sexta-feira, fevereiro 29, 2008

PAULO FREIRE, HABERMAS, RUBEM FONSECA, RENATO MATOS, LOURENÇO MUTARELLI & BIRITOALDO

 
Festa do Largo, arte do poeta, artista plástico, cantor, compositor, multi-instrumentista e integrante do trio Sacassaia, Renato Matos.

PROEZAS DO BIRITOALDO - XII - Quando a adversidade aperta, o biltre bota o rabinho entre as pernasRolivânio e Penisvaldo eram mais que amigos, malungos propínquos se considerarmos a consangüinidade, ao que pela afetividade que nem siameses de tão pariceiros, cagado e cuspido, maria-vai-com-a-outra, parelha na indumentária, mesmo pantim, mesmo tope, o mesmo cardam, ora, dando trela para ariscas insinuações alheias. - Parece mais que tem cu no meio! - alardeavam aqueles fuxiqueiros que não poupam nem nenhuma santidade do céu de tanta uma ingrezia arrotada. Birito mesmo num se achegava neles por essa e outras tantas razões recolhidas do protocolo dos enredeiros insones. - Sei lá, esses dois são meio aluados, podem findar metendo eu no meio também e olhe o negócio pegando prá minha banda, eu hem! Pois bem, Birito agora se valia deles num momento meio esdrúxulo. - Cês arrepararam? - O quê? - Num viro nada? - Vimos você roncar solto! - Mais nada? - Absolutamente nada. - Isso é uma praga! Será que tô variando já? - Variar, cê já varia há tempo, não é novidade isso! - Pois é, meu, tô atrapalhado! - Que droga é nove que se assucede? Rolivânio e Penisvaldo ouviram atentamente e até se comiseraram com as lamúrias dele, a ponto de ficarem com os olhos rasos d'água. - Tamo vendo que tu precisa trabalhar, ganhar dinheiro, arrumar uma namorada... - É rapaz, tô com a praga de tempo ruim mesmo... - Deixa c'a gente, vamo salvar tua horta! - Mesmo? Num brinca! - Verdade, olhe, antes de mais nada vamo propor um trato.... Lá se ia Biritoaldo coadjuvante de um pacto de sangue, mortal. Ele tomou ciência da ritualística insólita e dos requisitos básicos para integrar a irmandade e ouviu atentamente o relato de que eles com toda sacralizada seriedade cortaram o dedo e enquanto o sangue escorria, um enfiou o dedo na boca do outro chupando o talho  com propósito de transfusão. - Chupa o meu, depois eu sugo o teu. Tome o meu agora. Me dê o seu. E ficavam trocando e repetiram três vezes. Depois, cada qual, como se fosse uma continência prum superior, bateram os calcanhares e enfiaram o dedo maior-de-todos no seu próprio cu. Algumas caretas entaladas tornavam suas faces lívidas com a rudeza do gesto. Um impado danado. O dedo ciscava nas entranhas de trazer um tolotinho e depois enfiar no do outro, ficar butando lá no outro e vai e volta, assim, toma! Eita! Doeu, porra! Nada! Os dois lá, pendurados pela dedada cheio de manzanza. Repetiram mais de três vezes, parece mais que gostavam. E Birito olhando. Adiante, respeitosamente pegaram um no pau do outro com um bote, agarraram firme, amolegaram, espremeram, torceram, esfregaram, apertaram, reviraram os olhos, um mais roxo que o outro, careta dos diabos, eita, bronha! Quando num agüentaram mais o aperto, soltaram resfolegantes. Se refizeram e sacaram do bolso da bunda uma foto. Mostraram-se e cada um tomou a do outro. Arriaram a braguilha, botaram o pingulim prá fora e esfregaram na foto: era a cara da mãe deles: tô cumendo a tua mãe! Ui! Ai! Vou gozar! Segura! Aquela seboseira. Quando esporraram, lamberam um a foto do outro, engolindo a gosma que se espalhara no retrato. Tinha mais: selado e jurado perante a cruz e a honra que aquele que arrumasse namorada tinha que entregar a cheba dela pro outro, como sinal de respeito e fidelidade, se acertaram, justos e contratados. Pronto. Já viu isso? Ainda passaram um risco no chão, um deles fez um desenho como se fosse cada qual deles representado no círculo, cuspiram um na cara do outro: - cara dum, cara doutro, quem num cuspir vira gafanhoto! Pronto, haviam-se desmoralizado até a última lona. Um num podia falar do outro, tudo de cu trancado para segredos, boca-de-siri. E Birito desconfiado, presenciando toda aquela marmota. - Quer ser irmão da gente, Birito? - Tá doido? Depois disso, deus me guarde. - Vamos lá, rapaz! - Ôxe, putaria dessa, vão dizer que sou fresco! - Nada, é tudo sob rigoroso segredo! - Hum! - Verdade! - O que tenho que fazer? - Um ritual.  - Tais sacaneando comigo! - Tamo querendo lhe ajudar! - Como é então essa droga de coisa? - Eu dô um talho no meu dedo! - Certo. Cês pensam que num vi um se aliviando no outro, não? - Calma, escute: Penisvaldo, no dele. - Hum... certo. - A gente corta o teu. - Ihhhh..... certo. - Eu chupo seu dedo e o do Rolivânio. - Tu chupa o de nós dois. - Começou.... - Eu boto o dedo no meu cu e Penisvaldo no dele. - Até aí, tudo bem. - Tu bota no teu. - Êpa, já tá vindo prá minha banda... tá ficando esquisito.... sim, vai, continua... - Depois tu bota no meu, ele também e a gente bota cada qual no cu do outro. - Êpa, sabia que ia ter cu no meio de novo! Tô fora! - Essa é a primeira prova! Senão, tu num entra prá irmandade. - E depois? - Depois vem os mandamentos e os regulamentos internos. - Ih, tá parecendo mais presepada. E Birito reclamava que esse papo tava analógico, meu, retilínio demasiado! Quem será o proctologista nessa história? Só falta o cara fazer way-k-dô com um professor do dedão enfiando aquilo no oiti-goroba, meu? Quéquéisso, ora? E relataram para ele a Lei Orgânica que rege os estatutos da corporação, as oito provas de admissão no umbral: 1.º - rezar prá deus meio dia em ponto no meio da rua e agüentar que se enfie um cabo de vassoura inteirinho de cu até quando completar dez pai-nossos. Êpa! O cara abriu na hora. Isso é lá coisa que se faça? 2.º - bater dez punhetas de cócoras na sacristia durante a missa na igreja com uma foto de Vera Fischer como se fosse a mãe e gritando aleluia o tempo inteiro. Só se for a sua que é gostosa como a porra! Bora! 3.º - tomar dez cachetes com pinga de cabeça prá baixo e depois distribuir retrato do pai cheio de chifres e gritando que ele é corno. Eita! 4.º - engulir quinze baga de pimenta malagueta duma vez só na sala de aula e tirar uma dedada na professora mais gostosa (e a que era, era a mulher dum general, pode?) 5.º - deixar um tolote de merda quente, na hora, na portaria do colégio e mandar o diretor da escola para a puta-que-o-pariu! Besteira. 6.º - cantar o hino nacional debaixo d'água e depois arrudiar a cidade nuzinho com uma tocha acesa enfiada no parreco! Vôte! 7.º - arrancar a tampa da garrafa com as pregas do cu e depois peidar até torá-la no meio. Fudeu! 8.º E por fim, jurar fidelidade pisando em brasa de fogueira e depois sentar-se até apagá-la. Vai-te prá porra! Birito num sabia o que era pior. Repete! E foi isso mais aquilo, naquilo, isto nisso, disso práquilo, daquilo naqueloutro, daqueloutro prá noutro e pei e bei, pronto, entendido? Não, tô fora! Posso encasquetar com isso, esse negócio de botaqui, tirali, e patati, patatá, ói, espie, teve cu no meio tô fora! E os mandamentos? Vai-te para a casa de caralho, porra! Tem os mandamentos sim! Num quero nem saber! - Ora, veja só, assim a gente num pode te ajudar, cara! - Fico sem ajuda, mas macho, esse negócio de amulegar aqui, enfiar ali, cai fora, meu! - Prá você ver que a gente tá com boa intenção, vamos lhe convidar para o aniversário da Munga, uma amiga nossa. Vai ser hoje de noite. A gente tá sabendo que ela tá a fim de você e quando você vê-la, vai ficar doidinho!  - Tá melhorando, ah! assim, tá certo! com mulher é comigo! Como é mesmo o nome dela? - Munga, é a filha de seu Ostrogésilo! - Virge! Aquela tanajura, meu, é feia que dói, mas tem um rabo, uma cheba maior que cara de vocês, tudo grandão, topo! Num é lá grande coisa, mas dá pro gasto! - Pois bem, primeiro você vai pro aniversário dela, lá a gente se encontra e depois discutiremos a sua inscrição na irmandade. - Ela é dessa irmandade, é? - É. - Já fez isso que vocês disseram? - Calma, depois a gente discute isso. - Responde logo, senão caio fora. Se ela for dessas de vocês aí, já num tô mais querendo. - Ela ainda é uma neófita. - Que é que é isso? - Ainda