forte no chão, mãozada nos braços da poltrona, cabeçada na parede, não, não pode ser, deve haver algum engano, desligou tudo, dirigiu-se até a geladeira, pegou um copo de água, meiou de açúcar, tomou, respirou fundo, criou coragem, voltou as fitas para o começo, tascou o play e ficou sentado ouvindo sem interrupção. Inicialmente ficara imóvel, depois zarolho, se roendo por dentro, apertando as mãos fechadas, esmurrando uma na outra, batendo o punho direito na mão esquerda, pigarreando, bufando, chacoalhando os sentimentos, a gaia comendo no centro, pois que ali estava a confirmação do adultério. Puta que pariu! Num pode ser! Ele só imaginando a zombaria do povo todo pra sua banda: - Lá vai ele, olhele! Lá vai o corno! Levantou-se, girou em torno da mesa, arrodeou a sala, andou a casa toda, impacientou-se, sentou-se novamente e botou a fita para rolar até quando não aguentasse mais. Fodeu Maria-preá! Tinha gente tirando sobejo no doce. Isso é uma sacanagem do cão! Não pode ser de jeito nenhum. Desligou o aparelho com uma mãozada aprumada de sair pinotando umas quatro teclas de quase num funcionar mais. Aí se espreguiçou, deu um salto e ficou pulando as dependências todas dali, deu uma cabeçada forte na parede, quase arrebenta o quengo de tanta força, ficou zonzo, voltou abufelado e tome mais! Com os olhos arregalados, constatava o já sabido: havia narrações com a voz dela provocando o safado em malabarismos sexuais nunca antes feito nem visto por ele. Ficou apatetado. E ruminou...

- Uma vez pedi prela me chupá e ela disse que era nojento! E agora, ela diz que vai chupá o caralho dele e todo corpo do feladaputa!

Eita! Foi se enraivecendo; o que ela havia negado a ele no recanto sagrado do seu lar, estava disposta impunemente a fazer com o esconjurado.

- Dá o cu? Até o cu presse fresco?!

Ouviu todas as fitas de uma só vez, repetia uma, duas, três, quatro vezes. Muitas vezes. O que fazer? Ouviu tudo de novo, ficou com as palavras da mulher na cabeça, remoendo de raiva, aquelas palavras perseguindo no juízo por uns dez dias, deixando-o calado de vez num mutismo estranho que dava na vista para qualquer um desconfiar. A mulher já estranhava o seu comportamento e duvidava atentamente das loucuras dele. Na casa dos pais era que era a boba torreiro: todo mundo reclamava e ele nada de exalar uma só atitude, marasmódico, catatônico. Sua cabeça só repisava as coisas que a mulher insinuava fazer com o médico, os convites, os lugares que foram juntos, a sua cama maculada, o sofá comprado com sacrifício fora fruto para chafurdar-se inteira no solo fértil do prazer, a certidão de casamento, o altar, o véu, a grinalda, as juras sentimentais, levou-a virgem para a cama, será? Duvidava de tudo agora, dela, dos irmãos, dos pais, de todos, quem não engalhou duas de quinhentos na sua santa inocência de que ela era a mulher mais pura dali? Quem não mangara dele, corno de uma figa, cheio de gaia, pela rua, certo de que era um homem irredutível, macho, coerente e cumpridor fiel dos compromissos e que jamais seria abatido por uma desgraça dessa? Quem diria que ele, razão justa, sujeito certo, tudo nos conformes, que execrava qualquer corno que lhe aparecesse na frente, que abominava cornice e achincalhava galhudos nojentos, seria vítima de uma traição tão nefasta quanto esta, em seu próprio lar, sua própria cama, seu sacrossanto objetivo de vida? A rejeição que ela dispensava para ele, o boboca que era, o trouxa, o besta, o corno, o corno! O corno! O CORNO! CORNO! CORNO! Ele já ouvia o eco desta pecha na boca de todo mundo. CORNO! Ninguém mais podia olhar em sua direção que ele já se estranhava e perguntava o que estava olhando, se respondendo interiormente: UM CORNO! Dera então de peiticar até com quem nunca vira nem conhecera, alegando:

- Sou corno, e daí?

Ao cabo de quinze dias, completamente abobadado, numa verdadeira catatonia integral, tomou, então, uma atitude: chegou em casa, mudo, arfante, derramando sua raiva, juntou toda roupa da mulher, fez uma trouxa só, jogou no meio da rua, deu-lhe um chute na bunda, dela passar dois meses descadeirada, com a região glútea inchada, esfíncter anal rasgado, cheba supurando, sem poder nem ao menos sentar. Não teve ela dúvidas: amigou-se com o cirurgião de vez. Porém, mais quinze dias depois, o doutor prevendo vento ruim, principalmente quando doutora Terência flagrou-o fodendo a secretária na escrivaninha da casa deles, foi a gota d’água! Por precaução, arrumou os mijados e se evadiu para lugar incerto e não sabido. Deixou-la na mão.

