sexta-feira, março 11, 2016

DESDITA DE TRIPA




DESDITA DE TRIPA

Luiz Alberto Machado

Zé Tripa sempre acompanhava o velho Rosas em tudo. Era a sombra dele. Até os pantins do ancião o molecote imitava: fungado, corcunda, pigarro, leseira, penço capaz de relar a venta no chão, magérrimo, cagado e cuspido. Um protótipo autenticado em cartório, cópia fiel, dou fé. O velho experiente, conselheiro, amigo, era um preto magro já passado do ponto, carregando as malas dos metidos a lordes que chegavam oriundos da capital e de outras cidades circunvizinhas, no expresso rodoviário dali. Quando desembarcavam passageiros dos ônibus, o velho logo oferecia a cacunda para carregar a bagagem. Às vezes carregava até gente. Zé Tripa ali, imitando-o, angariando um abastado passageiro cheio de malas para engordar suas economias.

O avelhentado partia do box rodoviário com duas malas, três sacolas, uma frasqueira, duas valises, uma maleta, um alforje, um saco e uma caixa, tudo no toitiço dele. Tripa aí que bem olhava, invejava e fazia as contas para bater o recorde dele, fazendo na hora o cálculo do peso carregado: noventa e dois quilos, puta que o pariu! Tinha de levar mais do que isto, tinha idade, sim, não seria um magricela senil que iria humilhá-lo na flor da idade.

Lá pelas tantas, quando não havia mais chegada ou partida de cata-corno, se encontravam, os dois, mestre e neófito, na banca de jornais do finado Odilo, ouvindo as exigências de Dona Maria de querer tudo no devido lugar. Rosas ouvia de nada, não emitia uma só palavra. Só piscando os olhos, cara lisa, concordava.

O macróbio andejo ensinava, nas horas vagas, o que era a vida ao imberbe Tripa e profetizava coisas que o adolescente não seria capaz de discernir naquele momento. Era, exagerava nos relatos deixando o ouvinte arrepiado com trajetória tão tortuosa. Mas não dispensava uma só vírgula da narrativa, tentando entender aquele labirinto de experiências. Falava de tudo: de alcoviteiro, ticoqueiro, calunga, enredeiro, artesão, canavieiro, intrujão, habilidades zis numa pessoa só, competência além da conta para um lugar tão sem perspectivas. E Tripa, ao que parece, apreendia tudo com o tempo.

Quando Dona Maria cerrava as portas da banca, ao meio dia, eles se dirigiam para o pavilhão de Dona Zefinha, hora das refeições. Engoliam seco, não sobrava reserva para refrigerantes ou sucos, só um copo d’água para ajudar a descer a comida entalada na garganta. Um esforço enorme para que a iguaria num ficasse inchada no bucho. E à sesta aguardavam alguém que saltasse em terra com seus bagulhos, acocorados no tempo. Enquanto isso, nada faziam e ficavam ali ouvindo imposturas do Marquinhos-Ôio-de-gato, os imbróglios de Nito Maguinho e do solene Tó Zeca, um trio de fraudulentos contadores das petas mais cabeludas, jactantes insinuadores de uma verdade acima da compreensão dos bestas, alegrando o mormaço da tarde com chistes nada convencionais.

O Tripa, magro, seco, cotoco de gente, raquítico, seguia os passos do carregador de bagagens até quando ele se abufelava dos despautérios inventados pela tríade mentirosa dos conversadores de potoca.

Certa feita o Marquinhos-Ôio-de-gato narrou com minudências um contato seu de quarto grau com viajantes de um objeto voador não identificado, ocorrido dias atrás, perto das pedrarias do Rio Pirangí, numa noite enluarada. Conta ele que não teve um só pingo de receio, encarando-os no topete de sua nobre coragem e desfiando detalhes íntimos em conversação animada, ali, em cima da bucha, envolvendo todo mundo como que hipnotizados pela narração dele. Para provar que possuía o endereço dos tais alienígenas, fez questão de mostrar aos presentes um cartão postal, tipo holograma, de lá da terra deles, inclusive, convidando-o para um final de semana naquela galáxia distante. E mais: sustentava ele ser perto e, como bom amigo de todos, estendia o convite recebido aos presentes. Rosas irritado com a invencionice saiu esbravejando aquela tal falsa persuasão.