está entrando na organização, só depois é que a gente discute. E para uma mulher entrar na senda tem que ter namorado e ele tem que ser da nossa, entendeu? - Ih! Esse negócio num tá me cheirando bem... - Como é, vamos lá hoje à noite? - Tô lá! Resolveu, antes de tudo, ir para os tais festejos da tal Munga, era melhor assim, ver o monstro de perto e no que é que dava tudo aquilo. Lá chegando, todo nos trinques dos engalanados domingueiros, vinte horas em ponto! Meio que sem jeito, procurou canto prá se encostar, cheio de pernas, quando ela veio inexperadamente com um decote de botar olho saliente pregado nas tufas, vestida numa liganete arroxada daquelas de deixar nego de pau duro só no traçar das pernas, ele sufocado de olhar pros peitinhos buliçosos, os quartos cadenciados, as coxas volumosas, o parreco saliente, estufado do jeito de cuscuz nas virilhas dela, as formas redondas do cabra ficar escorregando na trajetória feito tobogã, uma buzanfa que mais parecia uma panela de pressão apitando de tão cheia, em suma, uma perdição de mulher! - E aí, meu? - instigou ela. - Tô nessa! Mal começaram a trocar um dedim de prosa, ele aperreou-se, deu-lhe uma vontade de pegar nas coisas dela, agarrar-se, atracar-se naquele monumento saboroso, quando chegaram, os empata-foda, Rolivânio com Vaginalda e Penisvaldo com Bucetildes, dele quase ter um troço. O quarteto de mãos dadas, ou foi ao contrário, nem sei mais. Para aperreio do mancebo encostaram-se pro bate-papo o Urinácio e Buceleta que era irmã da Bucetildes mais outras oito irmãs e mais cinco enteadas: Bucetinalda com Picadura, Bucetuda & Caralhudo, Bucetalora & Bimbudo, Bucetona & Roludo, Bucenalva & Mijadouro, Bucetalouca & Magueirão, Bucéfala & Trombudo, e Bunda que era vitalina porque mijava para onde o sol nasce e era feia como a praga. As outras, tudo pendurada no pescoço de marmanjo tolo e ogro. As enteadas era Bucetaura & Caralhauro, Bucetinha & Rolito, Bucetalange & Peniraudo, Bucelécia & Pintasilgo e Bucelara & Penislongo. Vôte! Tá maior confusão para desatar esse nó. Perdi-me. Ora, porra: chegaram os casais de amigos dele, pronto! a suruba era deles, não minha. Tô fora! - Tais com a porra, tais? A história é minha e faço dela o que quiser, ponto final. Arrumando a zona: estavam todos ali numa festança desbragada rolando altos papos monossilábicos mais parecendo códigos de ideogramas. Birito, fulo pela intromissão deles, ficou com um pé atrás esperando saber das novidades, quando Rolivânio soltou exemplos de irmandade entre eles. Birito já sabia que um dia Bucetildes e Vaginalda haviam viajado. Era viagem para cinco dias, passaram quinze. No aperto, o negócio engrossou dos dois namorados se cansarem de trocar cavalo mago e no maior desespero deles um comeu o do outro, batendo o centro no meio de campo da organização hermética deles. Fuleiragem solta. Sabia mais ele que toda noite, pela munganga dos dois, claro, um beijava o outro, selando o trato. Que viadagem! Partilhavam mesmo. Um só comprava se outro acordasse. Só saia se outro aquiescesse. Só comia quando o outro liberasse. Só peidava se outro cheirasse. Só cagava se o outro cotucasse. Só mijava se os dois mijassem. Com aquela convenção, aquele trato, tudo conforme o código que eles haviam jurado com sangue e tudo pro resto da vida. Sabia mais que as duas, Bucetildes e Vaginalda, eram namoradas dos dois. Se uma num tivesse e a outra chegasse, comia quem estivesse perto. Era um troca-troca pior que feira do rato nos lugares mais escusos. Nunca deu bode. Isso era a parte positiva de toda tramóia: sair comendo meio mundo de mocréia. Planejava já Birito sair marcando encontro com as catraias, se dizendo da irmandade e que elas dessem logo ali sem perdão. Estava tudo muito bom para ser verdade. E ele já maquinava um meio de tirar proveito dessa jeringonça de amizade. Pois bem, Birito endoideceu pela Munga que era reboladeira de chamar a atenção e ficou pensando espragatar-se naquelas carnes arredondadas, cinturinha de pilão, bundona avantajada, quartuda, um