segunda-feira, dezembro 30, 2013

FERNANDO MELO FILHO, O PRIMEIRO PARCEIRO NA MÚSICA


 Na foto: Arnaldo Afonso Ferreira, Fernandinho Melo Filho, Paulo Profeta, meu pai, eu e leitores. Acervo pessoal



Conheci Fernandinho – apelidado de Fernando Bigodinho e se assinava no registro de nascimento por Fernando Albuquerque Melo Filho -, quando ainda estudava no Ginásio, quase meados da década de 1970, por aí.


Imagem: uma das letras apresentadas na III Feira de Música.

Tudo aconteceu porque eu havia participado da III Feira de Música, realizada por Fernando Pinras, com duas músicas estrambólicas que não sei como tive coragem de apresentá-las só ao violão e que já nem me lembro mais como que danadas que eram. Foi aí que fui apresentado pelas mãos de Marquinhos Cabral e Mauricinho Melo Filho, ele todo animado a mim se reportou com seu jeito peculiar:

- Bicho, muito legal aquelas suas duas músicas, visse? -, disse-me com seu costumeiro sorriso franco e seu jeito de fungar insistentemente amolegando a pêia.

Logo nos tornamos parceiros musicais, curtidores que éramos de bossa nova, rock pauleira e progressivo, blues, jazz, armorial (com Quinteto Violado, Banda de Pau e Corda, frevos) e muita MPB (principalmente Tom Jobim que ele era fanzaço!), tudo curtido de discos escamoteados às claras do acervo de Mauricinho e já nos víamos compondo duas a três músicas por dia pra gente se amostrar diante da turma na escadaria da igreja da praça da prefeitura. Enchíamos o balaio com bossa, xotes, baiões, baladas, tudo.

A primeira da tuia que me chega à lembrança foi um xote que a gente fez, Sertão:

Corri as terras do sertão
Montando um sonho alazão
A terra triste golpeou
A dor no meu coração
Na garupa dessa estrada
Vi o mundo se acabar
Satanás varrendo tudo
E acauã chuva nunca mais!

Na mesma leva fizemos Predestinação, quase nem lembro todo:

Quando vejo descambar
O véu da madrugação
Sinto o sol me convidar
A embolar na estação
Este céu desatinado
Que vai dar na solidão
Piso areia do caminho
Nesse chão [...]

A gente era quase vizinho: eu morava na Rua Nova e ele na República do Pinra, na Praça da Luz, pertinho do Ginásio onde eu estudava. Sempre eu dava umas escapulidas e ia lá pra gente bater o centro em nova parceria. Era o dia todo lá. Ele já namorava a Rejane Brandão, trabalhava no IBGE, enquanto eu enrolava no Cartório do meu pai e já andava enganchado num casório que logo vingou porque a distinta já estava lá em casa embuchada.

Tornamos biriteiros e quando eu me mudei pra Praça Ismael Gouveia, a gente se encontrava reunido à trupe nas escadarias da igreja vizinha. E lá estava a tropa toda: Gulu, Ozi dos Palmares, Célio Carneirinho, Zé Ripe, Ângelo Meyer, Marko Ripe, Mauricinho Melo Filho, Luizinho Barreto, Marquinho Cabral, tudo com dedilhados no violão, eu com uma viola de 10 cordas que entregava pro Ozi tocar e Fernandinho com o seu legendário violão Folk branco na maior empáfia. Cada um mostrava suas novas composições ou executavam clássicos da MPB, ou mesmo o sucesso entre a gente que era a Leonor do Gulu e Célio Carneirinho. Vez por outra aparecia Sandro Agrelli, Givanilton Mendes, Mazinho, Juareiz Correya, Tonho Oião, Marcelo Sbrugue e outros achegados efêmeros (feito o véio Alfredo cachorro-quente e seu filho, Junior Auau, entre outros apreciadores das nossas tocadas). Era nessa hora que eu e Fernandinho mandávamos ver no amostramento: duas a três novas parcerias. Era todo santo dia da gente chegar a perder a conta. Era muito som, projetos e ações da gente fazer jograis, melodramas, recitais e outras apresentações nos palcos e quadras dos colégios e da AABB.

De manhã o ponto de encontro da gente era na República do Pinra, de tarde na varanda da casa de Gulu que era na Rua da Palma ou na casa de Mauricinho na Praça Santo Amaro. De noite, era todo mundo nas escadarias da igreja ou, quando tinha culto no recinto, a gente arranchava na frente da Prefeitura.


Imagem: Jornal do Grêmio, edição de junho de 1979, do Grêmio Cultural Castro Alves, realizado pelos estudantes do Colégio Diocesano dos Palmares, sob a supervisão dos professores Erivam Felix, Inalda Cavalcanti, Elisabete Ramos e Elisabete Cirilo.