- Esse aprendeu direitinho com o Tó Zeca!

Tó Zeca era o mestre dos mestres na arte de inventar inverdades ou verdades jamais ocorridas, aprendidas com Jaime de Letícia, a ponto de chegar, nas inventagens cabeludas, a dar uma rasteira no professor dele, de deixá-lo mudo por um bocado de anos. O seu principal discípulo era o Nito Maguinho que não ficava por baixo na arte de encobrir suas façanhas com detalhamento rico, enganando verossimilhanças. E Tripa achava gozado o trio ficcionista desconfiando da sanidade deles.

Pois bem, o tempo foi passando e a pedido de Rosas, Tripa foi contemplado com um apoio financeiro do prefeito, de uma boa quantia e que juntando com algumas moedas escondidas a sete chaves num mealheiro de barro, adquiriu, depois de muita lengalenga, uma banca, daquela tipo tolda, afixada na calçada do Teatro Cinema Apolo, melhorando de vida com seu próprio negócio. Como sinal de agradecimento ao velho Rosas, todo dia ele convidada o amigo para refeição no pavilhão de Dona Zefinha, sinal de gratidão imensa, já que arredou pé na vida de carregador, posto ver que não tinha nenhum futuro, principalmente por ouvir leseiras e conselhos de gente da estirpe da trindade mentirosa dos inveterados. E mais prosperava. Como bom samaritano, sempre ajudava nas despesas de Rosas. E prosperou mesmo. Jeitoso, surtiu a tolda com revistas dilaceradas, jornais pretéritos, bombons estragados, confeitos meleguentos, cigarros de palha, chicletes chupados, bolas furadas, bisquís laxados, souvenirs quebrados, bugigangas inutilizadas, coisa velha, artigos para presentes, seminovos, utensílios usados, gibís despaginados, folhetos de cordel encardidos, alternativos do tempo do ronca, emblemas encardidos, camisas de times de futebol com sovaco rasgado, temperos inventados, condimentos da hora, ervas santas inócuas, raízes de todo tipo de pau, ervas daninhas, orações milagreiras, meizinhas, simpatias, livros espíritas desencadernados, catecismos enodoados, imagens de santos danificadas, bonecos de barros faltando um taco, carrancas, quinquilharias e unguentos.

- Isso parece mais um armarinho de lixo, só tem coisa imprestável, meu ! -, mangava Nito Maguinho:

- Num sei cuma é que um povim desse gosta de tanta tranqueira! Mas negóço honesto, dá trabaio e eu faço de tudo! -, expressava a sua satisfação contra o escárnio do mangador. Transava tudo: trocava um ferro elétrico que não mais funcionava por um urinol; uma coleção de tio Patinhas sem capas por uma chave de fenda; um manual de bruxaria por um liquidificador queimado; passava um risco no chão, ele negociava. E foi com esta ventura de bom comerciante, que certo dia o Nito Maguinho se encostou ao empreendedor astuto e aconselhou ao Tripa a fazer aquisição de um automóvel adquirido pelo enrolão num concurso de pinoia. Tripa endoidou: era verdade, pela primeira vez na vida via que um dos integrantes daquela besteirada toda, falava a verdade. Ainda desconfiou, conferiu tudo; ficou arrodiando e depois de uma inspeção atenta num minucioso walkaround, pagou em moeda vigente e a vista.

- Essa foi a maior moleza de negóço!! -, gritava incontido Tripa.

Abestalhado, o adquirente danou-se a fazer piruetas mentais, contando, somando, subtraindo, multiplicando, dividindo, tirando a prova dos nove; comparando o preço do combustível, do litro de gasolina, das despesas que agora teria de ter, em relação às suas vendas; esquentava os chifres com cada conta, fedia, somava, fumaçava, sobrava tanto - eita fedor de chifre queimado da gota; dividia, faltava muito; depois multiplicava e aí é que a conta não dava; ficava zarolho com o resultado obtido: tô fudido! E o pior não era nada, nem sabia guiar o veículo. Nito Maguinho, condescendente, não queria deixá-lo na mão, oferecendo-se a dar umas aulas ao comprador em troca de algumas moedas, o que, desconfiado de novo trote, mandou-lhe tomar banho nos cafundós de Judas.

- Se eu for ter aula de motorista com esse pinoteiro, termino perdendo o carro, ôxe! Se sou bom, vou aprender sem se ensinar!

