sexta-feira, fevereiro 19, 2016

A FILOSOFIA DE DELEUZE & GUATTARI & O UMBIGO DE Rubens Rewald



UMBIGO – Tive oportunidade assistir em 2004, à montagem do premiado espetáculo UmBigo, do diretor, roteirista e dramaturgo Rubens Rewald, no Centro Cultural São Paulo, com direção do diretor, critico e professor Sérgio Salvia Coelho, contando a história de uma garota de treze anos que quer saber do pai sobre as circunstancias da morte da mãe dela. Ao mesmo tempo, um homem e um meninop tem muito a conversar. Desse quadrilátero humano, surge um enredo com lances de transgressão e desejo. O destaque ficou por conta da atuação da atriz, produtora e jornalista Anna Cecília Junqueira. Veja mais aqui.


O QUE É A FILOSOFIA, DE DELEUZE & GUATTARI - [...] Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger  do caos.  Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem. São velocidades infinitas, que se confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso que percorrem, sem natureza nem pensamento. É o instante que não sabemos se é longo demais ou curto demais para o tempo. Recebemos chicotadas que latem como artérias. Perdemos sem cessar  nossas idéias. E por  isso que queremos tanto agar-rarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos somente que nossas idéias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes, e a associação de idéias jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança,  contigüidade, causalidade, que nos permitem colocar um pouco de ordem nas idéias, passar de uma a outra segundo uma ordem do espaço e do tempo, impedindo nossa "fantasia" (o delírio, a loucura) de percorrer o universo no instante, para engendrar nele cavalos alados e dragões de fogo. Mas não haveria nem um pouco de ordem nas idéias, se não houvesse também nas coisas ou estados de coisas, como um anti-caos objetivo: "Se o cinábrio fosse ora vermelho, ora preto, ora leve, ora pesado..., minha imaginação não encontraria a ocasião para receber, no pensamento, o pesado cinábrio com a representação da cor vermelha." E, enfim, para que haja acordo entre coisas e pensamento, é preciso que a sensação se re-produza, como a garantia ou o testemunho de seu acordo, a sensação de pesado cada vez que tomamos o cinábrio na mão, a de vermelho cada vez que o vemos, com nossos órgãos do corpo, que não percebem o presente, sem lhe impor uma conformidade com o passado. É tudo isso que pedimos para formar uma opinião, como uma espécie de "guarda-sol" que nos protege do caos. Nossas opiniões são feitas de tudo isso. Mas a arte, a ciência, a filosofia exigem mais: traçam planos sobre o caos. Essas três disciplinas não são como as religiões,  que invocam dinastias de deuses,  ou a epifania de um deus único, para pintar sobre o guarda-sol um firmamento, como as figuras de uma Urdoxa de onde derivariam nossas opiniões. A filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento e que mergulhemos no caos. Só o venceremos a este preço. Atravessei três vezes o Aqueronte como vencedor. O filósofo, o cientista, o artista parecem retornar do país dos mortos. O que o filósofo traz do caos são variações que permanecem infinitas,  mas  tornadas  inseparáveis  sobre  superfícies  ou em volumes  absolutos,  que traçam  um  plano  de  ima-nência  secante:  não  mais  são  associações  de  idéias  distintas,  mas  reencadeamentos,  por  zona  de  indistinção,  num conceito.  O cientista  traz  do  caos  variáveis,  tornadas independentes por desaceleração, isto é, por eliminação de outras va-riabilidades quaisquer, suscetíveis de interferir, de modo que as variáveis retidas entram em relações determináveis numa função: não mais são liames de propriedades nas coisas, mas coordenadas finitas sobre um plano secante de referência, que vai das probabilidades locais a uma cosmologia global. O artista traz do caos variedades, que não constituem mais uma reprodução do sensível no órgão, mas erigem um ser do sensível, um ser da sensação, sobre um plano de composição,  anorgânica,  capaz de restituir  o infinito.  