Nessa época a gente participava do Grêmio Cultural Castro Alves, uma ideia de Ângelo Meyer e logo acompanhada pelos professores do Colégio, resultando na publicação do Jornal do Grêmio com notícias, poesias, entrevistas (nesse número o entrevistado foi o poeta, entalhador e artista plástico Teles Junior), culminando com a apresentação de recitais, exposições de desenhos e pinturas, bem como show musical e esquetes teatrais.


Imagem: número inaugural da publicação Nova Caiana, resultado das Noites da Cultura Palmarense.

Foi nesse tempo que participamos juntos das Noites da Cultura Palmarense, comandada pelo professor e diácono José Duran y Duran, todos os sábados no Colégio Diocesano. O resultado dessas reuniões foi a publicação do informativo Nova Caiana com poesias e notícias artísticas. Em uma dessas reuniões, uma noite especial ocorrida na AABB, realizei apresentação musical em homenagem ao cantor e compositor pernambucano, Paulo Diniz, cantando suas parcerias com o poeta Juareiz Correya e, também, os seus grandes sucessos.
Imagem: Edição número 2 da publicação Nova Caiana, resultado das Noites da Cultura Palmarense.

Participamos da IV Feira de Música e ganhamos o 2º e o 4º lugares, pois seríamos ganhadores não fosse Mazinho com a sua “Guerreiro” no primeiro lugar e Zé Ripe & Célio Carneirinho com sua “Mata Sul” no terceiro. E só paramos de compor porque ele teve que se mudar pra Recife.


Foto: IV Feira de Música.

Na sua despedida, compomos uma canção: Canto Derramado.

CANTO DERRAMADO

(Fernando Melo Filho – Luiz Alberto Machado)

Eu vou por aí
Estrada seguir
Navio perdido
Olhar desprendido
As névoas dos sonhos
Gastaram vintém
De um tempo marcado
Olhar machucado
O sinal fechado aplacou meu coração
E eu traguei o mastro da mágoa e da ilusão
Sorri, lancei, meu cantar derramei.

Anos depois findamos vizinhos na Avenida Pinheiros, na Imbiribeira, e retomamos as parcerias tomando umas e outras nos bares de Antão e Massilon, comprando fiado e passando troco com Gulu que morava na Avenida Arquiteto Luiz Nunes. Éramos o trio biriteiro das manhãs, tardes, noites e madrugadas do Recife, parando em Afogados para tomar Mingau de Cachorro para curar da carraspana e chegar em casa bebaço pra roncar e peidar de papo pro ar. Desse trio de manguaceiros nasceu uma parceira que resistiu no tempo, Abusão:

ABUSÃO

(Luiz Gulu de França Santos Braga/Fernandinho Melo Filho/Luiz Alberto Machado)

Êta mundo véio, arrevirado e de porteira escancarada
O povo tá gemendo no curral
Numa gemedeira de barriga moribunda
O povo tá gemendo no curral
Eu vejo este mundo,
Eu vejo de quatro pés,
Quanto mais vale
Não passa de um conto de réis
E o que eu canto
Eu conto do povo
Não conto de rezes.

Foi aí que no meio de muita birita, muita Filosofia existencialista no quengo com papo de Metamarxísmica (tome papo doido embriagadíssimo), muito aparecimento no Teatro, meio mundo de poesia em livros lançados, correria do banco pra faculdade e de lá pra Livro 7, eis que consegui apresentar com a TTTres Produções o meu texto teatral A viagem noturna do sol, na sala Clênio Wanderley, da Casa da Cultura; criamos com Gilberto Melo, Arnaldo Afonso Ferreira, Paulo Profeta, Inez Koury e outros, a revista A Região que resultou na fundação das Edições Bagaço; lancei meu livro A intromissão do verbo pelas Edições Pirata e Raízes & Frutos pelas Edições Bagaço; fiz shows em palcos do Sesc e bares de Olinda e de Boa Viagem; participei de recitais na Livro 7; tornei-me diretor da Federação de Teatro Amador de Pernambuco (Feteape); fui coordenador de Estudos e Pesquisas da Fundação Casa da Cultura Hermilo Borba Filho, na gestão de Juareiz Correia, onde apresentei a minha palestra “A atividade artística como função alternativa para o desenvolvimento dos municípios”; e que durante essas coisas todas deu-se um período que eu cantava nas noites de sexta no Bar Roda Viva, em Campo Grande, cujo dono era um colega de trabalho e meu cachê era bebida e tira-gosto. E no meio disso, surgiu um festival do Sesc que eu inscrevi 3 músicas, duas das minhas parcerias com Fernandinho, e uma minha que eu havia composto. Os ensaios eram durante as minhas apresentações no bar, quando juntamos Sérgio Campelo na bateria (mas que tocava todos os instrumentos), o Cau no baixo, Fernandinho na guitarra e eu no violão e voz, caindo no agrado da freguesia. O Walmir, meu colega de banco que era o dono do bar é que chiava: certo que aumentou e muito o movimento da clilentela lá, mas eu e Fernandinho bebíamos demais de quase falir o negócio do rapaz. Daí acertarmos de pagar a bebida e a comida de Fernandinho, Sergio e Cau, nada mais justo de criar um prego quase sem fim na conta, verdadeira Excalibur fincada na valsa de eu pagar por prestações, sem poder velhacar porque o sujeito trabalhava na mesma instituição bancária que eu, né?
 Imagem: autorização do inventariante e escritor Paulo Cavalcanti para a encenação e adaptação de João Sem Terra, de Hermilo Borba Filho;