Sozinho, Tripa ficou manipulando marchas, setas, limpadores, manivelas, tudo, se assenhoreando, não antes dar quatro arranhões, arrancar um para-lama, deixar um rombo no piso, quebrar o para-brisa e deixar três pneus estourados com sua habilidade em não saber se livrar do meio-fio. Era uma perícia de barbeiro tirando fino em postes, gente, muros, polícia, desavisados. O carro não era lá tão novo mas dava para andar. Era o que se podia dizer do que normalmente é conhecido por mandú, um loré daqueles imprestáveis, caindo as bandas, todo afixado no barbante, desconjuntado, empenado, emassado, mas aos olhos do dono, ah! envaidecedor, um daqueles tipo de capa de revista, lindo de morrer. Destá. Mas, entre sopapos e engulhos, aprendeu sozinho a conduzi-lo, depois de muitos altos e baixos, mangações do povo, reclamações de pedestres e truculentas repreensões dos policiais locais. Os gastos foram então aumentando e ele exibia a fumaçada do cérebro: no primeiro freio que deu terminou com o solado do sapato gasto, levando o piso e o pedal para os ares, parando assim com os próprios pés.

- Ainda adestro este burro brabo! Vai ficar mais ensinado que cachorro de rico! -, e não foi só, numa curva o volante rodou tanto, mas tanto mesmo, que acabou invadindo a residência de Fortunato Laranjeira, sem ao menos pedir licença.

- Vôte, esse carro quer morar na casa dos outros, é? -, isso sem contar com o nó que deu nos braços, dando maior trabalho para desamarrá-los: - Eita nó-cego! Por causa disso, confundiu-se tanto, não se sabendo até hoje qual dos dois braços é o direito ou o esquerdo. Nisso, teve uma vantagem: escrevia com uma e com outra, virando ambidestro.

- Parece que depois que troquei as mãos e os braços fiquei mais sabido.

Verdade. Mas o negócio fedeu: reconstruiu a casa do sujeito e ficou sem o veículo uns quinze dias por causa dos serviços de lanternagem e ajustes mecânicos. Ajeitar mais o quê naquilo? Depois de consertado, saiu passeando por aí, quando avistou a prendada Nonília Trambolho. Menino, o coração dele deu uns pinotes e de tão extasiado, errou na debreiada deixando engrenada uma marcha, de ficar somente na primeira durante todo trajeto do flerte.

- Vou perder a mulher, pode?

Ah! Fez força, arengou com a alavanca, arrancou tudo e o carro esquentou, fumaçou e depois estancou de vez, não pegando nem com reza forte. Empacou ali mesmo e, para desgraça dele, Nonília só mangando. Insistiu tanto no azougue que um ano e meio depois, devido tal incidente, estava ele com carro ajustado e casado com Nonília, uma porção de dívidas em diversas oficinas mecânicas, razão porque ele, a cada dia, recorria a desconhecidos. Era um mecânico para cada problema surgido, visto ele não confiar mais em ninguém que botasse a mão no seu patrimônio e não resolvia o defeito, ao contrário, aparecia sempre outro.

- Esses caras de oficina são tudo enrolão! Chego com uma bronca e saio com outra! Pode?

Pois é. Bem, nas tardes de domingo, o casal dava de passear no bicho. Eles punham a melhor roupa do casal e desfilavam seu orgulho na Praça Saulo Saranhos, anchos, envaidecidos. Que coisa linda! Uma vez no meio do prazeiroso devaneio, algo do inopinado irrompera causando transtornos: o carro passou a dar tiros.

- Eita! Será faroeste? Esse carro é pistoleiro, por acaso?

Os dois escondidos embaixo dos assentos não sabiam de onde vinham os pipocos, seria alguma vingança? Não, mas por via de dúvidas se escondiam no interior do automóvel. Alguém os socorrendo, anunciava peremptoriamente uma satisfação meia escorregada para tal fatalidade.

- Deu bexiga no platinado, tem de lixá-lo bem para ver se dá certo pro bicho andar sem peidos.

O altruísta interventor, ajeitou tudo ali mesmo, recebendo, depois de uma verdadeira mão-de-obra inacabada, apenas um muito obrigado por pagamento. O cara ficou fulo e praguejou contra a mão de figa do Tripa. Destá.