Xime não foi trabalhar. Pela primeira vez faltava ao expediente da empresa telefônica. Todos compreenderam sua aflição. Foi aí que ele, num assalto de loucura, nem imaginando o que estava por vir, se apossou do som de seu três-em-um, vingando-se de toda chacota e colocando as caixas de som sobre o muro, no maior volume com as conversas constatadoras da traição amorosa em que fora vítima. Foi um espetáculo! Ele lá sentado na porta de casa com a alma lavada. Todos ouvindo aquela profanação. Todo mundo, claro, já conhecia a voz dos dois traidores, só confirmando os fatos.

- Isso é para o povo saber que quenga era a minha mulher! Eu sou um corno! Corno! Corno da gaia mole!


Empunhava ele um ar de vitorioso, vingado, satisfeito. Mostrando ao povaréu quem era o homem, quem era o inclemente justo na hora certa. Três dias encarreados aquela sonoridade estapafúrdia tomou conta do bairro. Uns até achavam graça da leseira dele; outros defendiam de sua cornice avarenta. Alguns outros não muitos já estavam putos com aquele zoadeiro solto com libidinagens escrotas de dois safados impunes no lero-lero íntimo do prazer. Os irmãos, mais vingativos que ele, achando pouco, fizeram plantão na frente da casa, interpelando os que passavam para ouvir as fitas eróticas. Um deles já ganhava até dinheiro, reproduzindo em fitas cassetes e comercializando as cópias. Quando o buruçú foi saindo dos limites, Xime saiu de casa, picou a mula. Da perfídia mais cópias foram reproduzidas e vendidas a granel. Um escândalo. Por essa razão ele fora afastado da companhia sem mesmo requerer sequer um pedido, numas férias adiantadas que ainda estava por se vencer. Viajou. Era o fim da picada. A fita gravada com as insinuações daquele vitupério tornou-se um sucesso retumbante na cidade, alcançando a capital e outros estados. Alguns advogados na intenção de molhar o biscoito e tirar uma casquinha nas coxas tesudas de Pomposa, se ofereceram para defendê-la numa ação de separação judicial, com danos morais num rebu bem litigioso, tomando tudo que ele tivesse para que ela pudesse ter o prazer que quisesse a vida inteira. E com isso ela cortejada, vilipendiada, odiada, glorificada, cantada, enojada, amaldiçoada, assediada, até ficar completamente entediada das visitas frequentes que recebia, na maior felicidade. Até uma revista masculina ofereceu-lhe uma fortuna para posar nua. Não se fez de rogada e se entregou às lentes de um fotógrafo amador, não antes foder até com o iluminador. Fodeu mesmo com Deus e o mundo. Eram filas e mais filas de marmanjo já de pau duro para se enfiar e gozar nas suas entranhas. Até quatro dos irmãos dele foram flagrados numa delas. Foi tudo um rebuliço sem precedentes e só acabou quando Xime invadiu as dependências do hotel em que ela estava hospedada e, num gesto violento, botou todo mundo para correr. Um deles aproveitou o ensejo e deu uma trepada com ela ao que, no maior deboche, sapecava que estava rica e feliz, não se sabendo como mas mangando do povo e dele. Naquela situação em vê-lo imóvel e com os olhos esbugalhados, ela fez de propósito e vestiu-se com umas roupas decotadas com um short bem curtinho, exibindo toda a geografia excelsa, a bunda arredondada, as coxas e as pernas torneadas, os peitos generosos, a boceta gostosa, estava tudo ali para quem quisesse. Tirante a cara, o resto dava para o proveito. Eis que ele vendo aquilo tudo saiu apressado e reapareceu um mês e meio depois de tudo, requerendo em juízo a sua separação. O juiz, o promotor, o oficial de justiça, a secretária do juiz, a escrivã, o tabelião, o oficial de registro civil, o avaliador, a contadora, o substituto, a toga, todos unanimemente favoráveis a ele naquele litígio. Foram duas audiências de conciliação e julgamento, quando o juiz já sentenciando o desterro dela da vida dele, tudo pronto para enxovalhá-la de uma vez por todas, restaurando o pudor público, Xime hesitou. E um dia antes da audiência, invadira a suíte do hotel e chorou aos pés dela. Ela irredutível; queria apenas tomar tudo dele para pagar a humilhação que sofrera. Xime tinha ciência que ganhara a ação na justiça, sem perder nada mas não era isso que ele queria. Não se sabe a razão mas ele faltou a última das audiências, desaparecera por uns cinco dias, só retornando, completamente embriagado para levar Pomposa, à força, de volta para casa, adquirindo opróbrio popular e assumindo, de vez, a condição de dolicócero genuflexo. Na primeira noite em que dormiram juntos, depois de tanto estardalhaço, a população em peso fez coro à sua porta, mencionando os mais cabeludos impropérios sobre a sua cornice. Ovação geral. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.


Imagem A carioca (1882), do pintor, escritor, filósofo e professor Pedro Américo (1843-1905).

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CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Imagem: Reclining Nude, da pintora modernista russa Zinaida Evgenievna Serebriakova (1884-1967).
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