A luta com o caos,  que Cézanne e Klee mostraram em ato na pintura,  no coração da pintura,  se encontra de uma outra maneira na ciência,  na filosofia: trata-se sempre de vencer o caos por um plano secante que o atravessa. O pintor passa por uma catástrofe, ou por um incêndio, e deixa sobre a tela o traço dessa passagem, como do salto que o conduz do caos à composição. As próprias equações matemáticas não desfrutam de uma tranqüila certeza que seriacomo a sanção de uma opinião científica dominante, mas saem de um abismo que faz que o matemático"salte de pés juntos sobre os cálculos", que preveja que não pode efetuá-los e não chega à verdade sem "sechocar de um lado e do outro". E o pensamento filosófico não reúne seus conceitos na amizade, sem serainda atravessado por  uma fissura que os reconduz ao ódio ou os dispersa no caos coexistente,  onde épreciso retomá-los, pesquisá-los, dar um salto. É como se se jogasse uma rede, mas o pescador arrisca-sesempre  a ser  arrastado e de se encontrar  em pleno mar,  quando acreditava chegar  ao porto.  As trêsdisciplinas  procedem por  crises  ou abalos,  de maneira  diferente,  e é a sucessão que permite falar  de"progresso" em cada caso. Diríamos que a luta contra o caos implica em afinidade com o inimigo, porque umaoutra luta se desenvolve e toma mais importância, contra a opinião que, no entanto, pretendia nos proteger dopróprio caos.  Num texto violentamente poético,  Lawrence descreve o que a poesia faz:  os homens nãodeixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suasconvenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento,para fazer  passar  um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar  numa luz brusca,  uma visão queaparece através da fenda, primavera de Wordsworth ou maçã de Cézanne,  silhueta de Macbeth ou de Ahab.  Então,  segue a massa dos imitadores,  que remendam o guarda-sol, com uma peça que parece vagamente com a visão; e a massa dos glosadores que preenchem a fenda com opiniões: comunicação. Será preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas, operar as necessárias destruições, talvez cada vez maiores, e restituir assim, a seus predecessores, a incomunicável novidade que não mais se podia ver. Significa dizer que o artista se debate menos contra o caos (que ele invoca em todos os seus votos, de uma certa maneira), que contra os "clichês" da opinião. O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página branca, mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso de início apagar, limpar, laminar,  mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão. Quando Fontana corta a tela colorida com um traço de navalha, não é a cor que ele fende dessa maneira, pelo contrário, ele nos faz ver o fundo de cor pura, através da fenda. A arte luta efetivamente com o caos, mas para fazer surgir nela uma visão que o ilumina por um instante, uma Sensação. Mesmo as casas...: é do caos que saem as  casas  embriagadas  de Soutine,  chocando-se  de um lado e do outro,  impedindo-se reciprocamente de nele recair; e a casa de Monet surge como uma fenda, através da qual o caos se torna a visão das rosas. Mesmo o encarnado mais delicado se abre para o caos, como a carne sobre o esfolado. Uma obra de caos não é certamente melhor do que uma obra de opinião, a arte não é mais feita de caos do que de opinião; mas, se ela se bate contra o caos, é para emprestar dele as armas que volta contra a opinião, para melhor vencê-la com armas provadas. É mesmo porque o quadro está desde início recoberto por clichês, que o pintor deve enfrentar o caos e apressar as destruições, para produzir uma sensação que desafia qualquer opinião, qualquer clichê (por quanto tempo?). A arte não é o caos, mas uma composição do caos, que dá a visão ou sensação, de modo que constitui um caosmos, como diz Joyce, um caos composto — não previsto nem preconcebido. A arte transforma a variabilidade caótica em variedade caóide, por exemplo o flamejamento cinza negro e verde de El Greco; o flamejamento de ouro de Turner ou o flamejamento vermelho de Staél. A arte luta com o caos,mas para torná-lo sensível, mesmo através do personagem mais encantador, a paisagem mais encantada(Watteau). Um movimento semelhante sinuoso e reptiliano, anima talvez a ciência. Uma luta contra o caos parecepertencer-lhe  por  essência,  quando  faz  entrar  a  variabilidade  desace-lerada  sob  constantes  ou  limites,quando a reconduz dessa maneira a centros de equilíbrio, quando a submete a uma seleção que só retém