Depois de trezentos e vinte e cinco voltas na praça, a mais visitada e aconchegante da cidade, ufano em ser possuidor de um objeto que encheria de inveja aquele povinho, novamente o condenado pifou.

- A bateria arriou, tem alguma coisa roubando corrente!

- Então prende logo esse ladrão, ora!

Tripa agoniou-se e foi atrás de um mecânico. E sob muitas requerenças encontrou um que se encontrava bicado, trocando as mãos pelas pernas que se meteu a remexer no alternador, gerador, arreando o motor, tirando porcas, remendando mangotes, arrancando cabos, trocando velas, um verdadeiro desmoronamento da gota. Só se via o carro se espragatando. Tripa triste e impaciente vendo seu patrimônio vasculhado e decomposto assim, ah! quase chora de tanto desconjuntamento.

- Aqui não dá, tem que levar para a oficina -, disse o ajeitador.

- Eita! De novo??

- Se quiser o carro bom, tem que levá-lo pra lá!

Pronto. Rebocado sob tremenda humilhação, por fim o veículo chegou na oficina. Ai foi pior: viu serem arrancadas todas as peças das particularidades do inominado.

- Será que acertam botar de novo no lugar?

- Não se mete, mulher, eles sabem o que estão fazendo! Espero.

Anoiteceu e o carro solava, solava, solava e nada de pegar. Entrou a segunda-feira, saiu na terça, passou pela quarta, invadiu a quinta e na sexta de tarde estava pronto. E Tripa, insone, orgulhoso, na maior ansiedade de passear nele. Ôxe, quando o cara berrou que estava pronto, Tripa não se conteve e já guiando sem ao menos pagar a conta da oficina. Há, não demorou muito. Parece que rogaram praga. Só sendo!

- A bobina tá quente e arriou a bateria de novo!

E foi de sexta para sábado, de sábado para domingo, entrou pela segunda, nem se esperava na terça e já estava na quarta ao meio dia, Tripa nervoso que só, teve de comprar motor de partida, buchas, platinado, condensador, bobina, rotor, jogo de velas, correia e induzido. Tudo novo.

- Esse bicho que me ver pobre de Jó!

Tudo certo, saiu ele de mãos dadas com Nonília, na estrada da Usina Serrado Azul, quando ouviu-se um estrondo. Para o carro, desce e vê um pneu furado. Procura a chave-de-roda e o macaco. Cadê? Na procura vem um caminhão da Usina Trumbaty em disparada, buzinando muito e, que desdita, arranca uma banda do seu desejado fusca. Eita! Um desmantelo!!

- É cego, é?

- Por que não butou o triângulo? Quando vi tava em cima, ora!

Mais prejuízos, nem tinha chave de roda nem macaco e ainda por cima, agora, sem a porta do lado do motorista, esquecida aberta durante a procura dos acessórios. O que ele achava ser um jeitoso bem apetrechado, agora estava todo deformado. E agora? O caminhoneiro zarpou e, o coitado, ficou falando sozinho, com uma mão na frente e outra atrás. Lá para as tantas, depois de muito se esganar, eis que, de novo, um bom coração encostou para ajudá-lo.

- Bem - disse o sangue bom -, o carro não presta. Mas se trocar o pneu, dar pro senhor levá-lo até uma oficina.

- Pelo amor de Deus, num guento mais esse negócio.

- Calma, vou ajudá-lo no que posso.

Ah, o cara arrancou o pneu furado e pediu o estepe. Que é isso? Não havia estepe algum. Foi aí que Tripa, sem saída, resolveu pedir carona na boleia de um caminhão canavieiro, descendo numa borracharia. Lá, viu seu pneu ser condenado, exigindo agora um outro novo, o que estava completamente fora de cogitação. O borracheiro, ainda atencioso, ofereceu-lhe um outro, seminovo, mais barato, estava meio rodado com uns duzentos mil remendos mas ainda aguentava uns quilômetros; nem balbuciou, aceitou, ajeitou, tudo ok, pulou numa carroça e chegou onde se encontrava Nonília chorando, ali sozinha naquela escuridão, perto do cemitério e onde corria tarado a noite toda. Era só o que faltava! Como não havia jeito, teve de ele mesmo tentar repor a roda no carro. Enrolado, percebeu que perdera dois dos parafusos da jante, colocando o pneu assim mesmo.

