Na foto: Arnaldo Afonso
Ferreira, Fernandinho Melo Filho, Paulo Profeta, meu pai, eu e leitores. Acervo
pessoal
Conheci Fernandinho – apelidado de
Fernando Bigodinho e se assinava no registro de nascimento por Fernando
Albuquerque Melo Filho -, quando ainda estudava no Ginásio, quase meados da
década de 1970, por aí.
Imagem: uma das letras apresentadas
na III Feira de Música.
Tudo aconteceu porque eu havia
participado da III Feira de Música, realizada por Fernando Pinras, com duas
músicas estrambólicas que não sei como tive coragem de apresentá-las só ao violão
e que já nem me lembro mais como que danadas que eram. Foi aí que fui
apresentado pelas mãos de Marquinhos Cabral e Mauricinho Melo Filho, ele todo
animado a mim se reportou com seu jeito peculiar:
- Bicho, muito legal aquelas suas duas
músicas, visse? -, disse-me com seu costumeiro sorriso franco e seu jeito de
fungar insistentemente amolegando a pêia.
Logo nos tornamos parceiros musicais,
curtidores que éramos de bossa nova, rock pauleira e progressivo, blues, jazz,
armorial (com Quinteto Violado, Banda de Pau e Corda, frevos) e muita MPB
(principalmente Tom Jobim que ele era fanzaço!), tudo curtido de discos escamoteados
às claras do acervo de Mauricinho e já nos víamos compondo duas a três músicas
por dia pra gente se amostrar diante da turma na escadaria da igreja da praça
da prefeitura. Enchíamos o balaio com bossa, xotes, baiões, baladas, tudo.
A primeira da tuia que me chega à
lembrança foi um xote que a gente fez, Sertão:
Corri as terras
do sertão
Montando um
sonho alazão
A terra triste
golpeou
A dor no meu
coração
Na garupa dessa
estrada
Vi o mundo se
acabar
Satanás varrendo
tudo
E acauã chuva
nunca mais!
Na mesma leva fizemos Predestinação, quase
nem lembro todo:
Quando vejo
descambar
O véu da
madrugação
Sinto o sol me
convidar
A embolar na
estação
Este céu
desatinado
Que vai dar na
solidão
Piso areia do
caminho
Nesse chão
[...]
A gente era quase vizinho: eu morava na Rua
Nova e ele na República do Pinra, na Praça da Luz, pertinho do Ginásio onde eu
estudava. Sempre eu dava umas escapulidas e ia lá pra gente bater o centro em
nova parceria. Era o dia todo lá. Ele já namorava a Rejane Brandão, trabalhava
no IBGE, enquanto eu enrolava no Cartório do meu pai e já andava enganchado num
casório que logo vingou porque a distinta já estava lá em casa embuchada.
Tornamos biriteiros e quando eu me mudei
pra Praça Ismael Gouveia, a gente se encontrava reunido à trupe nas escadarias
da igreja vizinha. E lá estava a tropa toda: Gulu, Ozi dos Palmares, Célio
Carneirinho, Zé Ripe, Ângelo Meyer, Marko Ripe, Mauricinho Melo Filho, Luizinho
Barreto, Marquinho Cabral, tudo com dedilhados no violão, eu com uma viola de
10 cordas que entregava pro Ozi tocar e Fernandinho com o seu legendário violão
Folk branco na maior empáfia. Cada um mostrava suas novas composições ou
executavam clássicos da MPB, ou mesmo o sucesso entre a gente que era a Leonor
do Gulu e Célio Carneirinho. Vez por outra aparecia Sandro Agrelli, Givanilton
Mendes, Mazinho, Juareiz Correya, Tonho Oião, Marcelo Sbrugue e outros
achegados efêmeros (feito o véio Alfredo cachorro-quente e seu filho, Junior
Auau, entre outros apreciadores das nossas tocadas). Era nessa hora que eu e
Fernandinho mandávamos ver no amostramento: duas a três novas parcerias. Era
todo santo dia da gente chegar a perder a conta. Era muito som, projetos e
ações da gente fazer jograis, melodramas, recitais e outras apresentações nos
palcos e quadras dos colégios e da AABB.
De manhã o ponto de encontro da gente era
na República do Pinra, de tarde na varanda da casa de Gulu que era na Rua da
Palma ou na casa de Mauricinho na Praça Santo Amaro. De noite, era todo mundo
nas escadarias da igreja ou, quando tinha culto no recinto, a gente arranchava
na frente da Prefeitura.
Imagem: Jornal do Grêmio, edição de junho de
1979, do Grêmio Cultural Castro Alves, realizado pelos estudantes do Colégio
Diocesano dos Palmares, sob a supervisão dos professores Erivam Felix, Inalda
Cavalcanti, Elisabete Ramos e Elisabete Cirilo.