umpequeno número  de variáveis  independentes,  nos  eixos  de coordenadas,  quando instaura,  entre  essasvariáveis, relações cujo estado futuro pode ser determinado a partir do presente (cálculo determinista), ou aocontrário quando faz intervir tantas variáveis ao mesmo tempo, que o estado de coisas é apenas estatístico(cálculo de probabilidades). Pode-se falar, nesse sentido, de uma opinião propriamente científica, conquistadasobre o caos,  como de uma comunicação definida, ora por informações iniciais, ora por  informações degrande escala e que vai, no mais das vezes, do elementar ao composto, seja do presente ao futuro, seja domolecular ao molar. Mas, ainda aí a ciência não pode impedir-se de experimentar uma profunda atração pelocaos que combate. Se a desaceleração é a fina borda que nos separa  do  caos  oceânico,  a  ciência  se  aproxima  tanto  quanto  ela  pode  das  vagas  mais  próximas,  estabelecendo relações que se conservam com a aparição e a desaparição das variáveis (cálculo diferencial); a diferença se faz cada vez menor  entre o estado caótico,  em que a aparição e a desaparição de uma variabilidade se confundem, e o estado semi-caótico, que apresenta uma relação como limite das variáveis que  aparecem ou  desaparecem.  Como diz  Michel  Serres  a  propósito  de  Leibniz,  "haveria  dois  infraconscientes:  o  mais  profundo  seria  estruturado  como  um  conjunto  qualquer,  pura  multiplicidade  ou possibilidade  em geral,  mistura  aleatória  de  signos;  o  menos  profundo  seria  recoberto  de  esquemas combinatórios desta multiplicidade...". Poderíamos conceber uma série de coordenadas ou de espaços de fases como uma sucessão de crivos, dos quais o precedente sempre seria relativamente um estado caótico e o seguinte um estado caóide, de modo que passaríamos por limiares caóticos, ao invés de ir do elementar ao composto. A opinião nos apresenta uma ciência que sonharia com a unidade, com unificar suas leis e, hoje ainda, procuraria uma comunidade das quatro forças. Mais obstinado porém, o sonho de captar um pedaço de caos, mesmo se as mais diversas forças nele se agitam. A ciência daria toda a unidade racional à qual aspira, por um pedacinho de caos que pudesse explorar. A arte capta um pedaço de caos numa moldura, para formar um caos composto que se torna sensível, ou do qual  retira uma sensação caóide enquanto variedade;  mas a ciência o apreende num sistema de coordenadas, e forma um caos referido que se torna Natureza, e com o qual produz uma função aleatória e variáveis caóides. É desse modo que um dos aspectos mais importantes da física matemática moderna aparece em transições  na direção do caos,  sob a ação de atratores  "estranhos"  ou caóticos:  duas trajetórias vizinhas, num sistema determinado de coordenadas, não permanecem vizinhas, e divergem de maneira exponencial  antes de se aproximarem por  operações de estiramento e de redobramento que se repetem, e recortam o caos. Se os atratores de equilíbrio (pontos fixos, ciclos limites, toros) exprimem bem a luta da ciência com o caos, os atratores estranhos desmascaram sua profunda atração pelo caos, assim como a constituição de um caosmos interior  à ciência moderna (tudo,  coisas que se revelavam, de uma maneira ou de outra, em períodos precedentes, notadamente na fascinação pelas turbulências). Encontramos pois uma conclusão análoga àquela a que nos conduzia a arte: a luta com o caos só é o instrumento de uma luta mais profunda contra a opinião, pois é da opinião que vem a desgraça dos homens. A ciência volta-se contra a opinião, que lhe empresta um gosto religioso de unidade ou de unificação. Mas assim ela se volta, em si  mesma,  contra  a opinião propriamente científica,  enquanto Urdoxa que consiste,  ora na previsão determinista (o Deus de Laplace), ora na avaliação probabilística (o demônio de Maxwell): desli-gando-se das informações iniciais e das informações de grande escala, a ciência substitui a comunicação, pelas condições de criatividade, definidas pelos efeitos singulares de flutuações mínimas. O que é criação são as variedades estéticas ou as variáveis científicas, que surgem sobre um plano capaz de recortar a variabilidade caótica. Quanto às pseudo-ciências, que pretendem considerar os fenômenos de opinião, os cérebros artificiais de que se servem tomam como modelos processos probabilísticos, atratores estáveis, toda uma lógica da mesmo tempo, a luta do pensamento contra a opinião e a degenerescência do pensamento na própria opinião (uma das vias de evolução dos computadores vai  no sentido de uma aceitação de um sistema caótico ou caotizante). É o que confirma o terceiro caso,  não mais a variedade sensível  nem a variável  funcional,  mas a variação  conceituai  tal  como aparece  na  filosofia.  