- Você vai sair daqui de qualquer jeito, seu amolestado!

E saiu mesmo. Depois que deu um toque, o bicho pegou e saiu remoendo de volta para a cidade.

Nem havia ainda se livrado daquele susto, quando, em plena Rua Coronel Irinácio, o pneu despencou torando os parafusos restantes.

- É hoje! Parece mais que pisei em rastro de corno!

É, uma verdadeira bronca: o carro dormiu com a venta enfiada no muro da calçada de Zezinho do Sport. E não tinha quem conseguisse arrancá-lo dali.

- Pronto, fica aí desgraçado, amanhã arresolvo!

No outro dia, juízo queimando, providências tomadas, o carro no ponto, foi trabalhar. Esse bicho vai acabar comigo, pensou ele.

Domingo de novo, ele e Nonília inventaram de ir para Batente, povoado próximo de Alagoinhanduba, e aceleraram na piçarra com a felicidade peculiar aos que se encontram em pleno gozo de suas posses. Era um vento fresco narinas a dentro, uma realização aprazível comungada com os familiares, capaz de estourar em alegria nunca antes degustada por aqueles corações sofridos. Nonília já reclamava do frio anunciando que griparia logo. Já estava com os septos nasais esfolados de tanto espirrar.

- Guenta aí, mulher. Isso passa, veja o passeio bom!


Adiante as curvas, as retas, a paisagem, nunca se afastaram tanto na vida. Foi uma verdadeira ousadia, nem sabia direito conduzir o veículo e já se esgueirava pela rodovia estadual sem se dar conta do que podia acontecer. Estavam leves, nada poderia estragar. É, e não esperavam pela polícia.

- Cadê a carta ?

- Botei ontem no correio!

Ficou preso por soltar gracinha, enquadrado por desacato à autoridade. Carro retido, saiu a pé com a esposa, pegando carona de volta.

De um estalo, no outro dia, foi até o usineiro cobrar os prejuízos causados pelo caminhão, apresentando ao ricão um orçamento que dava para comprar dois carros zeros. O negócio embromou, fazendo com que o traste do Tripa chiasse, choramingasse, lamuriasse, esperneasse, o usineiro desconfiado, resolveu depois de tanta pacutia chorenta, pagar a metade do cobrado. Ôxe, uma festa! Tripa deu três saltos soltos, largou propina para o policial rodoviário, liberou o auto para a oficina, arrumou o carro, todo engalanado, acessórios esquisitos como um pisca-pisca que mais parecia uma árvore de natal; um brake light que os mangadores chamavam de para-corno; uma imagem de São Jorge matando o dragão no para-brisa; uma bandeira do Flamengo na antena; brebotes balançando nos vidros laterais; botou um som incrementado, quatro pneus novos, porta emassada, tudo nos trinques.

- Agora sim, vamos para Batente!

Novamente interceptado pela polícia, faróis não acendem; stop, nada; pisca não assinala; extintor de incêndio, vazio; limpador, não funciona; não tem cinto de segurança; o vidro da porta, não sobe; dirigindo de sandália; falta o retrovisor externo do motorista; ignição, pegando por ligação direta; sem placa; infrações assim nem vendendo o carro dava para pagar. Foi então que Triupa contou um história triste, abufelou-se, babou o ovo do guarda e conseguiu sair depois de pagar mais uma propina, ficando o automóvel - se é que se pode chamar aquilo de automóvel - apreendido. Depois trouxe o mecânico, dois dias para deixar tudo em ordem, a perícia exigente, descobrindo a razão do veículo puxar para um dos lados que só bicho brabo, quando se aproximava de mato. Um cabrito. Puta que o pariu! Na cadeia.

- Cadê os documentos do fusca?

- Quiz documentos ? Eu comprei um carro, num foi papel, não!

Resultado: teve de legalizar o veículo não sem antes extorquir meio mundo de gente, molhando a mão dos funcionários do Detran, dando gorjeta para o carcereiro soltá-lo com o fim de resolver o problema; deu uma bola gorda pro delegado e, ainda, a título de gracejo, uma bolada correspondente a umas vinte cervejas para os policiais. Tudo justo e acertado, debreou o carro e ficou feliz. Uma azáfama incontida no peito. Que maravilha!