Nessa época a gente participava do Grêmio
Cultural Castro Alves, uma ideia de Ângelo Meyer e logo acompanhada pelos
professores do Colégio, resultando na publicação do Jornal do Grêmio com
notícias, poesias, entrevistas (nesse número o entrevistado foi o poeta,
entalhador e artista plástico Teles Junior), culminando com a apresentação de
recitais, exposições de desenhos e pinturas, bem como show musical e esquetes
teatrais.
Imagem: número
inaugural da publicação Nova Caiana, resultado das Noites da Cultura
Palmarense.
Foi nesse tempo que participamos juntos
das Noites da Cultura Palmarense, comandada pelo professor e diácono José Duran
y Duran, todos os sábados no Colégio Diocesano. O resultado dessas reuniões foi
a publicação do informativo Nova Caiana com poesias e notícias artísticas. Em uma
dessas reuniões, uma noite especial ocorrida na AABB, realizei apresentação
musical em homenagem ao cantor e compositor pernambucano, Paulo Diniz, cantando
suas parcerias com o poeta Juareiz Correya e, também, os seus grandes sucessos.
Imagem: Edição número
2 da publicação Nova Caiana, resultado das Noites da Cultura Palmarense.
Participamos da IV Feira de Música e
ganhamos o 2º e o 4º lugares, pois seríamos ganhadores não fosse Mazinho com a
sua “Guerreiro” no primeiro lugar e Zé Ripe & Célio Carneirinho com sua “Mata Sul” no terceiro. E
só paramos de compor porque ele teve que se mudar pra Recife.
Foto: IV Feira
de Música.
Na sua despedida, compomos uma canção:
Canto Derramado.
CANTO DERRAMADO
(Fernando Melo
Filho – Luiz Alberto Machado)
Eu vou por aí
Estrada seguir
Navio perdido
Olhar desprendido
As névoas dos
sonhos
Gastaram vintém
De um tempo
marcado
Olhar machucado
O sinal fechado
aplacou meu coração
E eu traguei o
mastro da mágoa e da ilusão
Sorri, lancei,
meu cantar derramei.
Anos depois findamos vizinhos na Avenida
Pinheiros, na Imbiribeira, e retomamos as parcerias tomando umas e outras nos
bares de Antão e Massilon, comprando fiado e passando troco com Gulu que morava
na Avenida Arquiteto Luiz Nunes. Éramos o trio biriteiro das manhãs, tardes,
noites e madrugadas do Recife, parando em Afogados para tomar Mingau de
Cachorro para curar da carraspana e chegar em casa bebaço pra roncar e peidar de
papo pro ar. Desse trio de manguaceiros nasceu uma parceira que resistiu no
tempo, Abusão:
ABUSÃO
(Luiz Gulu de
França Santos Braga/Fernandinho Melo Filho/Luiz Alberto Machado)
Êta mundo véio,
arrevirado e de porteira escancarada
O povo tá gemendo
no curral
Numa gemedeira
de barriga moribunda
O povo tá
gemendo no curral
Eu vejo este
mundo,
Eu vejo de
quatro pés,
Quanto mais
vale
Não passa de um
conto de réis
E o que eu
canto
Eu conto do
povo
Não conto de
rezes.
Foi aí que no meio de muita birita, muita
Filosofia existencialista no quengo com papo de Metamarxísmica (tome papo doido
embriagadíssimo), muito aparecimento no Teatro, meio mundo de poesia em livros
lançados, correria do banco pra faculdade e de lá pra Livro 7, eis que consegui
apresentar com a TTTres Produções o meu texto teatral A viagem noturna do sol,
na sala Clênio Wanderley, da Casa da Cultura; criamos com Gilberto Melo,
Arnaldo Afonso Ferreira, Paulo Profeta, Inez Koury e outros, a revista A
Região que resultou na fundação das Edições Bagaço; lancei meu livro A
intromissão do verbo pelas Edições Pirata e Raízes & Frutos pelas
Edições Bagaço; fiz shows em palcos do Sesc e bares de Olinda e de Boa Viagem;
participei de recitais na Livro 7; tornei-me diretor da Federação de Teatro
Amador de Pernambuco (Feteape); fui coordenador de Estudos e Pesquisas da
Fundação Casa da Cultura Hermilo Borba Filho, na gestão de Juareiz Correia,
onde apresentei a minha palestra “A atividade artística como função
alternativa para o desenvolvimento dos municípios”; e que durante essas
coisas todas deu-se um período que eu cantava nas noites de sexta no Bar Roda
Viva, em Campo Grande, cujo dono era um colega de trabalho e meu cachê era
bebida e tira-gosto. E no meio disso, surgiu um festival do Sesc que eu
inscrevi 3 músicas, duas das minhas parcerias com Fernandinho, e uma minha que
eu havia composto. Os ensaios eram durante as minhas apresentações no bar,
quando juntamos Sérgio Campelo na bateria (mas que tocava todos os
instrumentos), o Cau no baixo, Fernandinho na guitarra e eu no violão e voz,
caindo no agrado da freguesia. O Walmir, meu colega de banco que era o dono do
bar é que chiava: certo que aumentou e muito o movimento da clilentela lá, mas
eu e Fernandinho bebíamos demais de quase falir o negócio do rapaz. Daí
acertarmos de pagar a bebida e a comida de Fernandinho, Sergio e Cau, nada mais
justo de criar um prego quase sem fim na conta, verdadeira Excalibur fincada na
valsa de eu pagar por prestações, sem poder velhacar porque o sujeito trabalhava
na mesma instituição bancária que eu, né?
