quinta-feira, fevereiro 28, 2008

RUBEM BRAGA, SASKIA SASSEN, LEDO IVO, ROXANE ROJO, SÉRVULO ESMERALDO, EDUCAÇÃO & DORO


 
A arte cinética do artista Sérvulo Esmeraldo (1929-2017).


DORO & ESCAMBAU - Doro estava na maior pasmaceira, ingicado pela peitica de encontrar uma saída para seus planos eleitorais, quando teve aquele estalo arquimédico: eureka! Ora, ele não se contentara com a produção e reprodução da idéia do Fecamepa e com a sua descabida candidatura levada a ferro e fogo até a última conseqüência no atual pleito eleitoral (pode um sujeito mais sem eira nem beira candidato a presidente do Brasil e com o desplante: quem é pior ou melhor do que eu? É verdade, então fico calado), agora partiu para outras alvoroçadas invencionices só possíveis em sua cabecinha tola de desaprumado jipe sem freios nem meios descendo desgovernado ribanceira abaixo. - Eureka! -, repetia insistentemente. Essa exclamação iluminada reduzia-se à descoberta do paradeiro do filósofo, advogado e fiscal de renda, o eminente anacoreta distinguido doutor Zé Gulu, um, que dizem os boateiros de plantão, Ph.D. das ocultidões, pós-graduado pela Universidade ZWQ%&777P, ao defender uma tese de doutoramento a distância na 28.ª galáxia do 101.º sol - ocasião em que prematuramente já anunciara a barroada do asteróide 2002N17 com a terra, em dia e horário marcados exatamente sem pestanejar, comprovando seu tino sismográfico de captar o menor zumbido noutras galáxias anos-luz daqui -, quando com sua imperturbável contemplação e douta sabedoria peculiar, deu-lhe a solução: o escambau! Doro depois de muito meditar sobre a loucura do teorema proferido, chegou a me confidenciar, o que, não obstante, também fiquei intrigado com uma cara de tacho mais que corno desconfiado de gaia, levando-me a desvendar a charada esfíngica do crástino haríolo e que, segundo insistem os inventores de petas e patranhas, ser o avatar apreciador da ingerência de bosta dos ciganos, fato este que amplia seus poderes adivinhatórios. Se é pinóia, cá pra nós, nem afirmo muito menos desafirmo, deixo correr. Primeiro fui no pai dos burros, nada constando sobre tal locução, só escambar que significa cambiar ou trocar; e escambo, no mesmo sentido. Fiquei zarolho só de pensar: o que queria,afinal, dizer ele com tal dédalo oracular? Nem no Aurélio, nem dicionário algum, nem no tomo I da massaroca inapalpável da Enciclopéda Griz, com suas quase seis mil páginas de pesquisa exaustiva do emérito poeta Artur Griz, nem anotado nos estudos de Luís da Câmara Cascudo, nem no dicionário do Palavrão, de Mário Souto Maior, nem enciclopédias ou alfarrábios do tempo do ronca, nem em porra de livro barato desses feito nas coxas só para vender. Onde pomboca que droga poderia encontrar? Doro com cara de interrogação maior que a minha, resolveu pedir esclarecimentos ao doctíloquo anfibologista. Este respondeu seco: o óbvio! Como? Simples: quem sabe de cor e salteado a gramática portuguesa? Ninguém, exceto um ou outro obstinado estudioso. Quem entende a proposta de inclusão pedagógica dos de Brasília? Ninguém, nem eles mesmos. Quem aprende algo de nossa língua com tanto estrangeirismo, regra, exceções, vaievém, nó cego, tanto nome estrambólico nas coisas simples da gente? Uh! Ninguém. Então? uma palavra só como essa, com uma múltipla significação como possui, torna todo mundo, de uma hora para outra, alfabetizado, promovendo a possibilidade de tornar analfabetos em graduados acadêmicos