- Agora o bicho anda até embaixo d’água!

No seu entusiasmo preferiu voltar por um atalho numa estrada de barro, evitando passar pelos patrulheiros, podia ser que botassem pantim pra cima dele. Passou por um atoleiro, encheu o carro d’água e ficou lá agarrado na lama. Ôxe, teve de vir trator de longe para puxá-lo. Arrancado do atoleiro, foi conferir o estrago. Resultado: a lama de fora estava toda dentro do carro. Quando foi conferir por baixo mais parecia uma tábua de tiro ao alvo de tanto buraco que se via no papo. Arretou-se, mandou consertar tudo.

Chegou em casa pegou o caderninho e começou a fazer conta, adições, subtrações, divisões, multiplicações, noves fora, uma dívida enorme, já empenhado o relógio, a banca, a bicicleta, a pulseira de ouro de Nonília, o revólver, um liquidificador, uma penteadeira de estimação, a tv a cores, a cama do casal, três botijões de gás, as vendas futuras e o sono. O responsável por isso descansava na calçada.

E lá vinha no outro dia um bendiz que deslizava; o burrinho de freio que estourou; a correia que tá gasta; o gerador que tá pifado; o alternador que não funciona; o tanque de combustível furado; a polia que tá empenada, dando uma folga de dançar o motor; o câmbio que tá roncando na segunda, terceira e na quarta; o disco de freio tá deslizando; o platôr de embreagem sifu; o filtro de óleo tá podre; a ferrugem tá estourando no capô, na mala e no resto.

- E esse carro fica se balançando, parece empolgado num sei com quê? O danado faz festa enquanto eu vou me fudendo de trabalhar para sustentar esse desgraçado!!!!

E era amortecedor ruim, falta de freios devido lona estragada; baixando o nível de óleo, o retentor está desgastado, o motor já está rajando.

- Só vai se for na retífica!

- Puta merda!

Mais quinze dias desesperado de espera, amonta nele ainda e sai feliz. Sozinho, resolveu sair da rotina e arrumou uma concubina, tomou cachaça e se ouriçou todo. Foi dar uma volta com a rapariga, quando o motor morreu. Ficou enfezado com essa. Depois de estancar, ele agora se achando sabedor de tudo, vai pro motor e fiscaliza o que há de errado. O capô lhe cai sobre a cabeça.

- Quer me comer é desgraçado? Vá engolir a mãe, viu?

Lembrou-se que o motor estava na traseira. Fez uns gestos estranhos do carro pegar sozinho, contando tuxe na medida. Para aliviar a bronca, agarrou-se na moça e trepou ali mesmo. Depois do serviço sexual, tomou uma. A moça começou nas intimidades a dizer de sua vida, seus problemas, a penúria. Eita! Lá vem o enterro voltando. Deu-lhe uns trocados e zarpou.

Quase perto de casa, puft! Enguiçado de novo. Cheio da meropéia, desce, chuta o carro e completamente aborrecido se dirige para casa, aos empurrões do infortúnio. Nova investida de profissional do ramo e o carro fica bom. Não demora muito.

- O peão e coroa da caixa de marcha está ruim.

E lá vai carreta sincronizada que dançou; pivô de suspensão, terminal de direção, sem fim e o setor da caixa de direção, polia do alternador, rolamento da roda, virgem!

- Por isso que a roda saiu sozinha por aí, desgraçada!

Para completar, Nonília desconfiada de que ele andava pulando a cerca, dá-lhe uns bregues acentuados para piorar o seu azarão.

A amante, por outro lado, vive insistentemente cobrando dele a separação da mulher, fechando as pernas até que ele se resolvesse.

- Dá um chute na bunda dela, porra!

No meio da apunrinhação, aciona o motor, engata primeira e se manda azoado.

- O motor caiu no meio da rua, seu!

- Por isso que o desgraçado tava tão silencioso!