Imagem: autorização do
inventariante e escritor Paulo Cavalcanti para a encenação e adaptação de João
Sem Terra, de Hermilo Borba Filho;
Veio então o dia da apresentação no
Festival. Foi um show, tudo muito bom, tudo muito demais. Contudo, não ganhamos
nada, só aplausos. E participamos de outros festivais até que chegou a hora da
gente compor a trilha sonora da peça teatral João sem Terra, de
Hermilo Borba Filho que eu adaptei e dirigi. Compomos a trilha e fomos prum
estúdio conseguido por Arnaldo Afonso Ferreira, em Olinda. Lá estávamos eu,
Fernandinho, o flautista Freire que também era colega meu de banco, Mozart na
percussão e Sérgio Campelo tocando todos os instrumentos restantes. Tudo
pronto, apresentamos no Teatro Cinema Apolo em noite de muita festa.
Imagem: matéria do
Diário de Pernambuco sobre a encenação de João Sem Terra, de Hermilo Borba
Filho, com o elenco do Grupo Terra.
Depois disso fomos convidados para
realizar o show Cantarolinda, no Clube Nassau, em Olinda. E foi uma festa,
graças às intervenções do amigo Arnaldo Afonso Ferreira.
Imagem: panfleto do show
Cantarolinda.
Doutra feita, certa tarde perdida na
lembrança, a gente estava tão biritado com o jipe desenfreado, horas e horas
futucando as ideias para fechar mais uma parceria e nada de sair nada
agradável. Bebaços demais conseguimos ajeitar a melodia, todavia a letra saía
mais troncha porque eu não conseguia conciliar as ideias direito. Foi aí que
chegou o Ângelo Meyer puxando um fogo arretado e difuso, e ele ao ouvir a nossa
composição deu o toque final que precisávamos e ficou Lá vem o trem que depois
eu inseri na temporada do meu show Por um novo dia:
LÁ VEM O TREM
(Fernando Melo –
Luiz Alberto Machado – Ângelo Meyer)
Lá vem o trem
Lá vem o trem
Lá vem o trem
Pra estrada do
além
Do além-homem
Do além
Morte, morte,
morte,
No mote de
viver.
Entre risos e
pétalas de sonhos azuis
Dentro, dentro
tem uma luz
No coração do
menino, no coração do menino
Fora, fora,
fora tem a guerra, desatino
Fora, fora,
fora tem a guerra, desatino
E um verde sol
cintilante na crista da imaginação.
Imagem: portfólio do
show Por um novo dia, 1986.
Por causa disso, dias depois resolvemos
comemorar qualquer coisa da gente e lá estávamos eu, Gulu e Fernandinho no
Mustang, grande bar da Conde da Boa Vista. A gente tinha vindo de uma
apresentação na Mansão do Fera, na Unicap, tudo liso e só com passe pro ônibus,
quando um garçom do estabelecimento chamou Gulu. Lá foi ele, conversaram longamente
e depois ele convocou a gente. Não sabia eu que o Gulu havia premeditado tudo. Fomos
pra lá e tome goladas, viradas de copo e muito lero filosófico, literário e
musical na maior doideira do juízo. Lá pras tantas Gulu confidenciou:
- Óia, véi! Mermão é o seguinte: vamo
saindo de fininho que esse prego depoi a gente paga -, disse e foi rebatendo
uma banda da bunda na outra na maior zarpada. Eu me assustei, fui ao sanitário organizar
as ideias e quando retornei a mesa estava sem ninguém, Fernandinho tinha
escapulido. Sumiram os dois. Eu me lasquei, pensei comigo e saí de fininho
torando aço até chegar na maior carreira na Dantas Barreto, pegar a condução
até chegar em casa onde os dois fugitivos sacanas estavam agarrados num litro
de vodka morrendo de rir. Foi aí que eu soube que o garçom saiu correndo atrás
de Fernando gritando “pega xexeiro!”, o que deixou a barra limpa pra mim. Maior
risadagem. Ah, tenho muitas pra contar do Gulu.
Anos depois Fernandinho mudou-se pra
Candeias e eu retornei pra Palmares para trabalhar na Quilombo FM, enquanto
cursava Direito em Caruaru. Desdentão, isto é, de 1986, nunca mais vi
Fernandinho. Só tive contato com ele quando estive com Mauricinho e Iara na
Flimar de 2012, ela havia ligado pra ele e nos falamos. Das trocentas músicas
que fizemos, umas duas ou três ainda lembro, entretanto a grande maioria está
no esquecimento. Não sei se ele se lembra algumas delas, mas confesso que a
saudade é grande. Beijos procê, Fernandinho, pra Rejane e Belinha.
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