cardan bom para introduzir semente de família, peituda, beiçuda boa, coxuda, a mulher tinha a cara horrorosa mas falava com um jeito de quenga quente daquelas da gente dá umas dez sem sair de dentro, carente, manhosa, reboculosa, eita! Tava enfeitiçado. Quando ela passava, propositalmente dava uma rabissaca de deixar o juízo do fuleiro ficar no chapéu do vaqueiro de querer foder ali mesmo. - Rapaz, a mulé é boa prá caralho! - confidenciou para Rolivânio e Penisvaldo. - Você ainda num viu nada, se aprochegue cara, cole nela, tem nego aí lambendo os beiços, doido prá engatá-la, num durma no ponto, pastore bem o animal senão perde. - confidenciou Penisvaldo. - Mas depois tem de deixar a gente comer ela também, depois viu? - arguiu Rolivânio. - Êpa, e é sociedade anônima, é? Cês acham que sou corno conformado, é? Bulhufas! - Calma. Não tire conclusões apressadas, vai lá, vai, vai! E Biritoaldo foi flertar a deusa enchendo o tampo prá ficar mais animado na persuasão. Eis que nisso entra o dr. Ostrogésilo, pai da moça, todo engalanado e com ar de dono da situação, apresentando vasta cabeleira nas costas da cabeça e uma pista de pouso na dianteira, procedendo com um mordomo impecável, vestido de fraque e chapéu-coco, uma bandeja com pulverizador para desinfetar o ambiente com incenso, depois estendia o tapete e sob solene execução musical, com toda pompa, opulência extraordinária, surgia o patrão com cabelo traseiro todo empoado, exibindo um fraque modelar, todo cheio das pregas prum analfabeto e gago, todo mundo referenciando o homem na maior babação de ovo, chega o ambiente ficar meleguento e salpicado de desinfetante para afastar os insetos humanos que se grudam em gente graúda feito adoração de imagem, Ostrogésilo jogando prá lá o olho gordo, quebranto que fosse rezado ali prá afugentar aquela desprezível gente que num se conforma em ver, tem que tocar, pegar, se agarrar nas saliências dos outros, sai-te, lambe-tacho! O sujeito era mesmo aquele que mandava e desmandava por ali, acompanhado de num sei quantos asseclas e dum punhado de prosélitos que lhe santificavam as ações. Birito que só conhecia o homem de nome e de comentários ruidosos da populaça, testemunhava in loco o carisma do cara de deixar todo mundo hipnotizado e subserviente ao seu jeitão de manda chuva. - Es-sa-sa-sa é a mi-mi-mi-nha ra-ra-ra-raínha! - agarrou-se o homem em Munga, dando-lhe beijos e mais beijos. - Que-que-que-ro arru-ru-mar prá-pra ela um ma-ma-marido exe-em-em-plar que-que-que vai ser-ser um sor-sor-tu-ti-do de fi-fi-fi-car herdeiro de to-to-to-todo o meu tro-no-no! Biritoaldo ficou zanolho de tanta empáfia do homem que se referira a ele assim de supetão. Esmola grande o cabra acaba desconfiado. Mas já que tá dentro, deixa. - Ei, ami-mi-migo, se é ami-mi-mi-go da Munga, é me-meu tam-bém. Que-quem be-beija a boca da minha fi-filha ado-do-ça a minha bo-bo-ca. - Birito abestalhou-se com a referência que o homem fez. - Vo-vo-vo-você tem empre-pre-go, fi-fi-filho? - Tô procurando. - Tá-ta-ta-ta em-empre-pre-gado, com-pa-pareça ama-manhã no me-meu escritó-tó-rio que-que vo-você já-ja está com-contra-ta-tado. Birito só faltou beijar o homem, os pés, as mãos, tudo. Nossa! Atirou no que viu, acertou no que não viu. - Tô aqui, tô vendo, viu? - Birito ouviu uma voz fanhosa, parecida com a do anjo da guarda. Cascavilhou tudo, nada vira. - Quem falou isso? - dissera atônito. - O quê-quê? - perguntou dr. Ostrogésilo. - Que tá me vendo? - replicou, arrudiando-se todo e nada encontrando. - Ca-ca-calma fi-filho, fi-fi-ficou nervoso porque já-já está-ta empregado, num se-se ape-perreie, to-tome umas e outras que-que ama-manhã te-tem servi-viço com salá-lario certo, vi-vida bo-boa e o tu-tudo certo co-como man-manda o fi-figu-gu-rino. Birito ficou intrigado. Ninguém ouvira a insinuação daquela voz do anjo. - Será que tão aprontando comigo? -, inquiria sem saber de nada, desconfiado dos mistérios e das coisas do outro mundo.  © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui


PENSAMENTO DO DIAÉ fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática. Pensamento do educador, pedagogista e filósofo Paulo Freire (1921-1997). Veja mais aqui.

MODERNIDADE: DISCURSO & FILOSOFIA - [...] Se a literatura proporciona o modelo para um texto universal, não superável, no qual em última instância dissolvem-se todas as diferenças de gênero, não pode ser possível distingui-la de outros discurssos, como dominio autônomo de ficção [...] Na medida que a função poética, a função que tem a linguagem de abrir mundo, adquire primazia e força estruturalmente determinante, a linguagem escapa às restrições estruturais e às funções comunicativas da vida cotidiana. O espaço de ficção que se abre quando as formas lingüísticas de expressão se tornam reflexivas, é resultado da neutralização da capacidade que os atos ilocutórios possuem de estabelecer vínculos e da neutralização das idealizações que tornam possível um uso da linguagem orientado ao entendimento; e, assim de uma coordenação de planos de ação centrada no reconhecimento intersubjetivo de exigências de validez suscetíveis de crítica. [...]. Trechos extraídos da obra O discurso filosófico da modernidade (Dom Quixote, 1990), do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. Veja mais aqui.

NADA ME FALTARÁ – [...] Não é o fato de eu dizer que estou bem que elas não aceitam, o que elas não aceitam é eu estar bem. Eu acho que elas querem me ver chorando, sofrendo, sei lá. Elas querem que eu fique me lamentando por não saber onde elas estão. [...]. Trecho da obra Nada de faltará (Companhia das Letras, 2010) do quadrinista, dramaturgo e escritor Lourenço Mutarelli.

RELATO DE OCORRÊNCIA EM QUE QUALQUER SEMELHANÇA NÃO É MERA COINCIDÊNCIA - Na madrugada do dia 3 de maio, uma vaca marrom caminha na ponte do rio Coroado, no quilômetro 53, em direção ao Rio de Janeiro. Um ônibus de passageiros da empresa Única Auto Ônibus, chapa RF - 80-07-83 e JR - 81-12-27, trafega na ponte do rio Coroado em direção a São Paulo. Quando vê a vaca, o motorista Plínio Sérgio tenta se desviar. Bate na vaca, bate no muro da ponte, o ônibus se precipita no rio. Em cima da ponte a vaca está morta. Debaixo da ponte estão mortos: uma mulher vestida de calça comprida e blusa amarela, de 20 anos presumíveis e que nunca será identificada; Ovídia Monteiro, de 34 anos; Manuel dos Santos Pinhal, português, de 35 anos, que usava uma carteira de sócio do Sindicato de Empregados em Fábricas de Bebidas; o menino Reinaldo de 1 ano, filho de Manuel; Eduardo Varela, casado, 43 anos. O desastre foi presenciado por Elias Gentil dos Santos e sua mulher Lucília, residentes nas cercanias. Elias manda a mulher apanhar um facão em casa. Um facão? pergunta Lucília. Um facão depressa sua besta, diz Elias. Ele está preocupado. Ah! percebe Lucília. Lucília corre. Surge Marcílio da Conceição. Elias olha com ódio para ele. Aparece também Ivonildo de Moura Júnior. E aquela besta que não trás o facão! pensa Elias. Ele está com raiva de todo mundo, suas mãos tremem. Elias cospe no chão várias vezes, com força, até que sua boca seca. Bom dia, seu Elias, diz Marcílio. Bom dia, diz Elias entredentes, olhando pros lados. Esse mulato!, pensa Elias. Que coisa, diz Ivonildo, depois de se debruçar na amurada da ponte e olhar os bombeiros e os policiais embaixo. Em cima da ponte, além do motorista de um carro da Polícia Rodoviária, estão apenas Elias, Marcílio e Ivonildo. A situação não anda boa não, diz Elias olhando para a vaca. Ele não consegue tirar os olhos da vaca. É verdade, diz Marcílio. Os três olham para a vaca. Ao longe vê-se o vulto de Lucília, correndo. Elias recomeçou a cuspir. Se eu pudesse eu também era rico, diz Elias. Marcílio e Ivonildo balançam a cabeça, olham para a vaca e para Lucília, que se aproxima correndo. Lucília também não gosta de ver os dois homens. Bom dia. d. Lucília, diz Marcílio. Lucília responde balançando a cabeça. Demorei muito?, pergunta, sem fôlego, ao marido. Elias segura o facão na mão, como se fosse um punhal; olha com ódio para Marcílio e Ivonildo. Cospe no chão. Corre para cima da vaca. No lombo é onde fica o filé, diz Lucília. Elias corta a vaca. Marcílio se aproxima. O senhor depois me empresta a faca, seu Elias?, pergunta Marcílio. Não, responde Elias. Marcílio se afasta, andando apressadamente. Ivonildo corre em grande velocidade. Eles vão apanhar facas, diz Elias com raiva, aquele mulato, aquele corno. Suas mãos, sua camisa e sua calça estão cheias de sangue. Você devia ter trazido um bolsa, uma saca, duas sacas, imbecil. Vai buscar duas sacas, ordena Elias. Lucília corre. Elias já cortou dois pedaços grandes de carne quando surgem, correndo, Marcílio e sua mulher Dalva, Ivonildo e sua sogra Aurélia e Erandir Medrado com seu irmão Valfrido Medrado. Todos carregam facas e facões. Atiram-se sobre a vaca. Lucília chega correndo. Ela mal pode falar. Está grávida de 8 meses, sofre de verminose e sua casa fica no alto de um morro, a ponte no alto de outro morro. Lucília trouxe uma segunda faca com ela. Lucília corta a vaca. Alguém me empresta uma faca senão eu apreendo tudo, diz o motorista do carro da polícia. Os irmãos Medrado, que trouxeram vários facões, emprestam um ao motorista. Com uma serra, um facão e uma machadinha aparece João Leitão, o açougueiro, acompanhado de dois ajudantes. O senhor não pode, grita Elias. João Leitão se ajoelha perto da vaca. Não pode, diz Elias dando um empurrão em João. João cai sentado. Não pode, gritam os irmãos Medrado. Não pode, gritam todos, com exceção do motorista da polícia. João se afasta; a dez metros de distância, pára; com os seus ajudantes, fica observando. A vaca está semidescarnada. Não foi fácil cortar o rabo. A cabeça e as patas ninguém conseguiu cortar. As tripas ninguém quis. Elias encheu as duas sacas. Os outros homens usam a camisa como se fossem sacos. Quem primeiro se retira é Elias com a mulher. Faz um bifão pra mim, diz ele sorrindo para Lucília. Vou pedir umas batatas a d. Dalva, vou fazer também umas batatas fritas para você, responde Lucília. Os despojos da vaca estão estendidos numa poça de sangue. João chama com um assobio os seus dois auxiliares. Um deles traz um carrinho de mão. Os restos da vaca são colocados no carro. Na ponte fica apenas a poça de sangue. Extraído da obra Lúcia McCartney (Francisco Alves, 1987), do escritor e roteirista Rubem Fonseca. Veja mais aqui.