assim, sem mais nem menos. Como? Por exemplo, você diz: Pai, filho e o escambau! Neste caso, significa o Espírito Santo e tudo e todo mundo, tudo uma merda só. Tanto significa um único enunciado como representar uma frase inteira, dependendo, apenas, da forma de enunciação. Escambau? Escambau. Escambau! Defendia então que com essa economia de expressão, haverá, consequentemente, menos mal entendidos, vez que todos pronunciarão a toda hora, para qualquer ocasião, com todos os significados conteudísticos, apenas: escambau. E enfatizava: você vai poder chamar, mandar, pedir, torar, usando apenas: escambau. Tanto para singularidades, como para coletivos plurais. E tome lero-lero: serve tanto para uma ofensa, quanto para um elogio. Servirá para somar, dividir, subtrair, roubar, multiplicar, ou acumular. Afirma-se, como se nega. Move-se, ou como ficar imobilizado. Terá uma inumerável e diversificável significação bastando apenas interpretar, só. Como? Olhe, por acaso você entende o que dizem os maiorais da nação? Nadica de nada. Você entende economia ou linguajar de advogado ou médico ou engenheiro ou enrolador presepeiro quando ele quer justificar alguma coisa em seu prejuízo? Pior ainda. Você entende, por acaso, o que um juiz chega a lhe dizer quando vai exarar uma sentença em que você não sabe se ganhou ou perdeu o direito adquirido? Ora, num sei se tô sorteado ou se tô fudido prá todo o resto da vida. Aí arremata: pois é, acaba a enrolança com uma única expressão e com um adendo: você revoluciona a gramática acabando com o excesso de normatização, economiza essencialmente na educação, porque todos saberão dizer escambau, não precisando de escola, de diretor, de professor, de nada disso. O povo ficará feliz! Os estudantes, ululantes! Votos certinhos na bica do seu caçoá eleitoral, num é não? Doro meio lá e meio cá, recebeu na lata: não precisará de uma lei com trilhões de artigos, apenas escambau, pronto, ou tá condenado, ou tá absolvido. Ninguém vai precisar queimar as pestanas lendo livros e mais volumes para saber de alguma coisa. Se o problema é leitura, babau. Ninguém precisará mais ler absolutamente nada. Vai ser tudo na base utilitária dos sentidos. Os poetas bastarão dizer escambau, pronto, tudo o que se imaginar estará ali representado. As pessoas serão mais silenciosas, a vida será mais fácil de viver porque não precisará de um sem número de léxicos para informar, persuadir, engalobar, basta um: escambau. Pronto. Acaba de uma vez por todas com a escrita, restando apenas a fonética reduzida a um só termo: escambau. Além do mais, todo mundo será uma família: Zé de tal Escambau, fulano de tal Escambau, beltrano de tal Escambau, outrano de tal e assim vai. Por isso, haverá mais solidariedade, independente de consangüinidade ou afetividade. Tudo igual. Revolucionário, não? Então? Doro abriu um sorriso iluminado enquanto remoía nas catracas: num é que é mesmo! Putzgrila! Estou eleito!!! Foi aí que esfuziantemente beijou as mãos e os pés do mestre. E não se contendo em si de explosiva alegria, vociferou em cima da bucha: - Olhe, dotô Zé Gulu, cum essa indéia o sinhô será meu ministro da inducação quano eu ganhá para prisidente. Pode escrevê aí. Palavra de Doro num trisca, sai em cima da risca! Pois é, e eu, gente, achando-me mais astuto que gato escaldado, continuo com a mesma cara de tacho de surpreso por imbróglio mais sem pé nem cabeça. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.