A filosofia  também luta  com o  caos,  como abismo indiferenciado ou oceano da disseme-lhança. Não concluiremos disso que a filosofia se coloca do lado da opinião,  nem que  a  opinião  passa  a  ter  lugar  na  filosofia.  Um conceito  não é  um conjunto  de ideias associadas, como uma opinião. Nem tampouco uma ordem de razões, uma série de razões ordenadas, que poderiam, a rigor, constituir uma espécie de Urdoxa racionalizada. Para atingir o conceito, não basta mesmo que os fenômenos se submetam a princípios análogos àqueles que associam as idéias, ou as coisas, aos princípios que ordenam as razões. Como diz Michaux, o que basta para as "idéias correntes" não basta para as "idéias vitais" — as que se deve criar. As idéias só são associáveis como imagens, e ordenáveis como abstrações; para atingir  o conceito,  é preciso que ultrapassemos umas e outras, e que atinjamos o mais rápido possível objetos mentais determináveis como seres reais. É já o que mostravam Espinosa ou Fichte: devemos nos servir de ficções e de abstrações, mas somente na medida necessária para aceder a um plano, onde caminharíamos de ser real em ser real e procederíamos por construção de conceitos. Vimos como este resultado podia ser obtido na medida em que variações se tornavam inseparáveis, segundo zonas de vizinhança ou de indiscernibilidade:  elas  deixam  então  de  ser  associáveis,  segundo  os  caprichos  da  imaginação,  ou discerníveis e ordenáveis segundo as exigências da razão, para formar verdadeiros blocos conceituais. Um conceito  é  um conjunto  de  variações  inseparáveis,  que  se  produz  ou  se  constrói  sobre  um plano  deimanência,  na medida em que este recorta a variabilida-de caótica e lhe dá consistência (realidade).  Umconceito  é,  pois,  um estado  caóide  por  excelência;  remete  a  um caos  tornado  consistente,  tornadoPensamento, caosmos mental. E que seria pensar se não se comparasse sem cessar com o caos? A Razãosó nos oferece seu verdadeiro rosto quando "ruge na sua cratera". Mesmo o cogito só é uma opinião,  nomáximo uma Urdoxa, enquanto não se extrai dele as variações inseparáveis, que dele fazem um conceito;enquanto se renuncia a encontrar nele um guarda-sol ou um abrigo; quanto se deixa de supor uma imanênciaque se faria por  ele mesmo — ao contrário,  é preciso colocá-lo sobre um plano de imanência ao qualpertence e que o conduz ao pleno mar. Numa palavra, o caos tem três filhas segundo o plano que o recorta: são as Caóides, a arte, a ciência e a filosofia, como formas do pensamento ou da criação. Chamam-se decaóides as realidades produzidas em planos que recortam o caos. A junção (não a unidade) dos três planos é o cérebro. Certamente, quando o cérebro é consideradocomo uma função  determinada,  aparece  ao  mesmo tempo  como um conjunto  complexo  de  conexõeshorizontais  e de integrações  verticais,  reagindo umas  sobre  as  outras,  como testemunham os  "mapas"cerebrais. Então a questão é dupla: as conexões são preestabelecidas, guiadas como por trilhos, ou fazem-see desfazem-se em campos de forças? E os processos de integração são centros hierárquicos localizados, ouantes formas (Gestalten),  que atingem suas condições de estabilidade,  num campo do qual  depende aposição do próprio centro? A importância da Gestalttheorie, deste ponto de vista, concerne tanto à teoria do cérebro, quanto à concepção da percepção, já que ela se opõe diretamente ao estatuto do córtex, tal como aparecia do ponto de vista dos reflexos condicionados. Mas, quaisquer que sejam os pontos de vista considerados, não se tem dificuldade em mostrar que caminhos, inteiramente prontos ou em vias de se fazer,  centros,  mecânicos ou dinâmicos,  encontram dificuldades semelhantes.  