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Lição pra ser feliz, Fernando Pessoa, Rajneesh, Graciliano Ramos, Aristófanes. Adriana Calcanhoto, Buster Keaton, Mikalojus Konstantinas, Victor Gabriel Gilbert & Literatura Infantil aqui.


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CRÔNICA DE AMOR POR ELA
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CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
 Paz na Terra
Recital Musical Tataritaritatá - Fanpage.
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quinta-feira, fevereiro 28, 2008

RUBEM BRAGA, SASKIA SASSEN, LEDO IVO, ROXANE ROJO, SÉRVULO ESMERALDO, EDUCAÇÃO & DORO


 
A arte cinética do artista Sérvulo Esmeraldo (1929-2017).


DORO & ESCAMBAU - Doro estava na maior pasmaceira, ingicado pela peitica de encontrar uma saída para seus planos eleitorais, quando teve aquele estalo arquimédico: eureka! Ora, ele não se contentara com a produção e reprodução da idéia do Fecamepa e com a sua descabida candidatura levada a ferro e fogo até a última conseqüência no atual pleito eleitoral (pode um sujeito mais sem eira nem beira candidato a presidente do Brasil e com o desplante: quem é pior ou melhor do que eu? É verdade, então fico calado), agora partiu para outras alvoroçadas invencionices só possíveis em sua cabecinha tola de desaprumado jipe sem freios nem meios descendo desgovernado ribanceira abaixo. - Eureka! -, repetia insistentemente. Essa exclamação iluminada reduzia-se à descoberta do paradeiro do filósofo, advogado e fiscal de renda, o eminente anacoreta distinguido doutor Zé Gulu, um, que dizem os boateiros de plantão, Ph.D. das ocultidões, pós-graduado pela Universidade ZWQ%&777P, ao defender uma tese de doutoramento a distância na 28.ª galáxia do 101.º sol - ocasião em que prematuramente já anunciara a barroada do asteróide 2002N17 com a terra, em dia e horário marcados exatamente sem pestanejar, comprovando seu tino sismográfico de captar o menor zumbido noutras galáxias anos-luz daqui -, quando com sua imperturbável contemplação e douta sabedoria peculiar, deu-lhe a solução: o escambau! Doro depois de muito meditar sobre a loucura do teorema proferido, chegou a me confidenciar, o que, não obstante, também fiquei intrigado com uma cara de tacho mais que corno desconfiado de gaia, levando-me a desvendar a charada esfíngica do crástino haríolo e que, segundo insistem os inventores de petas e patranhas, ser o avatar apreciador da ingerência de bosta dos ciganos, fato este que amplia seus poderes adivinhatórios. Se é pinóia, cá pra nós, nem afirmo muito menos desafirmo, deixo correr. Primeiro fui no pai dos burros, nada constando sobre tal locução, só escambar que significa cambiar ou trocar; e escambo, no mesmo sentido. Fiquei zarolho só de pensar: o que queria,afinal, dizer ele com tal dédalo oracular? Nem no Aurélio, nem dicionário algum, nem no tomo I da massaroca inapalpável da Enciclopéda Griz, com suas quase seis mil páginas de pesquisa exaustiva do emérito poeta Artur Griz, nem anotado nos estudos de Luís da Câmara Cascudo, nem no dicionário do Palavrão, de Mário Souto Maior, nem enciclopédias ou alfarrábios do tempo do ronca, nem em porra de livro barato desses feito nas coxas só para vender. Onde pomboca que droga poderia encontrar? Doro com cara de interrogação maior que a minha, resolveu pedir esclarecimentos ao doctíloquo anfibologista. Este respondeu seco: o óbvio! Como? Simples: quem sabe de cor e salteado a gramática portuguesa? Ninguém, exceto um ou outro obstinado estudioso. Quem entende a proposta de inclusão pedagógica dos de Brasília? Ninguém, nem eles mesmos. Quem aprende algo de nossa língua com tanto estrangeirismo, regra, exceções, vaievém, nó cego, tanto