PENSAMENTO DO DIAA gente nasce com um montão de palavras na barriga. Na vida, vai galando e gastando o estoque. Quando todas acabam, a gente morre. Provérbio africano.

NÃO É IMIGRAÇÃO É EXPULSÃO –[...] O momento da expulsão é o momento de uma condição familiar que se torna extrema. Você não é simplesmente pobre, você está com fome, perdeu sua casa, vive em barraco. Ou com a terra e com a água: não são simplesmente degradadas, terras ou águas insalubres. São mortas, acabadas. Nós tendemos a parar no extremo. Não entrar nele. O extremo é muito, muito feio e não temos conceitos para capturá-lo. Trecho da entrevista concedida pela socióloga holandesa Saskia Sassen para a Revista Ponto & Vírgula (PUCSP, 2015).

EDUCAÇÃO, APRENDIZADO, ESCOLA NO BRASIL - [...] O problema é que, no Brasil, somente um percentual muito baixo de estudantes atinge o patamar adequado. Apenas 5,3% dos estudantes apresentam um nível de proficiência condizente com onze anos de escolarização, constituindo-se leitores competentes em relação a diversos tipos de texts. Considerando o rendimento em atividades de leitura e interpretação de textos, os concluintes do ensino médio concentram-se no nível intermediário, sendo capazes de ler com relativa desenvoltura, mas não aquela projetada para a série na qual estão. [...] Outros 42% não podem sequer ser considerados bons leitores, mesmo depois de terem chegado ao final do ensino médio, vencendo as séries da educação básica. Estes últimos são aqueles que estão nos níveis crítico e muito crítico. [...] Trechos extraídos de Letramentos múltiplos, escola e inclusão social (Parábola, 2009) de Roxane Rojo, autora também de Alfabetização e letramento: sedimentação de práticas e (des)articulação de objetos de ensino (Perspectiva, 2006).

AULA DE INGLÊS — Is this an elephant? Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava. Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em conseqüência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil. Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente: — No, it's not! Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou: — Is it a book? Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos: — No, it's not! Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas. — Is it a handkerchief? Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido: — No, it's not! Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief. Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva. - Is it an ash-tray? Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento. As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi: — Yes! O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta.  Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada: — Very well!  Very well! Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho. Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria: -- It's not an ash-tray! E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado. Extraída da obra Um pé de milho (Autor, 1964), do escritor Rubem Braga (1913-1990). Veja mais aqui.

O MONTEPIO - Que herança transmite / o pai a seu filho? /Não lhe deixa casa / ou sombra de apólice/ nem tampouco o sujo/ de seu colarinho./ Não lhe lega a velha / mala das viagens/ nem os seus amores/ e as suas bagagens./ E as roupas do pai/ que a chuva encolheu/ no filho não cabem./ Com pau seco e fogo/ o pai de resina/ arma seu legado./ Deixa a fogueira/ que ele fez sozinho/ no escuro da mata./ (Borboletas em/ seus ombros pousavam)/ E também menino/ na pele do vento/ solta para o céu/ o seu papagaio./ E antes de mudar-se/ de suor em musgo/ o pai dá ao filho/ como pé-de-meia/ algo da paisagem/ - sobra de pupila,/ moeda de lágrimas./ Deixa-lhe o balaio/ cheio de apetrechos/ e o jeito de andar/ com as mãos às costas./ Para o filho, passa/ todo o seu cansaço/ suas promissórias/ e seu olhar baço./ Da árvore do povo/ deixa-lhe o grito/ de espantado amor/ que gritou na praia./ De agrestes gravetos/ faz o fogo e esquenta/ na palhoça ao vento/ a comida fria/ de sua marmita./ O pai dá ao filho/ o ninho vazio/ achado no bosque/ e a raposa morta/ por sua espíngarda./ Dá-lhe a sua anônima/ grandeza do nada./ Sua herança é o frio/ que sentiu rapaz/ quando impaludado./ Dá-lhe a lua imensa/ na noite azulada./ Estende-lhe as mãos/ sujas de carvão/ molhadas de orvalho./ Fala-lhe da dor/ que sente nos calos./ Dá-lhe a verde e rubra/ pimenteira em flor./ Mostra-lhe o tambor/ de salitre e brisa/ que rufa sozinho/ entre arquipélagos/ de sua pobreza./ Mostra-lhe o cadarço/ de espuma no mar/ cheio de mariscos./ Ser pai é ensinar/ ao filho curioso/ o nome de tudo:/ bicho é pé de pau./ Que o pai, quando morre,/ deixa ao filho/ o seu montepio/ - tudo o que juntou / de manhã à noite / no batente,dando/ duro no trabalho./ Deixa-lhe palavras. Poema extraído da obra O sinal semafórico (José Olympio/INL, 1974), do poeta, jornalista, escritor e ensaísta alagoano Ledo Ivo (1924-2012). Veja mais aqui.





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