Os mecânicos sorridentes recolheram o desditoso, Tripa já triste, liso e desesperado. A mulher não dava trégua, a amante na cola e o carro, isso aí. E lá vai bojo de escapamento, para-brisa rachado, freio-de-mão inutilizado, farol direito queimado, pisca-pisca traseiro, capô, suspensão dianteira desalinhada. Para quem nunca bebia, quer dizer, por costume, encheu a cara, pegou o carro e estacionou na calçada com muito cuidado. Demonstrando uma tranquilidade disfarçada, entrou em casa, tomou um banho para relaxar e notou o silêncio. Desconfiou daquela paz. Ao sair do banho a mulher lhe esperava com uma mão-de-pilão e uma carta da rapariga encontrada no bolso da calça, que imprudência desavisada! Ôxe! Naquela hora, foi cacete, bate boca, arrastão, capoeira, rasteira, mandinga, bisquisada, caçarolada, bule no quengo, píris, xícaras, jarrada, bolada, beliscada, trincada, mãozada, bicada, mordida, puxada, colherada, facada, garfada, cusparada, porrada, saculejada, desembaraçada, chicotada, moleirada, cinturãozada, toalhada, empurrada, caçolada, cadeirada, tamboretada, canetada, chutada, peitada, pernada, bundada, barrigada, umbigada, braçada, pescoçada, telefonada, cinzeirada, camada de pau, sapatada, chinelada, antenada, cuscuzada, macarronada, feijoada, marmelada, laranjada, filtrada, papelada, maquinada, sacaneada, linguarada, testada, caqueirada, vergalhada, tijolada, ripada, vassourada, canecada, canelada, chave de braço, de perna, de fenda, de roda, de casa. Azougue total madrugada adentro e o entrevero tinha fôlego para chegar de manhã. Nonília roupa rasgada, nuínha da silva, teve medo. Tripa partiu com mais de mil pra cima dela, ela correu, saiu pelo meio da rua, ela nua, ele de cacete na mão, desapareceram. Ele volta ofegante, não alcançou a carreira dela. Dirigiu-se aos presentes e perguntou pro Marquinhos-ôio-de-gato, ao Nito Maguinho e ao Tó Zeca se a viram passar para onde. Sob a negativa deles, retorna para casa e se apossa de um punhado de troços, correntes, barbantes, cordas, cordões, nylon, fio elétrico, cabo de aço, linhas e afins e amarra o carro no poste da calçada. Como? Isso mesmo, amarrou o carro no poste da calçada, com muito cuidado, com zelo, paciência, amarra todinho no poste da rua, horas e horas amarrando, o povo ajuntando para presenciar atitude tão insólita.

- Onde já se viu acorrentar um carro?

- Será que alguém quer roubá-lo?

- O que será?

Depois de bem atado com dez metros de corda, trinta e cinco metros de barbante, vinte e cinco correntes grossas, oito cabos de aço e não sei quantos tipos e metros de fios e linhas, ele se esconde no interior da casa.

- Tripa, ainda falta amarrar direito as rodas! -, alguém que gritou pra ele, já com ar de gozação.

Retorna com mais cordas às mãos e completa o ritual, escondendo-se novamente no interior de sua residência.

Quando a multidão já vai se dispersando na maior das interrogações daquela cena, eis que ele aparece vestido a rigor, de como quem vai para uma luta. Mostrou-se num quimono, lutador de karatê. Daí, dá um berro e identificam um martelo na sua mão, uma marreta, mais precisamente. Ele se dirige ao carro imóvel, presa fácil e desfere golpes violentos. Olhos esbugalhados, um ar de louco no ar, uma ira insana tomando conta de Tripa, seu sonho, aquele carro que lhe dera muita dor de cabeça, acabara com seu casamento, fizera pouco dele, endemoninhado, nunca mais mangaria dele, nunca mais.

- Ele está doido!

- Endoideceu de vez!

Depois de ver os destroços, Tripa fitou o que restava do seu bem amado e se vira para a plateia. Está desfigurado, bate uma mão na outra demovendo a poeira que porventura pudesse sujá-lo, passa o braço na testa demonstrando ar de cansaço, põe as mãos à cintura, olha enviesado e se dar por satisfeito.

- Tô vingado!

Alguém ainda ousou se aproximar e desferir uma pergunta ao louco. Mas, nenhuma sílaba obteve por resposta.

A mulher escafedera, nua e perdida naquela noite sinistra. E como o futuro a Deus pertence, teria de recomeçar, procurar o velho Rosas e se aconselhar, começar de novo.

- Mas, vem cá, diz uma coisa: pra quê você amarrar o carro, Tripa?

- Pra não escapulir da minha vingança. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.


Imagem: La recolte, da pintora portuguesa Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992).

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