nome estrambólico nas coisas simples da gente? Uh! Ninguém. Então? uma palavra só como essa, com uma múltipla significação como possui, torna todo mundo, de uma hora para outra, alfabetizado, promovendo a possibilidade de tornar analfabetos em graduados acadêmicos assim, sem mais nem menos. Como? Por exemplo, você diz: Pai, filho e o escambau! Neste caso, significa o Espírito Santo e tudo e todo mundo, tudo uma merda só. Tanto significa um único enunciado como representar uma frase inteira, dependendo, apenas, da forma de enunciação. Escambau? Escambau. Escambau! Defendia então que com essa economia de expressão, haverá, consequentemente, menos mal entendidos, vez que todos pronunciarão a toda hora, para qualquer ocasião, com todos os significados conteudísticos, apenas: escambau. E enfatizava: você vai poder chamar, mandar, pedir, torar, usando apenas: escambau. Tanto para singularidades, como para coletivos plurais. E tome lero-lero: serve tanto para uma ofensa, quanto para um elogio. Servirá para somar, dividir, subtrair, roubar, multiplicar, ou acumular. Afirma-se, como se nega. Move-se, ou como ficar imobilizado. Terá uma inumerável e diversificável significação bastando apenas interpretar, só. Como? Olhe, por acaso você entende o que dizem os maiorais da nação? Nadica de nada. Você entende economia ou linguajar de advogado ou médico ou engenheiro ou enrolador presepeiro quando ele quer justificar alguma coisa em seu prejuízo? Pior ainda. Você entende, por acaso, o que um juiz chega a lhe dizer quando vai exarar uma sentença em que você não sabe se ganhou ou perdeu o direito adquirido? Ora, num sei se tô sorteado ou se tô fudido prá todo o resto da vida. Aí arremata: pois é, acaba a enrolança com uma única expressão e com um adendo: você revoluciona a gramática acabando com o excesso de normatização, economiza essencialmente na educação, porque todos saberão dizer escambau, não precisando de escola, de diretor, de professor, de nada disso. O povo ficará feliz! Os estudantes, ululantes! Votos certinhos na bica do seu caçoá eleitoral, num é não? Doro meio lá e meio cá, recebeu na lata: não precisará de uma lei com trilhões de artigos, apenas escambau, pronto, ou tá condenado, ou tá absolvido. Ninguém vai precisar queimar as pestanas lendo livros e mais volumes para saber de alguma coisa. Se o problema é leitura, babau. Ninguém precisará mais ler absolutamente nada. Vai ser tudo na base utilitária dos sentidos. Os poetas bastarão dizer escambau, pronto, tudo o que se imaginar estará ali representado. As pessoas serão mais silenciosas, a vida será mais fácil de viver porque não precisará de um sem número de léxicos para informar, persuadir, engalobar, basta um: escambau. Pronto. Acaba de uma vez por todas com a escrita, restando apenas a fonética reduzida a um só termo: escambau. Além do mais, todo mundo será uma família: Zé de tal Escambau, fulano de tal Escambau, beltrano de tal Escambau, outrano de tal e assim vai. Por isso, haverá mais solidariedade, independente de consangüinidade ou afetividade. Tudo igual. Revolucionário, não? Então? Doro abriu um sorriso iluminado enquanto remoía nas catracas: num é que é mesmo! Putzgrila! Estou eleito!!! Foi aí que esfuziantemente beijou as mãos e os pés do mestre. E não se contendo em si de explosiva alegria, vociferou em cima da bucha: - Olhe, dotô Zé Gulu, cum essa indéia o sinhô será meu ministro da inducação quano eu ganhá para prisidente. Pode escrevê aí. Palavra de Doro num trisca, sai em cima da risca! Pois é, e eu, gente, achando-me mais astuto que gato escaldado, continuo com a mesma cara de tacho de surpreso por imbróglio mais sem pé nem cabeça. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.