Caminhos inteiramente prontos, que se segue aos poucos, implicam num traçado prévio; mas trajetos, que se constituem num campo de forças, procedem por resoluções de tensão, agindo também gradativamente (por exemplo, a tensão de reaproximação entre a fóvea e o ponto luminoso projetado sobre a retina, tendo esta uma estrutura análoga a uma área cortical): os dois esquemas supõem um "plano", não um fim ou um programa, mas um sobrevoo do campo inteiro. É isso que a Gestalttheorie não explica, do mesmo modo que o mecani-cismo não explica a pré-montagem. Não é de se surpreender que o cérebro, tratado como objeto constituído da ciência, só possa ser um órgão de formação e de comunicação da opinião: é que as conexões graduais e as integrações centradas permanecem sob o modelo estreito da recognição (gnosias e praxias, "é um cubo", "é um lápis"...), e que a biologia do cérebro se alinha aqui  com os mesmos postulados da lógica mais obstinada.  As opiniões são formas pregnantes, como as bolhas de sabão segundo a Gestalt, levando em conta os meios, os interesses, as crenças e os obstáculos. Parece então difícil  tratar a filosofia, a arte e mesmo a ciência como "objetos mentais", simples conjuntos de neurônios no cérebro objetivado, já que o modelo derrisório da recognição os encerra na doxa. Se os objetos mentais da filosofia, da arte e da ciência (isto é, as idéias vitais) tivessem um lugar, seria no mais profundo das fen-das sinápticas, nos hiatos, nos intervalos e nos entre-tempos de um cérebro inobjetivável, onde penetrar, para procurá-los, seria criar. Seria um pouco como no ajuste de uma tela de televisão, cujas intensidades fariam surgir o que escapa do poder de definição objetivo. Significa dizer que o pensamento, mesmo sob a forma que toma ativamente na ciência,  não depende de um cérebro feito de conexões e de integrações orgânicas: segundo a fenomenologia,  dependeria de relações do homem com o mundo — com as quais o cérebro concorda necessariamente porque delas deriva,  como as excitações derivam do mundo e das reações do homem, inclusive em suas incertezas e suas falências. "O homem pensa e não o cérebro"; mas esta reação da fenomenologia, que ultrapassa o cérebro na direção de um Ser no mundo, através de uma dupla crítica do mecanicismo e do dinamismo,  não nos faz absolutamente sair  ainda da esfera das opiniões, conduz-nos somente a uma Urdoxa, afirmada como opinião originária ou sentido dos sentidos. A viragem não estaria em outra parte, lá onde o cérebro é "sujeito", se torna sujeito? É o cérebro que pensa e não o homem, o homem sendo apenas uma cristalização cerebral. Pode-se falar do cérebro como Cézanne da paisagem: o homem ausente, mas inteiro no cérebro... A filosofia, a arte, a ciência não são os objetos mentais de um cérebro objetivado,  mas os três aspectos sob os quais o cérebro se torna sujeito, Pensamento-cérebro, os três planos, as jangadas com as quais ele mergulha no caos e o enfrenta. Quais são os caráteres deste cérebro, que não mais se define pelas conexões e integrações secundárias? Não é um cérebro por trás do cérebro mas, a princípio, um estado de sobrevôo sem distância, ao rés do chão, autosobrevôo do qual não escapa nenhum abismo,nenhuma dobra nem hiato. É uma "forma verdadeira", primária como a definia Ruyer: não uma Gestalt, nem uma forma percebida, mas uma forma em si, que não remete a nenhum ponto de vista exterior, como a retina ou a área  estria-da  do  córtex  não  remete  a  uma outra,  uma forma  consistente  absoluta  que  se  sobrevoa independentemente de qualquer dimensão suplementar, que não apela, pois, a nenhuma transcendência, que só tem um único lado, qualquer que seja o número de suas dimensões, que permanece co-presente a todas as suas determinações, sem proximidade ou distanciamento, que as percorre numa velocidade infinita, sem velocidade-limite, e que faz delas variações inseparáveis,  às quais confere uma equipotencialidade sem confusão. Vimos que tal era o estatuto do conceito como acontecimento puro ou realidade do virtual. E, sem dúvida, os conceitos não se reduzem a um único e mesmo cérebro, já que é cada um deles que constitui um "domínio de sobrevôo", e as passagens de um conceito a um outro permanecem irredutíveis, enquanto um novo  conceito  não  tornar  necessário,  por  sua  vez,  sua  co-presença  ou  a  equipotencialidade das determinações. Não diremos também que todo conceito é um cérebro.  