Veio então o dia da apresentação no Festival. Foi um show, tudo muito bom, tudo muito demais. Contudo, não ganhamos nada, só aplausos. E participamos de outros festivais até que chegou a hora da gente compor a trilha sonora da peça teatral João sem Terra, de Hermilo Borba Filho que eu adaptei e dirigi. Compomos a trilha e fomos prum estúdio conseguido por Arnaldo Afonso Ferreira, em Olinda. Lá estávamos eu, Fernandinho, o flautista Freire que também era colega meu de banco, Mozart na percussão e Sérgio Campelo tocando todos os instrumentos restantes. Tudo pronto, apresentamos no Teatro Cinema Apolo em noite de muita festa.
Imagem: matéria do Diário de Pernambuco sobre a encenação de João Sem Terra, de Hermilo Borba Filho, com o elenco do Grupo Terra.

Depois disso fomos convidados para realizar o show Cantarolinda, no Clube Nassau, em Olinda. E foi uma festa, graças às intervenções do amigo Arnaldo Afonso Ferreira.
Imagem: panfleto do show Cantarolinda.

Doutra feita, certa tarde perdida na lembrança, a gente estava tão biritado com o jipe desenfreado, horas e horas futucando as ideias para fechar mais uma parceria e nada de sair nada agradável. Bebaços demais conseguimos ajeitar a melodia, todavia a letra saía mais troncha porque eu não conseguia conciliar as ideias direito. Foi aí que chegou o Ângelo Meyer puxando um fogo arretado e difuso, e ele ao ouvir a nossa composição deu o toque final que precisávamos e ficou Lá vem o trem que depois eu inseri na temporada do meu show Por um novo dia:

LÁ VEM O TREM
(Fernando Melo – Luiz Alberto Machado – Ângelo Meyer)

Lá vem o trem
Lá vem o trem
Lá vem o trem
Pra estrada do além
Do além-homem
Do além
Morte, morte, morte,
No mote de viver.
Entre risos e pétalas de sonhos azuis
Dentro, dentro tem uma luz
No coração do menino, no coração do menino
Fora, fora, fora tem a guerra, desatino
Fora, fora, fora tem a guerra, desatino
E um verde sol cintilante na crista da imaginação.
Imagem: portfólio do show Por um novo dia, 1986.

Por causa disso, dias depois resolvemos comemorar qualquer coisa da gente e lá estávamos eu, Gulu e Fernandinho no Mustang, grande bar da Conde da Boa Vista. A gente tinha vindo de uma apresentação na Mansão do Fera, na Unicap, tudo liso e só com passe pro ônibus, quando um garçom do estabelecimento chamou Gulu. Lá foi ele, conversaram longamente e depois ele convocou a gente. Não sabia eu que o Gulu havia premeditado tudo. Fomos pra lá e tome goladas, viradas de copo e muito lero filosófico, literário e musical na maior doideira do juízo. Lá pras tantas Gulu confidenciou:

- Óia, véi! Mermão é o seguinte: vamo saindo de fininho que esse prego depoi a gente paga -, disse e foi rebatendo uma banda da bunda na outra na maior zarpada. Eu me assustei, fui ao sanitário organizar as ideias e quando retornei a mesa estava sem ninguém, Fernandinho tinha escapulido. Sumiram os dois. Eu me lasquei, pensei comigo e saí de fininho torando aço até chegar na maior carreira na Dantas Barreto, pegar a condução até chegar em casa onde os dois fugitivos sacanas estavam agarrados num litro de vodka morrendo de rir. Foi aí que eu soube que o garçom saiu correndo atrás de Fernando gritando “pega xexeiro!”, o que deixou a barra limpa pra mim. Maior risadagem. Ah, tenho muitas pra contar do Gulu.

Anos depois Fernandinho mudou-se pra Candeias e eu retornei pra Palmares para trabalhar na Quilombo FM, enquanto cursava Direito em Caruaru. Desdentão, isto é, de 1986, nunca mais vi Fernandinho. Só tive contato com ele quando estive com Mauricinho e Iara na Flimar de 2012, ela havia ligado pra ele e nos falamos. Das trocentas músicas que fizemos, umas duas ou três ainda lembro, entretanto a grande maioria está no esquecimento. Não sei se ele se lembra algumas delas, mas confesso que a saudade é grande. Beijos procê, Fernandinho, pra Rejane e Belinha.

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