PENSAMENTO DO DIAA gente nasce com um montão de palavras na barriga. Na vida, vai galando e gastando o estoque. Quando todas acabam, a gente morre. Provérbio africano.

NÃO É IMIGRAÇÃO É EXPULSÃO –[...] O momento da expulsão é o momento de uma condição familiar que se torna extrema. Você não é simplesmente pobre, você está com fome, perdeu sua casa, vive em barraco. Ou com a terra e com a água: não são simplesmente degradadas, terras ou águas insalubres. São mortas, acabadas. Nós tendemos a parar no extremo. Não entrar nele. O extremo é muito, muito feio e não temos conceitos para capturá-lo. Trecho da entrevista concedida pela socióloga holandesa Saskia Sassen para a Revista Ponto & Vírgula (PUCSP, 2015).

EDUCAÇÃO, APRENDIZADO, ESCOLA NO BRASIL - [...] O problema é que, no Brasil, somente um percentual muito baixo de estudantes atinge o patamar adequado. Apenas 5,3% dos estudantes apresentam um nível de proficiência condizente com onze anos de escolarização, constituindo-se leitores competentes em relação a diversos tipos de texts. Considerando o rendimento em atividades de leitura e interpretação de textos, os concluintes do ensino médio concentram-se no nível intermediário, sendo capazes de ler com relativa desenvoltura, mas não aquela projetada para a série na qual estão. [...] Outros 42% não podem sequer ser considerados bons leitores, mesmo depois de terem chegado ao final do ensino médio, vencendo as séries da educação básica. Estes últimos são aqueles que estão nos níveis crítico e muito crítico. [...] Trechos extraídos de Letramentos múltiplos, escola e inclusão social (Parábola, 2009) de Roxane Rojo, autora também de Alfabetização e letramento: sedimentação de práticas e (des)articulação de objetos de ensino (Perspectiva, 2006).

AULA DE INGLÊS — Is this an elephant? Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava. Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em conseqüência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil. Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente: — No, it's not! Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou: — Is it a book? Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos: — No, it's not! Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas. — Is it a handkerchief? Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido: — No, it's not! Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief. Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva. - Is it an ash-tray? Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento. As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi: — Yes! O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta.  Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada: — Very well!  Very well! Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho. Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria: -- It's not an ash-tray! E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado. Extraída da obra Um pé de milho (Autor, 1964), do escritor Rubem Braga (1913-1990). Veja mais aqui.

O MONTEPIO - Que herança transmite / o pai a seu filho? /Não lhe deixa casa / ou sombra de apólice/ nem tampouco o sujo/ de seu colarinho./ Não lhe lega a velha / mala das viagens/ nem os seus amores/ e as suas bagagens./ E as roupas do pai/ que a chuva encolheu/ no filho não cabem./ Com pau seco e fogo/ o pai de resina/ arma seu legado./ Deixa a fogueira/ que ele fez sozinho/ no escuro da mata./ (Borboletas em/ seus ombros pousavam)/ E também menino/ na pele do vento/ solta para o céu/ o seu papagaio./ E antes de mudar-se/ de suor em musgo/ o pai dá ao filho/ como pé-de-meia/ algo da paisagem/ - sobra de pupila,/ moeda de lágrimas./ Deixa-lhe o balaio/ cheio de apetrechos/ e o jeito de andar/ com as mãos às costas./ Para o filho, passa/ todo o seu cansaço/ suas promissórias/ e seu olhar baço./ Da árvore do povo/ deixa-lhe o grito/ de espantado amor/ que gritou na praia./ De agrestes gravetos/ faz o fogo e esquenta/ na palhoça ao vento/ a comida fria/ de sua marmita./ O pai dá ao filho/ o ninho vazio/ achado no bosque/ e a raposa morta/ por sua espíngarda./ Dá-lhe a sua anônima/ grandeza do nada./ Sua herança é o frio/ que sentiu rapaz/ quando impaludado./ Dá-lhe a lua imensa/ na noite azulada./ Estende-lhe as mãos/ sujas de carvão/ molhadas de orvalho./ Fala-lhe da dor/ que sente nos calos./ Dá-lhe a verde e rubra/ pimenteira em flor./ Mostra-lhe o tambor/ de salitre e brisa/ que rufa sozinho/ entre arquipélagos/ de sua pobreza./ Mostra-lhe o cadarço/ de espuma no mar/ cheio de mariscos./ Ser pai é ensinar/ ao filho curioso/ o nome de tudo:/ bicho é pé de pau./ Que o pai, quando morre,/ deixa ao filho/ o seu montepio/ - tudo o que juntou / de manhã à noite / no batente,dando/ duro no trabalho./ Deixa-lhe palavras. Poema extraído da obra O sinal semafórico (José Olympio/INL, 1974), do poeta, jornalista, escritor e ensaísta alagoano Ledo Ivo (1924-2012). Veja mais aqui.





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