Mas o cérebro,  sob este primeiro aspecto da forma absoluta, aparece bem como a faculdade dos conceitos, isto é, como a faculdade da sua criação,  ao mesmo tempo que estende o plano de imanência,  sobre o qual  os conceitos se alocam, se deslocam, mudam de ordem e de relações, se renovam e não param de criar-se.  O cérebro é o espírito mesmo. É ao mesmo tempo que o cérebro se torna sujeito, ou antes "superjecto", segundo o termo de Whitehead, que o conceito se torna o objeto como criado, o acontecimento ou a criação mesma, e a filosofia, o plano de imanência que carrega os  conceitos  e que traça o cérebro.  Assim, os  movimentos  cerebrais engendram personagens conceituais. É o cérebro que diz  Eu,  mas  Eu é um outro.  Não é o mesmo cérebro  que o das  conexões  e integrações segundas, embora não haja transcendência. E este Eu não é apenas o "eu concebo" do cérebro como filosofia, é também o "eu sinto" do cérebro como arte. A sensação não é menos cérebro que o conceito. Se consideramos as conexões nervosas excitação-reação e as integrações cerebrais percepção-ação, não nos perguntaremos em que momento do caminho, nem em que nível, aparece a sensação, pois ela é suposta e se mantém na retaguarda. A retaguarda não é o contrário do sobrevôo, mas um correlato. A sensação é a excitação mesma, não enquanto se prolonga gradativamente e passa à reação, mas enquanto se conserva ou conserva suas vibrações. A sensação contrai as vibrações do excitante sobre uma superfície nervosa ou num volume cerebral: a precedente não desapareceu ainda quando a seguinte aparece. É sua maneira de responder ao caos. A sensação vibra, ela mesma, porque contrai vibrações. Conserva-se a si mesma, porque conserva vibrações: ela é Monumento. Ela ressoa, porque faz res-. soar seus harmônicos. A sensação é a vibração contraída, tornada qualidade, variedade. É por isso que o cérebro-su-jeito aqui é dito alma ou força, já que só a alma conserva contraindo o que a matéria dissipa,  ou irradia,  faz avançar, reflete,  refracta ou converte. Assim procuramos em vão a sensação enquanto nos limitamos às reações e às excitações que elas prolongam, às ações e às percepções que elas refletem: é que a alma (ou antes a força), como dizia Leibniz, nada faz ou não age, mas é apenas presente, conserva; a contração não é uma ação, mas uma paixão pura, uma contemplação que conserva o precedente no seguinte. A sensação está pois sobre um outro plano diferente daquele dos mecanismos,  dos  dinamismos  e das  finalidades:  é um plano de composição,  em que a sensação se forma contraindo o que a compõe, e compondo-se com outras sensações que ela contrai por sua vez. A sensação é contemplação pura, pois é pela contemplação que se contrai, contemplando-se a si mesma à medida que se contempla os elementos de que se procede.  Contemplar é criar, mistério da criação passiva, sensação. A sensação preenche o plano de composição,  e preenche a si mesma preenchendo-se com aquilo que ela contempla: ela é enjoyment, e self-enjoyntent. É um sujeito, ou antes um injecto. Plotino podia definir todas as coisas como contemplações, não apenas os homens e os animais, mas as plantas, a terra e as rochas. Não são Idéias que contemplamos pelo conceito, mas os elementos da matéria, por sensação. A planta contempla contraindo os elementos dos quais ela procede, a luz, o carbono e os sais, e se preenche a si mesma com cores e odores que qualificam sempre sua variedade, sua composição: é sensação em si. Como se as flores sentissem a si mesmas sentindo o que as compõe, tentativas de visão ou de olfato primeiros, antes de serem percebidas ou mesmo sentidas por um agente nervoso e cerebrado. [...]. O QUE É A FILOSOFIA – O livro O que é a filosofia, dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, trata sobre o que é um conceito, o plano de imanência, os personagens conceituais, a geo-filosofia, ciência, lógica, arte, functivos e conceitos, prospectos e conceitos, percepto, afecto, do caos ao cérebro, entre outros assuntos. 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REFERÊNCIA
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: 34, 1995.


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